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Câmara de Espelhos ocupa o Cine São Luiz: um filme poderoso que expõe o machismo e a agressão simbólica às mulheres

Laércio Portela / 01/11/2016

Não vou mentir. O terreno é inóspito. Já escrevi e deletei vários parágrafos. Medo de errar. De dizer o que não pode – ou não deve – ser dito. Até estar convencido de que não há como acertar. Não há onde se esconder. Todo homem (me permitam falar por todos nós) pode se reconhecer nos discursos ofensivos que tomaram a tela gigante do Cinema São Luiz na noite desta segunda-feira (31), numa exibição que já considero histórica do Festival Janela Internacional do Recife.

Voltemos no tempo. Há quatro anos, sessenta homens atenderam o convite publicado no jornal e nas redes sociais para participar de um filme e expressarem suas opiniões. Catorze foram selecionados para integrar Câmara de Espelhos (76min.,2016,PE).

Divididos em dois grupos de sete e num ambiente criado em estúdio, com câmeras atrás de espelhos impossibilitando que eles vissem a equipe técnica que os filmava, durante três dias os escolhidos participaram de seis sessões de conversas sobre temas relacionados à mulher. Eram estimulados por uma série de vídeos que tratavam de assuntos como casamento, traição, sexo, violência de gênero e feminismo. O resultado é arrasador.

A brutalidade do discurso banal

Nós fomos acostumados a associar a violência à agressão física. Acostumados a crer que o poder se impõe pela força bruta, do mais forte sobre o mais fraco. E que ela, a violência, vem como uma explosão, num momento de fúria. Mas o que o filme nos mostra é a brutalidade do discurso banal, do senso comum, do cotidiano, proferido nas mesas de bar, nas rodinhas de colegas no intervalo do trabalho, nos grupos de zap.

Mostra também a mais dura violência – porque disfarçada, porque naturalizada – que é a violência simbólica, do discurso que descontrói e destrói identidade, que massacra e oprime mesmo quando não tira sangue.

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No cenário de Câmara de Espelhos, cadeiras, sofás e quadros que remetem ao universo feminino à espera dos homens e seus discursos de poder

Os homens na sala não se conhecem, mas logo criam uma intimidade entre si. A intimidade de quem está num campo de fala que lhes é comum, que lhes é conhecido. E isso lhes dá segurança. Fosse o tema algo que não dominassem (!) e eles se sentiriam vulneráveis. Mas sobre mulheres, eles entendem… Têm opinião formada sobre tudo. Falam com autoridade (!)

Em pouco mais de 1 hora de filme são lançados na tela todos os estereótipos que reduzem a mulher a um objeto de desejo que precisa ser controlado. O incrível do filme – uma produção da Ateliê Produções e Alumia Produções e Conteúdo – é que ele expõe como nunca havia sido feito antes, os sofismas e arrodeios que criamos nos nossos discursos para justificar o injustificável. Sim, porque ali estão também, entre uma facada e outra, as declarações de amor, o reconhecimento do direito de ter direitos, a pregação do respeito… Mas não nos deixemos enganar. Afinal, nós, homens, conhecemos todas essas artimanhas e onde elas vão dar.

As falas vão se sucedendo na tela:

É importante que as mulheres lutem por seus direitos. O corpo da mulher pertence à mulher. O casamento deve se pautar pelo diálogo, o respeito e a amizade. Tudo bem ela trabalhar fora, desde que isso não atrapalhe seus afazeres domésticos e o cuidado com os filhos. A verdade é que mulher gosta mesmo é de conforto. Aborto, não. Aborto é inaceitável. Primeiro Deus, depois o homem, depois a mulher. Essa é a ordem perfeita. Direitos são uma coisa, agora, querer ser igual ao homem, deixar de ser feminina, é outra coisa. Para quê isso de mostrar os peitos? Se eu pegasse ela me traindo, eu não sei o que faria. Matava ela, ele, o colchão e o quarto. As mulheres são muito machistas!

Não dá para encarar tudo como se não fosse nada

O filme nasceu da inquietação da sua diretora, Dea Ferraz, que divide o roteiro com Joana Collier. Ela, como nós, estava acostumada a ouvir toda sorte de ataques velados (ou não) às mulheres. Entre amigos, no dia a dia. O filme tinha que expressar isso. Como seria colocar uma câmera invisível numa mesa de bar só de homens? “Eu queria entender que imagem social a mulher tem? Quem sou eu? Quem é essa pessoa que a sociedade está construindo?”.

Não foi fácil. Depois das filmagens, Dea se afastou do filme por algum tempo. Simplesmente não dava para encarar tudo aquilo como se não fosse nada. Deixar passar, como a gente deixa passar na mesa do bar. “Eu fiquei muito mal. Tive medo de sair na rua. A intensidade das filmagens me levou para esse lugar mais sensível. Tive que me afastar do material. Tive que ressignificar minha relação com esses caras”.

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Dea revela que o filme surgiu de sua inquietação e do desejo de refletir sobre a força simbólica do discurso machista que ela ouvia ao ser redor

O filme é intenso, mesmo nos brevíssimos momentos de silêncio, quando os temas do aborto e da traição parecem tocar em feridas e ressentimentos profundos naqueles homens que, pela primeira vez, param e se olham antes de seguir. O filme de dispositivo também tem método e isso é óbvio no sistema montado por Dea: a sala fechada, as câmeras atrás dos espelhos, os quadros que compõem o cenário com frases e ícones feministas, os vídeos temáticos impulsionadores dos discursos.

Mas o que sustenta o filme – e que talvez não seja fácil perceber (mas as coisas importantes não são mesmo fáceis de perceber) – é a honestidade. Dea não aceita o panfleto. O corte na fala de efeito, a música que sobe e desce para induzir o espectador. Nada disso.

Você não vai ver o corte abrupto na hora da declaração chocante, a câmera continuará lá, filmando, dando tempo ao tempo e aos homens para concluírem suas ideias, mesmo que seja para colocar mais uma mão de tinta sobre seus preconceitos. Minimizá-los.

Entre os homens, um deles é um infiltrado. Tem um ponto no ouvido pelo qual recebe instruções da diretora para interferir no debate, normalmente apresentando posições mais progressistas, como quando apóia o aborto ou defende o direito da mulher transar com quem quiser e como quiser porque o corpo pertence a ela e só a ela. “Djair estava lá para levantar esses temas. Eu não estava procurando o tipo machão declarado. Procurava as falas mais sutis”, explica Dea.

O desconforto e o opressor

Sentado ali numa cadeira lateral do cinema São Luiz lotado de mulheres e ativistas, a minha sensação é de desconforto. Até que ponto estou protegido, até que ponto não há nada de mim ali naquela tela? Até que ponto eu posso fingir (eu, homem “branco”, de classe média, armado de minha objetividade e meu escudo de esquerda) que não sou o opressor? Que reproduzo e represento, com ou sem sutilezas, toda aquela brutalidade simbólica?

“Esse filme tem esse desejo de denúncia. De jogar luz sobre esses caras. Que as pessoas possam se ver nesses espelhos. Enquanto não desconstruírmos esses discursos não sairemos desse lugar”, argumenta a diretora para uma platéia atenta.

Tá certo. Mas não é fácil se ver assim refletido no espelho. Exposto. Não naquele espelho de casa, na parede do quarto, que te dá conforto e segurança. Mas num espelho gigante, aberto aos olhares alheios. Como se tivessem colocado uma câmera invisível em nossa mesa de bar. E é isso que Dea faz.

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Dezenas de mulheres que produzem audiovisual em Pernambuco ocuparam o palco do Cinema São Luiz antes da exibição de Câmara de Espelhos, no Festival Janela Internacional do Cinema do Recife, na segunda (31)

Antes da projeção, a diretora pediu a todas as mulheres da audiência que trabalhavam com audiovisual em Pernambuco que subissem ao palco. Foram dezenas, entre diretoras, produtoras, atrizes, câmeras, assistentes, integrantes do grupo Mulheres no Audiovisual… Um momento emocionante, mas também perturbador, quando nos damos conta da invisibilização de todas essas realizadoras e seus filmes num meio supostamente intelectual, arejado e progressista. SQN.

O cadafalso e o direito à tribuna

Chegando tarde da noite em casa, fui folhear um dos livros na estante à procura da história de Olympe de Gouges (1748-1793). Me permitam uma viagem no tempo. Enquanto a esmagadora maioria dos revolucionários franceses manifestava desinteresse, quando não hostilidade pelos direitos da mulher, em plena Revolução Francesa, Olympe redigia a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, uma transcrição para o feminino da Declaração Dos Direitos dos Homens e do Cidadão, com alguns acréscimos que jamais sairiam da cabeça revolucionária (e progressista) de um homem.

No artigo X da Declaração, que trata da liberdade de opinião, ela (Olympe de Gouges) exige garantias às mulheres: já que podem subir ao cadafalso, podem igualmente subir à tribuna.

E são muitas essas tribunas (que constróem novos sentidos e novas verdades) ocupadas agora pelas mulheres: a tela gigante do cinema São Luiz, a tela pequena do Cine Olinda, dezenas de festivais de cinema dentro e fora do Brasil, as manifestações de rua, as ocupações nas universidades e escolas públicas por todo o país. Só não se vê refletido neste espelho quem não quer. Ou tem medo do seu significado.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República