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Queda de renda com o fim do auxílio e o cancelamento do Carnaval atingem em cheio os comerciantes informais de Olinda e recife. Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo
“Tá vendo aquela senhora ali? Ela trabalha há muito tempo com comércio no Carnaval. É uma das mais antigas aqui. Quer ir lá?”. Na grade da frente da casa de Rubenete Severina da Silva, um banner anuncia a venda de lanches, almoços e açaí. Basta começar a conversa para entender porque ela é uma referência. Há 28 anos, Rubenete vende comida e bebida numa das barracas cadastradas pela Prefeitura de Olinda para o comércio no Varadouro durante o Carnaval.
Se você é assíduo frequentador da festa na cidade já deve ter consumido churrasco, tapioca, cachorro quente, refrigerante ou água na Barraca de Dona Neta, como a senhora de 66 anos é conhecida. O trabalho é duro – ela dorme de sexta a quarta de Carnaval na própria barraca -, mas o ganho vale a pena: 3 mil reais livres, descontados todos os gastos com mercadoria e estrutura.
A qualidade e o atendimento cultivam a freguesia. Todo ano um grupo de 15 amigos de Teresina (PI) vem brincar o Carnaval em Olinda e faz da barraca um ponto diário de encontro. O trabalho e o lucro de Dona Neta começam antes disso, ainda nas semanas de pré-Carnaval, quando ela comercializa comidas e bebidas na Ribeira. Apesar da idade, toca tudo apenas com a ajuda de uma sobrinha.
O cancelamento do Carnaval 2021 tirou de Rubenete os recursos que ela planejava investir em reparos na casa onde vive com o marido aposentado. “Estamos pela misericórdia. Esse dinheiro ia pra trocar a telha, ajeitar o piso. Eu não tenho renda nenhuma, nenhuma. Só o que ganho do meu comércio”. E a venda de alimentos em casa, Dona Neta? Tá dando certo? “Vendo toda sexta, sábado e domingo e tiro 30 ou 40 reais”. Por dia? “Oxê, não. Por fim de semana”.
A comerciante informal que é referência na V8 precisou da ajuda dos filhos para tratar uma infecção no dedo. Eles ficaram preocupados porque ela é diabética. Foram 280 reais gastos na consulta e mais 430 em exames. “Meus filhos se juntaram e pagaram”, conta.
Quem indicou Dona Neta para a reportagem foi Tamires da Silva Andrade, 30 anos. Ela mora numa rua bem próxima à de Rubanete. “Aqui quase todo mundo vive do comércio informal ou de pequenos serviços”, explica, numa referencia à comunidade V8, em Olinda, onde residem ela e a família e também Rubanete e o esposo.
Tamires vive com o marido Fabiano Canudo, 38, e as filhas Tayná, 10, e Taynara, 9. Ela começou muito nova a participar da economia informal do Carnaval de Olinda. Com apenas 10 anos de idade já ajudava a avó Maria de Lurdes na barraca de alimentos num ponto na Ribeira. Vendiam tapioca, espetinho e cerveja. Também foi ajudante de tapioqueira no Alto da Sé. Com o adoecimento da avó, nos últimos anos Tamires tem trabalhado com o marido durante o Carnaval.
O cancelamento da festa vai pesar no bolso da família especialmente por conta do fim do auxílio emergencial. Tamires recebia 1.200 mensais e o marido mais 600 reais. Agora, voltaram para o Bolsa Família e, ao invés de faturar vendendo comida e bebida nas semanas de pré-Carnaval, Tamires tem se virado vendendo água e pipoca num bingo dentro da própria comunidade.
Isso durante a semana. Nos fins de semana, ela e Fabiano vão pra praia vender picolé. “A gente vive de ôia, fazendo o que aparece por aí”, conta. O marido está desempregado e passou os últimos dias numa “empreitada” na construção civil, na casa de um amigo, em Peixinhos. “Nossa solução está na rua. Na praia – se não fecharem a praia -, na pista… Às vezes vamos pra cidade”. De 15 em 15 dias a família recebe uma cesta básica de ajuda da escola das filhas.
Pra conseguir um dinheirinho extra, Tamires às vezes cuida dos filhos de algumas vizinhas. Leva para a casa da mãe, também na V8. As aulas remotas das filhas têm dificultado a vida de Tamires. Primeiro, porque ela tem um único celular na casa para as duas meninas. Segundo, porque com as filhas em casa ela não pode sair para buscar trabalho fora, mesmo contando de vez em quando com o suporte da avó de Tayná e Taynara.
Seguindo mais pra dentro da comunidade, numa área conhecida por Portelinha, fica o bar – “não diga que é um bar, é uma barraca”- de Edvaldo Marques da Silva, 55 anos. “Pode chamar de Badu da Noiada”, diz, numa gargalhada.
Apesar do bom humor, Edvaldo também está sentindo no bolso o fim do auxílio emergencial e o cancelamento do Carnaval. “Eu que recebia 600 reais de ajuda e depois 300, agora fiquei só com os 89 reais do Bolsa Família”, relata. “Tinha a esperança de receber pelo menos mais duas parcelas do auxílio. Ainda bem que sou só eu e minha esposa em casa. Os filhos estão todos criados e casados”, arremata.
Edvaldo tem comércio há 10 anos na V8. Antes da pandemia, vendia 10 grades de cerveja nos sábados. Agora, depois que o comércio reabriu, não chega a 5 grades. No Carnaval, ele trabalha há sete anos vendendo cerveja, guaraná e cachorro quente na Rua 13 de maio. Sem o cadastro com a Prefeitura. “Esse dinheiro vai fazer falta pra muita gente. Tem quem está com mercadoria guardada do Carnaval passado pra dar saída agora e vai ficar no prejuízo”.
Edvaldo tem três filhos. A mais velha, que por coincidência também se chama Tamires, de 31 anos, casou e se mudou para a Noruega, onde vive há 15 anos com o marido. O do meio, Tiago Marques da Silva, 30, também é comerciante informal como o pai e vende cerveja, refrigerante e macaxeira com charque no Carnaval. Ao contrário do pai, ele é cadastrado pela Prefeitura. “Espero que dê certo essa história da volta do auxílio emergencial. Muita gente precisa desse dinheiro para poder viver na pandemia”.
A combinação do fim do auxílio com o cancelamento do Carnaval também está atingindo os comerciantes informais do Recife. É o que explica Edvaldo Gomes, 49 anos, que comercializa óculos escuros na Conde da Boa Vista, zona central da Capital. Com a experiência de quem foi um dos fundadores do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal do Recife (Sintraci) e é o atual presidente da entidade, Edvaldo conhece bem os altos e baixos do comércio ambulante na Região Metropolitana da Capital.
Ele explica que os ganhos do Carnaval são fundamentais para que os comerciantes informais reforcem o caixa para enfrentar o inverno, o período em que as vendas caem significativamente. “Quem trabalha no comércio informal sabe que o período de inverno, entre abril e julho, tem muita chuva, férias dos colégios e o impacto negativo nas vendas é muito grande. O Carnaval é quando você ganha um dinheiro extra e vai controlando para não faltar mercadoria, pagar as dívidas devagarinho até o inverno passar e as vendar voltarem a aumentar”, conta.
Apesar de trabalhar no Recife, no Carnaval de 2020 Edvaldo vendeu óculos escuros em Olinda e faturou 4 mil reais. Ele diz que é muito comum que os ambulantes da Capital se desloquem para Olinda nos dias da festa. “Todo mundo vai pra Olinda. Em Recife tem pouco espaço para os ambulantes. No Marco Zero são só uns 200 autorizados pela Prefeitura”.
Se oficialmente a Prefeitura de Olinda cadastra em torno de 1.500 ambulantes, mais de 5 mil trabalham nas ruas da cidade durante o Carnaval. “Pelo menos quatro vezes mais do que os números oficiais. São cadastrados os vendedores de comidas e bebidas nos principais polos, Carmo, Varadouro, mas na rua do viaduto até a entrada tem um monte de ambulantes sem cadastro que eles deixam trabalhar. E muitos outros espalhados por outras ruas”, afirma Edvaldo.
O boom do comércio informal no Carnaval da Capital acontece no Galo da Madrugada. “Aí sim tem um impacto muito grande. Só na rua do metrô até a Guararapes dá mais de 500 ambulantes trabalhando”, contabiliza.
Questionadas pela reportagem, as assessorias da Prefeitura de Olinda e Recife reconheceram em nota a situação difícil dos trabalhadores que movimentam a economia no Carnaval, tanto os comerciantes informais quanto todo o pessoal da Cultura, e disseram que estavam ouvindo os segmentos e analisando formas de minimizar as perdas para esses setores.
Segundo a Prefeitura de Olinda, o Carnaval de 2020 movimentou 295 milhões de reais na cidade, com a circulação de 3,6 milhões de foliões. No Recife, foram 2 milhões de foliões e R$ 1,5 milhão de faturamento no comércio.
Para o presidente do Sintraci, o impacto maior para os trabalhadores informais vai vir da interrupção dos desembolsos do auxílio emergencial. Por se desenrolar no campo da pequena economia, o comércio informal aumenta ou diminui de acordo com a dinâmica da circulação de renda dos trabalhadores e aposentados.
“O mês do comércio informal se divide em dois. Do finalzinho do mês até o dia 5, os aposentados recebem, e do dia 5 até o dia 20, os trabalhadores formais e servidores também. Nesse período, as vendas são muito boas. Nos últimos dez dias do mês, as vendas caem de 40 a 70%. O dinheiro acaba. Agora imagine a queda nas vendas sem o auxílio emergencial?”, indaga Edvaldo.
Auxílio emergencial injetou 10,7 bilhões em Pernambuco
É possível responder à pergunta de Edvaldo Gomes com números. O auxílio emergencial injetou 10,7 bilhões de reais na economia de Pernambuco em 2020, o equivalente a 5,5% do PIB estadual. Os recursos beneficiaram diretamente 3,6 milhões de pessoas, pouco mais de um terço de toda a população do estado. Em 131, das 184 cidades de Pernambuco, o impacto do auxílio emergencial superou os 10% do PIB municipal.
Todo esse recurso deixa de ser repassado num momento de agravamento da crise econômica. A taxa de desemprego está acima dos 14%, com mais de 14 milhões de desempregados em todo o país. Para se ter uma ideia, do terceiro trimestre de 2019 até o terceiro trimestre de 2020, foram fechadas 3,6 milhões de vagas de carteira assinada no país, considerando apenas o setor privado. No Nordeste, a taxa de desemprego salta para 17,9%. Em Pernambuco, ele é ainda maior e chega a 18,8%, segundo dados da PNAD Contínua do terceiro semestre de 2020, a última divulgada pelo IBGE.
O aumento da inflação é mais um problema a atingir a população de mais baixa renda. O IPCA fechou 2020 com aumento de 4,52%, enquanto o preço dos alimentos cresceu 14,09%. O acumulado do aumento do valor da cesta básica em Recife foi de 19,20%. Com o custo de 469,39 reais, só a cesta básica consome quase metade da renda (48,56%) de um trabalhador recifense que ganha 1 salário mínimo.
Com ficam os grupos mais vulneráveis com o fim do auxílio emergencial?
O auxílio foi fundamental para o estado e o país como um todo. Você teve um incremento de renda que compensou – não dá para dizer que completamente – a redução das atividades do comércio, de serviços, cultura… Quando você tira o auxilio emergencial e não tem nenhum outra política para substituir, volta às políticas anteriores, como o Bolsa Família, que tem um valor inferior. Pior, a taxa de desemprego aumentou ao longo da pandemia, existem mais pessoas desempregadas e desempregadas há mais tempo, e caiu a qualidade das ocupações geradas. O estado perde a injeção dos recursos do auxílio emergencial no momento em que o mercado de trabalho se degradou.
Como virar o jogo?
Em 2021, vamos colher o fruto do projeto de desmonte do sistema de relação de trabalho e de proteção dos direitos sociais no Brasil, que teve início em 2016 (a partir do governo Michel Temer). A pandemia paralisa a economia e não há uma política de recuperação. O atual governo federal não pensa numa política e, mesmo que pense na possibilidade de uma política de crescimento econômico, nós sabemos que é uma política concentradora, direcionada para as regiões mais ricas do país. Os registros de novos beneficiados do Bolsa Família, por exemplo, foram maiores no Centro-Sul do que no Nordeste. Por isso, entendemos que é muito importante a iniciativa dos estados do Nordeste de construírem coletivamente as saídas para a região.
O aumento da inflação, especialmente dos alimentos, agrava a situação do mais pobres?
Além do desemprego, da redução da renda, estamos num momento onde voltamos a ter questões ligadas à insegurança alimentar. A população de baixa renda gasta proporcionalmente mais do seu orçamento com alimentação e, quando a gente olha para os dados de alimentação, eles tiveram um incremento muito significativo. Nós (Dieese) fazemos a pesquisa da cesta básica no Recife, enquanto o salário mínimo teve um aumento de 5,45%, que o governo está apontando chegar nos 1.102 reais, a cesta básica do Recife teve aumento de 19,20%. Você tem um descompasso entre o principal referencial de renda da economia brasileira e o comportamento médio dos preços de alimento, que é o principal item no orçamento das famílias de baixa renda.
Como o cancelamento do Carnaval atinge os mais vulneráveis, os trabalhadores do comércio informal?
O fim do auxílio, a ausência de políticas e o cancelamento do Carnaval não vão atingir apenas os mais vulneráveis. A situação vai piorar para os já vulneráveis e quem não é vulnerável vai entrar na vulnerabilidade. A classe média também será atingida. Veja a situação do Carnaval em Olinda, muita gente de classe média aluga suas casas por 10, 15, 20 mil reais contando com um renda extra. Não é só o Biu da barraca. Esse dinheiro extra está inscrito no orçamento anual dessas famílias de classe média. Recursos muitas vezes usados para melhorar a própria casa e que mobiliza a construção civil. E isso só faz aprofundar a crise dos mais vulneráveis. Porque esses vulneráveis também vivem da renda dessas famílias. Então você tem aí o encadeamento do empobrecimento da população.
Uma coisa leva à outra.
A economia é um circuito. As relações econômicas se dão entre as diversas classes sociais e as diversas faixas de renda, os diversos setores de atividade. Não existe movimento isolado dentro da economia. Não existe crescer o bolo e depois dividir o bolo. O bolo vai crescendo e sendo dividido.
Agora você tem menos dinheiro em circulação.
Você tem menos dinheiro circulando na economia, menos demandas por bens e serviços, menos geração de emprego e renda formal e informal. Adeus ao boom na venda dos supermercados. Eles não vão ter mais os 10,8 bilhões circulando na economia de Pernambuco em 2021. Dinheiro que caiu nas mãos das pessoas que utilizam integralmente os recursos. A capacidade de poupança das pessoas que receberam esse dinheiro é muito pequena, se é que ela existe. Menos dinheiro circulando na economia, é menos comércio, menos serviços, menos produção e mais desemprego. Esse é o circuito econômico, a tempestade perfeita do mal.
Com isso o trabalho informal vai crescendo.
Sim, porque a economia informal vai tomando o formato de estratégia de sobrevivência. Ela deixa de ser estruturada na barraca de seu Biu e o filho de seu Biu vai vender água no sinal porque a barraca está perdendo grana. Ela vai se modificando, se ampliando, mudando seu formato. Estratégia de sobrevivência é economia, mas ela é cada vez mais estruturada de forma pior. Ela vai empobrecendo. O trabalhador informal via de regra trabalha jornadas maiores, com rendimentos menores e maior risco à sua saúde. As perspectivas para essa população estão mais difíceis. Vivemos num país extremamente desigual, onde as oportunidades são desiguais. Na pandemia as pessoas de alta renda ampliaram seus ganhos e os de baixa renda ficaram mais pobres.
Qual o papel dos estados e municípios neste cenário?
Eles têm o papel de tentar promover políticas que acolham essas populações em situação de vulnerabilidade, para além da distribuição de cesta básica. Também não pode ser algo só para o período do Carnaval. Estados e prefeituras têm que pensar estratégias para todo o ano. Pensar que não é porque virou o ano-calendário que a gente está em outro ano. 2021 é continuidade de 2020. Temos o aumento de casos de coronavírus, mais de mil mortos por dia, a dubiedade das políticas de isolamento. Cadê o lockdown? Também têm o papel fundamental de pressionar o governo federal, através dos parlamentares, a engendrar atitudes reais de combate à crise econômica e de respeito à crise sanitária. Precisam questionar seus parlamentares, é preciso fazer o que se fez com o auxílio emergencial na primeira fase. É passar por cima do governo federal e forçá-lo a tomar uma atitude porque senão as pessoas vão continuar morrendo.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República