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Pessimista, Nicolelis diz que neurônios dos políticos brasileiros são mais lentos que o vírus

Raíssa Ebrahim / 11/03/2021

Crédito: José Luiz Somensi/Arquivo

No dia que marca um ano da declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis fez duras críticas aos políticos e demonstrou profundas preocupações com a condução do cenário no país. “No Brasil, o negacionismo tem sido uma das causas mais sérias de indução à morte”, afirmou em entrevista à Rádio Paulo Freire, com participação da Marco Zero Conteúdo.

Sua preocupação se dá num contexto em que o próprio presidente corre atrás de medicações “milagrosas” para fazer propaganda delas, municípios do sertão ainda usam ivermectina como protocolo, mesmo com a rede de saúde quase em colapso, como mostrou a reportagem em matéria nesta quarta-feira (10).

Na avaliação de Nicolelis, as fake news e informações incorretas têm contribuído não só para o aumento da mortalidade como também para efeitos colaterais danosos à saúde. Em São Paulo, várias pessoas foram admitidas nos hospitais com insuficiência hepática por causa de medicamentos que os próprios fabricantes diemz ser inúteis contra a covid-19.

No Brasil não tem outra saída, diz o cientista, é preciso fazer um lockdown nacional urgentemente. Isso já é consenso entre especialistas do Brasil e também de fora. “Os governantes foram empurrando com a barriga, veja o caso de Pernambuco, onde as taxas de ocupação de leitos são altíssimas há semanas e cidades como Petrolina estão sendo inundadas de casos, e os gestores ficam tentando medidas paliativas, como se o vírus só saísse à noite”, criticou.

“O toque de recolher inventado no Brasil como medida paliativa se transformou na saída da maioria dos governantes e realmente nesse estágio de transmissão não funciona”, acrescentou. “Eu sinceramente lamento a falta de ousadia e coragem de certos gestores para fazer o que precisa ser feito porque o preço a ser pago em vidas humanas vai ser altíssimo”.

Nesta quinta (11), pelo segundo dia seguido, o Brasil registrou mais de 2 mil mortes por covid-19 em apenas 24 horas, com a média móvel segue aumentando a cada dia. “Seguramente vamos atingir a previsão que eu tinha feito há dois meses, de 3 mil óbitos (diários) agora em março”, lamentou Nicolelis.

Sobre a postura do governos, ele defende que o preço político é muito menor do que o preço humanitário que o Brasil vai pagar – e já está pagando: “Se não fizermos o que tem que ser feito, podemos ter um número de mortes que pode colapsar o país como um todo”.

“Aparentemente as sinapses dos neurônios políticos brasileiros são muito mais lentas do que a taxa de transmissão do vírus”, disparou o professor. Ele reforça que o país precisa, “para ontem”, de medidas que combatam de frente a pandemia e, para isso, é preciso ajudar as pessoas a ficarem em casa com um auxílio financeiro, além do pequeno comércio e de linhas de crédito para os empresários que estão com dificuldade de manter seus negócios abertos.

“E o Brasil tem dinheiro para isso. Os políticos brasileiros parecem não dar ouvidos ao tamanho da crise que nós temos. Isso é independente de ideologias, partidos e orientações. Porque o vírus não tem nada disso, ele só quer se proliferar”, critica.

“A classe política brasileira perdeu o timing da pandemia, está perdida, não vive no século XXI e o Brasil precisaria, como nós recomendamos no Comitê Científico (do Nordeste), no dia 18 de dezembro de 2020, imediatamente de uma Comissão de Salvação Nacional, formada pelo Congresso, Supremo, governadores, sociedade civil, cientistas, para tirar o país dessa situação”, alerta Nicolelis mais uma vez.

“A minha saída do comitê se dá simplesmente porque eu sou cientista profissional. As pessoas no Brasil talvez não conheçam. Todo mudo sabe o que é o jogador de futebol profissional, uma artista profissional. Mas um cientista profissional é um bicho que as pessoas parecem não conhecer aqui no Brasil. Um cientista profissional não tem lero lero”, afirma.

“Cientistas profissionais que militam no mundo internacional da ciência têm um código de ética e de comportamento que é bem claro e direto e sem o famoso jeitinho brasileiro. Ciência não tem jeitinho”, alfineta.

Sobre as vacinas, o problema do Brasil, na visão de Nicolelis, é também de inépcia do governo federal em planejar estrategicamente aquisição de um número suficiente de doses para cobrir pelo menos uma boa parte da população brasileiro ainda no primeiro semestre.

“Ontem vimos um show sendo feito”, comenta ele sobre os anúncios de novas doses. Mas as vacinas prometidas, lembra, não vão chegar imediatamente no Brasil, vão levar meses, quando é preciso com urgência aumentar a taxa de vacinação em pelo menos dez vezes, calcula o especialista.

Sobre a circulação irrestrita de pessoas no território brasileiro, inclusive com notícias de pacientes contaminados viajando em voos comerciais sem qualquer controle, Nicolelis lembra que o país, na verdade, nunca fechou seu espaço aéreo internacional, o que permitiu que variantes de outros países entrassem no Brasil livremente. “O Brasil é um dos poucos países no mundo onde você não tem controle das pessoas que chegam nos aeroportos, ou seja, você não exigia documentação desde o começo da crise, não fazia testagem nem quarentena”, comenta.

“As pessoas chegavam aqui e iam para as festas, para o Carnaval ou qualquer coisa que estava acontecendo no Brasil. E foi aí que tivemos o início da pandemia e depois a entrada das variantes”, afirma o professor, lembrando que a variante da Califórnia foi identificada em Minas Gerais há três dias e é uma variante que ainda não se espalhou pelos Estados Unidos inteiro, mas aqui já chegou.

Pernambuco será central de testes genômicos

Também participou do programa a vice-diretora de pesquisas da Fiocruz Pernambuco, Constância Ayres. Ela anunciou que estão sendo feito investimentos para que o estado seja um polo para receber amostras de testagem genômica de todo o Nordeste. São esses testes que permitem estudar as variantes do vírus. A ideia é conseguir sequenciar em torno de mil amostras por mês.

“Com isso vamos conseguir dar uma respostas relativamente rápida”, detalhou acrescentando que isso será feito “periodicamente para tentar entender qual o impacto de cada uma dessas variantes e se estamos gerando novas variantes ou se variantes de outros locais ingressaram no país”.

Preocupada com a seleção natural que vem acontecendo e tornado o vírus mais resistente, o que pode inclusive comprometer a eficácia das vacinas, Constância colocou o desafio que é entender e mensurar a presença e circulação das variantes. A Fiocruz pretender acompanhar amostras do público geral, aleatoriamente, e também amostras que são mais específicas, de pessoas reinfectadas e também que tomaram a vacina e ainda assim desenvolveram a doença de forma leve.

A vice-diretora reforçou, assim como Nicolelis, a necessidade urgente de auxílio emergencial para dar condições das pessoas ficarem em casa. “Sabemos da realidade do impacto que a pandemia causou, principalmente na vida das mulheres negras”, pontou.

“Do que adianta fechar praias e parques e deixar as pessoas frequentando ônibus e metrô lotados? Isso são questões práticas que precisam ser respondidas”, criticou Constância, citando também igrejas lotadas e a decisão do governo de Pernambuco em manter as aulas presenciais. “Não adianta tomar pequenas atitudes e questões importantes que agravam a situação e que são críticas ficarem sem controle”, explica.

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AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com