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Crédito: Agência Brasília
O mês de março de 2020 já entrou para a história. O coronavírus pegou o mundo de assalto e se espalhou com a velocidade nunca antes vista. Naquela época, a tragédia que se concretizou não era tão clara para muitos: hoje, mais de 6 milhões de pessoas morreram em decorrência da doença. Foram dois anos difíceis. Com o aumento da vacinação, há a esperança de uma convivência menos traumática com o vírus, mas ainda não é uma volta ao que era antes.
Ao longo desses dois anos, a Marco Zero publicou mais de 250 reportagens, artigos e entrevistas sobre o coronavírus. Ao chegar aos dois anos de pandemia, fizemos duas perguntas para mais de uma dúzia de especialistas que ouvimos ao longo desse período.
A primeira pergunta é um olhar para o passado: quais foram os principais aprendizados durante os dois anos de pandemia no Brasil? A segunda, sobre o futuro: Muito tem se falado em tratar a covid-19 como uma endemia, pelo avanço da imunização da população brasileira. O que podemos esperar para o futuro da covid-19?
Abaixo, a fala dos especialistas de várias áreas que atuaram nesses dois anos de pandemia do Sars-Cov2 sobre o que aprendemos nestes dois anos. E neste link o que podemos esperar para o futuro.
“Aprendemos que qualquer evidência, capacidade de escuta e respostas concretas precisam pensar em projetos políticos, sociais e ambientais reais. A pandemia da covid-19 agudiza situações crônicas e não podemos naturalizar a morte de idosos, indígenas, pessoas negras, pobres, violência contra as mulheres e misoginia. O enfrentamento nesses dois anos precisou evidenciar a necessária articulação de respostas coordenadas, que tornassem claras e bem estabelecidas essas causas, para além da história natural da doença. Foi e é necessário sermos pesquisadoras implicadas com o mundo, com as pessoas para além das constatações.”
Bernadete Peres, médica sanitarista, professora do Centro de Ciências Médicas da UFPE
“Tivemos muitos aprendizados nessa pandemia, alguns que já vinham de outras pandemias e epidemias, mas que foram colocados à prova agora, e outros que vieram do entendimento das consequências da infecção por esse novo vírus. Em um resumo curto, nós aprendemos como segurar a transmissão do vírus através de distanciamento social, uso de máscaras e ventilação de ambientes. Aprendemos como tratar melhor os pacientes com Covid-19 grave e temos hoje protocolos mais bem estabelecidos para os hospitalizados. Aprendemos que a vacina e a alta cobertura vacinal têm um impacto crucial no combate ao agravamento da doença. Acima de tudo, aprendemos que precisamos estar alinhados com a ciência para combater a atual pandemia e as futuras.”
Lorena Chaves, virologista e pesquisadora da Universidade Emory Atlanta (EUA)
“O maior aprendizado foi acreditar na ciência: se vacinar, higienizar as mãos, evitar aglomerações e usar máscara. Se tivéssemos aceitado as recomendações dos especialistas, desde o começo da Ppandemia, certamente não teríamos alcançando a vergonhosa marca de mais de 650 mil vidas ceifadas pelo Sars-Cov-2 no Brasil, das quais pelo menos 400 mil poderiam ter sido evitadas! Enquanto vários países estavam apoiando as iniciativas de desenvolvimento de vacinas e enfrentando a pandemia, através das medidas não farmacológicas, o Brasil investia modestamente em apenas uma iniciativa (Astrazeneca), renegava outra (Coronavac) e ignorava, diversas ofertas, da vacina mais utilizada no mundo (Pfizer). O Governo Federal ainda subestimava a situação, promovia aglomerações e desdenhava sobre a necessidade do uso da máscara. Infelizmente, depois de dois anos, ainda existem negacionistas que não acreditam na pandemia ou que ela não tenha acabado, pessoas que não se vacinam e gestores que estão flexibilizando as aglomerações e o uso de máscaras, mesmo diante da alta circulação do vírus e dos números inaceitáveis de óbitos diários. Felizmente, a maioria da população acredita na ciência e está se vacinando. Mas temos ainda de continuar insistindo que não é hora de abandonar as medidas de prevenção: higienização das mãos, distanciamento social e uso de máscaras. Esse tem sido o aprendizado mais difícil de se seguir, embora extremamente necessário para sairmos da fase aguda da pandemia”.
Rafael Dhalia, cientista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco (Fiocruz-PE)
“Quando a pandemia começou, inocentemente, muitos acreditamos que a humanidade sairia mais solidária e exercitando a compaixão. Não foi esse, no entanto, o caminho escolhido. Tempos e epidemia são sempre paradoxais. São tragédias, mas resultam em um imenso aprendizado, seja a nível organizacional dos serviços de saúde, aqui incluída a vigilância epidemiológica e a rede de atenção à saúde, seja de ganhos de conhecimento científicos. Exemplos recentes são a epidemia da microcefalia e da própria covid.
No entanto, o Brasil enfrentou muito mal a pandemia, como denunciamos ao longo desses dois anos. Erros de condução, desinformação e preconização de tratamentos comprovadamente ineficazes, foram a tônica dos principais responsáveis pela condução da pandemia. Mas, mesmo assim, considero que ficam algumas lições, algumas positivas e muitas negativas.
Como lições positivas considero que tanto os estados quanto os municípios, embora tendo negligenciado vários aspectos importantes, como incorporar adequadamente o PSF ao enfrentamento da pandemia, conseguiram organizar a rede de alta complexidade, mobilizar profissionais, equacionar a regulação de leitos. Não fosse a ação desses gestores, teríamos chegado à casa do milhão de mortes.
Fica ainda a lição de que o mundo científico tem que aprender a dialogar cada vez mais, e melhor, com a população. O histórico distanciamento entre geração de conhecimento nos espaços de pesquisa, e o diálogo com a população dificultou a compreensão de aspectos importantes, somados à contrapropaganda dos negacionistas, muitas vezes mais imediatamente difundida por não ter compromisso com a verdade. Mas, inegavelmente, os avanços no conhecimento da doença, do seu manuseio clínico e sobretudo, nas vacinas, foram ganhos sem precedentes. Em tempo recorde, aspectos fisiopatológicos da doença foram sendo compreendidos (ainda há muito a se compreender), assim como, em tempo recorde assistimos ao surgimento de vacinas eficazes que tem impedido aumento de mortes, mesmo diante do aumento de casos, e mais recentemente, avanços na produção de antivirais.
Outro ponto positivo foi o reconhecimento da Anvisa como órgão regulador independente, algo que precisa ser preservado.
Como lições negativas, fora as inúmeras denunciadas ao longo dos dois anos, e evidenciadas na CPI da Covid, fica a assustadora queda das coberturas vacinais, que sempre foram exemplo para o mundo. Sobretudo, as contrainformações advindas por quem deveria comandar as ações com seriedade, gerou tensões e desconfiança por parte de parcela da sociedade. O Brasil tinha tradição de excelente vigilância epidemiológica, de uma rede sólida de laboratórios públicos, mas que vem resistindo ao sucateamento e ao desfinanciamento da pesquisa e do SUS.
Mas talvez a lição mais importante seja o reconhecimento da importância do SUS. Sem ele, e com todos os ataques que vem sofrendo, o Brasil teria assistido a dizimação de milhares e milhares de pessoas, em um nível inimaginável.
Tereza Maciel Lyra, professora da Universidade de Pernambuco (UPE) e médica sanitarista na Fiocruz-PE
“A pandemia trouxe uma série de aprendizados em vários âmbitos. O primeiro deles foi a importância do investimento contínuo e robusto em ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I). Foi graças à ciência que o vírus foi descoberto rapidamente, seu genoma decodificado, os testes de diagnósticos desenvolvidos e as vacinas produzidas em tempo recorde. Em relação às vacinas, que são a maneira mais eficaz para controle de covid-19, houve grandes avanços. Pela primeira vez, vacinas baseadas em adenovírus recombinantes (AstraZeneca, Janssen, Sputnik) e RNA (Pfizer) foram aprovadas para uso em humanos e elas exibiram excelente perfis de segurança e eficácia. A consagração dessas plataformas vacinais certamente pavimenta o caminho para o desenvolvimento de vacinas para diversas outras doenças, com zika, chikungunya e dengue. Também foi ratificada a importância de se ter um SUS forte, transparente e bem preparado para as emergências sanitárias atuais e futuras. Será fundamental nos prepararmos para a próxima pandemia com a expansão das fábricas de vacinas existentes e construção de novas para que as vacinas sejam produzidas em menor tempo e, assim, imunizar rapidamente a população e salvar vidas.
Uma lição que veio com a pandemia foi a importância do controle de entrada e testagem de passageiros que vêm de países que estão sendo acometidos por alguma doença infectocontagiosa. Outro ensinamento foi a importância de preservação do meio ambiente e a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas. Foi comprovado que o vírus se originou em morcegos e depois começou a cadeia de transmissão em humanos, seja diretamente ou através de algum animal silvestre, até então desconhecido, como hospedeiro intermediário. Sabemos que as atividades antrópicas que afetam o equilíbrio ambiental, como o desmatamento, tráfico de animais silvestres, urbanização descontrolada e perda de habitats, favorecem a gênese e disseminação de vírus até então restritos às regiões selvagens. Tenho dúvidas de que essas duas últimas lições não foram bem assimiladas pelos gestores públicos e talvez iremos repetir esses erros novamente no futuro.
Por último, testemunhamos um tsunami de fake news durante toda a pandemia e um movimento antivacina crescente e muito atuante. Acredito que será importante regulamentar e punir a disseminação de notícias falsas por parte do Congresso Nacional e pelos conselhos profissionais federais e regionais (medicina, medicina veterinária, enfermagem, biomedicina, etc), pois a propagação dessa desinformação por cidadãos comuns e por profissionais de saúde dificultaram a implementação das medidas de controle da covid-19 (uso de máscaras, distanciamento social, vacinação, higiene das mãos, etc) e, certamente, contribuíram para milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.
Lindomar Pena, virologista e pesquisador na Fiocruz-PE
“Se estivermos falando em aprendizados que realmente colocamos em curso, infelizmente não os vejo, pois estamos ainda com um nível alto de vírus circulante (conseguimos ver isso pela quantidade de casos notificados por dia em relação com outras doenças endêmicas), estamos com um nível de óbitos muito alto em relação às doenças similares (influenza) e mesmo assim estamos já assentando em uma “vida normal” sem levar em conta esse impacto que ainda existe. Se estivermos falando em aprendizados no geral, acredito que o maior deles tenha sido seguir a ciência, e quando falo em ciência, digo o método científico, que nos trouxe as vacinas e também nos trouxe análises detalhadas de ondas epidemiológicas, nos mostrando rapidamente como poderíamos passar por novas ondas. Além desse aprendizado, também vejo o protagonismo do jornalismo de dados, que tanto ajudou a informar com matérias e reportagens muito pertinentes.”
Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede Análise Covid-19
“Estamos aprendendo que “máscaras adequadas e bem ajustadas” ao rosto são para covid e doenças respiratórias o que as “camisinhas” são para AIDS (há décadas que fazemos vídeos ensinando os adolescentes e até adultos a usarem preservativos corretamente para não danificá-los e deixá-los eficazes e até mais atraentes (a indústria criou sabores, cores, glamour). Precisamos ainda fazer o mesmo com as máscaras PFF2, mas creio que estamos no caminho do aprendizado. Estamos aprendendo que digitalizar e desburocratizar vários processos do nosso dia a dia (contas de energia, carteiras de habilitação, compras on-line) evita que tenhamos que nos expor desnecessariamente e insalubremente em filas e ambientes aglomerados, inclusive para outras doenças. Temos aprendido a valorar melhor nossos hábitos de vida, trabalho, moradia, transporte… muitos estão optando em viver onde antes “só passavam férias”, criando oportunidades e desburocratizando vistos e contratos de trabalho, melhorando a qualidade de vida como um todo, o que reduz os riscos em prováveis novos surtos de doenças. Estamos aprendendo que “escritório, salas de aula, campi universitários” não são mais tão necessários para o trabalho/aprendizado/experiências mas que sentimos muita falta do social, convívio humano, etc e estamos aprendendo que há locais mais agradáveis e saudáveis para socializar: como praças, parques, praias, montanha. Aprendemos a deixar os dados mais transparentes à população. Todos os estados do Brasil eram avaliados no início da pandemia o que os estimulou a melhorarem seus graus de transparência que perduram até hoje”.
Jones Albuquerque, cientista do IRRD e do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami – UFPE e professor da UFRPE
“A pandemia de Covid-19 é um evento da comunidade global que afetou a todos brasileiros de alguma forma. Houve muitos impactos negativos, incluindo doenças e perda de vidas, isolamento psicossocial, perda de escolaridade, emprego e dificuldades financeiras. Entendo que a ciência no Brasil ficou mais reconhecida pela população em geral porque os cientistas propuseram ações precisas no combate aos flagelos provocados pela pandemia.”
Gauss Cordeiro, estatístico e professor da UFPE
“Um grande aprendizado é sobre como a sociedade civil é importante nesses grandes temas: pandemia, crise climática etc. Ainda mais em um país como o Brasil, que não teve uma coordenação central, onde foi tudo bagunçado, deu para perceber que a participação da sociedade civil, de pessoas autônomas, indo atrás de informar a população, foi e tem sido muito importante para o curso da pandemia. Claro que é um raio de alcance limitado, porque não tem a estrutura do estado para dar suporte, mas acho que a sociedade civil conseguiu pautar debates. O grande exemplo é o uso de máscaras melhores, que foi uma discussão puxada pela sociedade civil e que os meios de comunicação embarcaram. É um grande avanço de aprendizado na pandemia. Outro aprendizado, ou constatação, é como está distante ainda termos uma coletividade construída, para a gente conseguir sair de problemas. A pandemia é meio que um tubo de ensaio para a crise climática que está por vir. Se tivéssemos realmente nos unido, acho que a gente conseguiria ter outro resultado nessa pandemia. A gente enfrenta ainda uma onda de desinformação tremenda, e isso é um desafio a mais”.
Bruno Issao Matos Ishigami, médico infectologista do Hospital Universitário Oswaldo Cruz.
“Então acho que falar de aprendizagens é uma soma de fatores né? É complexo priorizar algumas aprendizagens, mas tem algumas situações que chamaram atenção. Primeiro: não entrar em uma pandemia ou algo do tipo sem formar um comitê de combate à crise com profissionais multidisciplinares e preparados pra agir na hora certa, voltar atrás com as ações que foram feitas e, se necessário, remontar estratégias. Isso é o que realmente forma um comitê multidisciplinar que trabalhe em conexão com a sociedade, por exemplo com um projeto nacional de orientação social ou com uma liderança que mostre ao povo o caminho pra seguir essas orientações. E também que trabalhe com comitês de acompanhamento do desenvolvimento científico local. E isso leva a uma questão em que nós somos frágeis: na produção de insumos farmacêuticos ativos e de equipamentos hospitalares, o que nos ensinou até que dar atenção ao desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Essas são aprendizagens que a gente precisa ficar de olho. Claro que a chance é mínima de dessa pandemia nos ensinar isso. Falo em chance mínima porque a gente está entrando numa numa eleição majoritária para a presidência, então a gente está discutindo que todo mundo apoia a ciência, ou quase todo mundo apoia a ciência, mas sem projetos claros, entende? Isso é um pouco assustador para quem que faz ciência e também consegue olhar para o desenvolvimento científico além dos nossos próprios projetos. São as questões bem complexas que a gente tem que olhar e tem que aprender com isso.
Gustavo Cabral, imunologista e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP)
“Em termos de aprendizado na parte científica nós avançamos muito no conhecimento sobre o Sars-Cov-2 devido à capacidade tecnológica que existe hoje no mundo. No Brasil, conseguimos gerar milhares de genomas e entender rapidamente o surgimento de novas linhagens, né? Detectar rapidamente, adaptar rapidamente para isso. Além disso, essa direção massiva de dados também permite gerar medicamentos, desenvolver vacinas de uma maneira muito mais rápida. Isso não só através do sequenciamento mas também de novas tecnologias e na própria produção de vacinas. Então esses são pontos muito positivos. Agora, quanto a conversão dessa conhecimento para saúde pública, eu posso dizer que a gente também teve aprendizados importantes. Porque a ciência está em primeiro plano em várias vários países do mundo e tomando um papel preponderante na tomada de decisões. Isso é muito importante porque essa geração rápida de conhecimento, que afeta o dia a dia da população, é crucial para o controle do Sars-Cov-2. A ciência tomou uma posição de vanguarda, mostrando que pode dar uma resposta de saúde pública quase em tempo real para tomar as decisões e diminuir expressivamente o impacto de vírus altamente transmissíveis”.
Gabriel Wallau, biólogo e pesquisador da Fiocruz-PE
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org