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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
No dia 13 de julho de 2022, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que tem por objetivo garantir a proteção integral de indivíduos menores de idade, completa 32 anos. Apesar da vigência da legislação, a violência contra crianças e adolescentes ainda é uma prática constante no país, como foram os casos das mortes em Pernambuco de Heloysa Gabrielle, Victor Kawan e Jonatas Oliveira.
Um relatório elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e divulgado em 2021 identificou 34.918 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 19 anos no Brasil, ocorridas entre 2016 e 2020. O levantamento, intitulado “Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil”, também verificou o crescimento de mortes em consequência de intervenções policiais, que, em 2020 representou mais de 15% das mortes violentas desse grupo.
De acordo com Juliana Accioly, advogada e coordenadora do projeto Teia de Proteção, do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), é preciso considerar os diferentes contextos sociais de crianças e adolescentes para mitigar as violências: “quando a gente pensar em infância, a gente precisa pensar primeiro em qual infância importa, qual criança importa, porque a gente tem uma criança branca e moradora do centro urbano que tem acesso a políticas públicas e também temos uma infância que quase sempre é invisibilizada e não é reconhecida como uma infância digna de proteção. Então, precisamos estar atentos aos recortes de raça, gênero e territorialidade que são fatores que agravam as violências”.
A pesquisa realizada pela Unicef concluiu ainda que meninos negros são as maiores vítimas de violência em todas as faixas etárias. São também os meninos negros entre 15 e 19 anos que mais morrem em decorrência de ações da polícia. ”A gente precisa desnaturalizar casos de racismo e para isso precisamos que a política racial seja tratada com prioridade pelas forças de segurança”, reforçou Juliana.
Entre os estados com o maior número de mortes violentas intencionais de vítimas entre 10 e 19 anos, notificados pelo panorama da Unicef, Pernambuco ficou em terceiro lugar, antecedido apenas pelos estados do Ceará (1º lugar) e Acre (2º lugar). O alto índice de violência no estado foi reiterado nos últimos meses, quando assassinatos de crianças e adolescentes comoveram e mobilizaram a população pernambucana. Muitos desses crimes ainda seguem em investigação e a Marco Zero Conteúdo reuniu informações sobre o andamento dos processos judiciais e inquéritos policiais instaurados para apurar os assassinatos de Heloysa Gabrielle, Victor Kawan e Jonatas Oliveira, vítimas de disparos de armas de fogo.
Na tarde do dia 30 de março de 2022, Heloysa Gabrielle, de apenas 6 anos, foi atingida por disparos de arma de fogo enquanto brincava em frente a casa de sua avó. O assassinato aconteceu em Porto de Galinhas, distrito de Ipojuca, na Região Metropolitana do Recife. Lolô, – como era conhecida pela vizinhança – , foi baleada durante uma ação do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) na comunidade de Salinas, que perseguia um suspeito que estava em uma moto.
Na época do crime, o diretor integrado especializado da Polícia Militar, coronel Alexandre Tavares afirmou que os policiais do BOPE dispararam para reagir a uma suposta ação do suspeito e que houve troca de tiros. Porém, vizinhos e parentes da criança, que testemunharam o crime, afirmam que os tiros que atingiram Heloysa foram disparados pela polícia, pois não teria ocorrido tiroteio algum. “Eles querem que a gente fale que foi troca de tiro, mas não foi troca de tiro. Eu estava no momento e vi o que foi a pior cena da minha vida”, declarou uma vizinha da avó de Heloysa e testemunha oficial do caso, em entrevista à Marco Zero em abril.
Após protestos realizados por moradores da comunidade de Salinas e familiares de Heloysa, no dia 6 de abril de 2022, o governador Paulo Câmara recebeu os pais e os tios da criança para conversar sobre o processo de investigação do assassinato. Na ocasião, Paulo Câmara afirmou que: “a investigação do caso será rigorosa e célere”. No entanto, mais de quatro meses depois, o inquérito policial ainda não foi concluído.
A reportagem procurou a Polícia Civil de Pernambuco para saber o andamento das investigações e a resposta enviada por e-mail foi a seguinte: “A Polícia Civil de Pernambuco informa que o caso caminha para a conclusão do inquérito”. De acordo Eliel Silva, advogado do caso, a reprodução simulada do crime ainda não foi devolvida ao delegado da Delegacia de Prazeres, responsável pela elaboração do inquérito policial.
Foi na garupa da moto de seu amigo que Victor Kawan, de 17 anos, perdeu sua vida. A causa da morte: atingido por disparos de arma de fogo durante uma abordagem policial. O assassinato aconteceu na tarde do dia 11 de dezembro de 2021, no Sítio dos Pintos, em Dois Irmãos, zona oeste do Recife. Só em junho deste ano, seis meses após o crime, o inquérito foi concluído, mas ainda há contestações que a família deve levar a justiça.
Os depoimentos sobre o assassinato divergem. A Polícia Militar informou que houve troca de tiros e uma arma foi encontrada com o adolescente. No entanto, familiares de Victor e testemunhas do crime negam a versão apresentada pela polícia e afirmam que os policiais começaram a atirar em direção aos jovens quando Wendel Alves – amigo de Victor Kawan – , demorou a parar a moto pois não tinha habilitação e estava assustado com a abordagem da polícia. Além disso, os familiares declaram que a arma encontrada com Vitor Kawan não era dele e teria sido “plantada” pela própria PM.
O inquérito policial do assassinato foi concluído há duas semanas. O delegado responsável pela investigação entendeu que os policiais foram responsáveis pela morte de Victor Kawan e por isso devem ser julgados pelo crime de homicídio doloso, quando há intenção de matar. Porém, o inquérito não considerou a fraude processual – quando a polícia manipula o espaço do local do crime – defendida pela família da vítima. O inquérito policial foi realizado pela 5ª DHPP.
Agora, o advogado da família de Victor Kawan vai recorrer ao Ministério Público para denunciar a fraude processual que não foi considerada pelo delegado na conclusão do inquérito. A expectativa é que a denúncia feita ao MP vire um processo criminal e, assim, os policiais possam ir à júri popular.
“A família também pretende entrar com uma ação na Defensoria Pública solicitando reparação pela morte do jovem já que ele é vítima do Estado, que tem o dever constitucional de reparar a família, afinal, estamos falando de uma pessoa de 17 anos que tinha toda uma vida pela frente e que deixou de ser apreciada em razão da letalidade policial”, afirmou Eliel Silva, advogado popular e membro do projeto Oxé responsável pelo caso.
No dia 10 de fevereiro de 2022, Jonatas Oliveira, de 9 anos, foi assassinado a tiros dentro de sua casa por sete homens armados e encapuzados que invadiram sua casa. A criança estava escondida embaixo da cama com sua mãe quando foi atingida. O crime aconteceu no Engenho Roncadorzinho, em Barreiros, na Zona da Mata Sul de Pernambuco.
Jonatas era filho de Geovane da Silva, líder rural e presidente da associação dos agricultores de Roncadorzinho. Por viver em uma zona rural conhecida por sofrer com conflitos agrários, e ser filho de uma liderança que já havia sido ameaçada anteriormente, moradores do engenho e familiares da criança acreditam que a morte de Jonatas foi motivada pela disputa de terras na região.
No dia 17 de fevereiro, um dia após o crime, a Polícia Civil afirmou que a ação que resultou na morte da criança foi realizada a mando de traficantes, que estavam se vingando de Geovane após o agricultor se recusar a vender suas terras. A polícia declarou, ainda, que o mandante do crime já estava preso por outras ocorrências.
O inquérito policial foi concluído aproximadamente 60 dias após o assassinato da criança. Cinco suspeitos de participar do crime foram presos, mas a pessoa que a polícia identifica como principal executor da ação ainda está foragido.
“No nosso entendimento não existe apenas um mandante e sim interesses congêneres em uma região onde os moradores estão ameaçados de despejo. […] Por isso, nós achamos que a polícia deveria investigar quem é o mandante do mandante porque não há outra motivação para essa violência a não ser o conflito agrário”, afirmou o advogado da família de Jonatas e representante da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado de Pernambuco (Fetape), Lenivaldo Marques.
Ainda de acordo com o advogado, moradores do Engenho Roncadorzinho e a família de Jonatas Oliveira seguem em diálogo com órgãos da Justiça, entre eles o Ministério Público, a fim de garantir a segurança da região, que segue sendo alvo constante de ameaças e conflitos motivados pela disputa de terras.
“A gente entende que as vítimas de racismo precisam de apoio no campo jurídico, mas as violências também fazem com que as pessoas necessitem de acompanhamento e cuidado com a saúde mental”, afirmou o advogado popular Eliel Silva ao se referir ao projeto Oxé.
Lançado em 2021, o Oxé é uma iniciativa do movimento negro para amparar vítimas de racismo e seus familiares. Criado pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco em parceria com o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e a Articulação Negra de Pernambuco (Anepe), o projeto é formado por advogados, assistentes sociais e psicólogos negros, que prestam um atendimento jurídico e psicossocial.
Atualmente, o Oxé trabalha com 15 casos de violência e racismo que aconteceram em Pernambuco, entre eles, os assassinatos de Heloysa Gabrielle e Victor Kawan. Advogado atuante no Oxé, Eliel Silva fala sobre a relevância da iniciativa para as famílias das vítimas:
“As pessoas não têm letramento quando estão trabalhando com esse tipo de crime, muita gente não conhece as legislações sobre crimes de racismo no Brasil e por isso não entendem a jurisprudência desses casos. Muitas vezes os próprios profissionais servidores públicos não têm esse conhecimento e não conseguem nem diferenciar injúria racial de racismo”, completou o advogado.
Além da importância de ter pessoas negras atuando em casos de racismo, as ações de mobilização realizadas pelas famílias junto à Anepe, que tem por objetivo cobrar respostas do Governo do Estado e das forças de segurança pública no processo de investigação e punição dos autores das violências, é mais um êxito impulsionado pelo projeto Oxé.
“Eu vejo essas mobilizações como uma forma essencial de agilizar uma resposta que pode gerar um alívio para a família no primeiro momento, mas o mais importante é que a partir das manifestações populares a gente deixa de olhar esses casos com naturalidade e aceitar que eles se repitam constantemente”, disse Eliel Silva.
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.