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Primeiro dia sem Miró, um dos maiores poetas da língua portuguesa

Inácio França / 01/08/2022
Miró da Muribeca: Homem negro, magro, de boca aberta soltando um grito, vestindo camisa blusa estampada multicolorida com colar que parece ser uma guia de candomblé em cor clara, com a mãe eaquerda fazendo gesto enérgico.

Crédito: Pedro Caldas/Cortesia

Poeta marginal. Poeta periférico. Poeta alternativo. Ontem, depois de sua morte, inventaram mais uma para rotular Miró da Muribeca: “Poeta urbano”.

Fosse branco e acadêmico, editores e colunistas da mídia pernambucana não fariam tantos malabarismos para tentar enquadrar o que não conseguiram compreender. Seria apenas poeta. Se fosse para arrumar adjetivos para qualificar o substantivo, diriam “maior poeta contemporâneo” da língua portuguesa. Não o fazem porque se trata de um preto, pobre, que andava de ônibus e não estava nem aí para casa própria, plano de saúde e boletos no fim do mês.

Ou um dos maiores da nossa língua, como afirma a amiga Cida Pedrosa, com a autoridade de quem escreveu o Livro do Ano de 2020.

Não é apenas Cida e este escriba que dividimos essa convicção. Quem não acredita, que visite o Museu da Língua Portuguesa, no coração de São Paulo. Miró está lá, mais vivo do que nunca, declamando seus versos em um totem logo na entrada da exposição permanente. Pelos próximos 20 ou 30 anos, Miró continuará lá, em vídeo, recitando seus poemas repletos de fúria e delicadeza.

Conhecia pouco Miró, mas todas as vezes que sentei à mesa com ele, tomava contato com a gentileza, o cuidado, a fala mansa, o carinho, que o tornavam tão leve. Todas as vezes em que testemunhei suas performances, era invadido por sua lírica furiosa, arrebatadora.

Duas imagens me vem à cabeça quando tento traduzir como percebo o poeta e sua obra. Para mim, Miró era uma força da natureza, um fenômeno como uma erupção vulcânica, um Krakatoa emoldurado pela aurora boreal. Ou, para ficar em um cenário mais pernambucano: uma tromba d’água com aroma de jasmim.

E tal qual uma enchente ou as lavas de vulcão, ele arrastava o público junto. Ninguém ficava impune ao lirismo disruptivo dos seus versos. Não à toa, em seu funeral, no cemitério de Santo Amaro, não só os poetas, mas também fãs, amigos, amigas, admiradores e admiradoras, arriscaram declamar versos ao lado do caixão que descia à cova simples, cavada diretamente no solo do Recife.

Dezenas de poetas ou fãs de Miró o homenagearam durante o velório e o enterro. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

O poeta nosso de cada dia

Um dos primeiros textos publicados pela Marco Zero, antes mesmo do site completar um mês de existência, foi sobre a primeira quase-morte do poeta. Mais crônica que reportagem, escrita por Samarone Lima, nosso amigo em comum. “Miró não tem explicação. É como a poesia, a saudade, um encanto por um nada que alguém viu. Ele costumava ver esses nadas e escrevia. Tão bom ter existido Miró no mundo, que eu só agradeço e celebro. Não há dor por uma vida tão intensa, tão pura”, escreveu Sama.

Já médica Ana Brito, que vive em um universo tão distinto do de Miró, fez um relato que dá a ideia do poder da poesia desse homem: “Amara Santana é funcionária da minha casa há muitos anos, é semi-analfabeta, lê palavras e frases simples, escreve menos ainda, mas adora limpar os livros comigo. Outro dia, numa dessas faxinas, descobriu que tinha dois livros iguais de Miró, O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera). Pediu-me um deles. Dei-o, claro! Mas tive a curiosidade de perguntar o porquê, já que ela vivia no meio de tantos livros, alguns outros repetidos, e ela nunca me pedira nenhum antes. Ela me respondeu, sem titubear: ‘ele fala como eu, e sente o que eu sinto’. E nunca pensei que poesia fosse uma coisa tão linda! Hoje dei-lhe a notícia de seu encantamento. Ela já sabia, e estava chorando lendo o livro com seu neto.”

Dona do Hotel Central, onde Miró passou seus últimos dias e morreu na madrugada de domingo, 31 de julho, Rosa Nascimento desabafou: “Tinha gente dizendo que Miró era um privilegiado porque morava no Hotel Central, mas era o contrário: o hotel é que teve a alegria de receber Miró. Ele faz parte do nosso hotel para sempre. E a festa de aniversário dele que seria sábado, está mantida. Às 10 horas de sábado, as portas vão estar abertas para todos os marginais da poesia do Recife homenagear Miró”.

Arquiteto e funcionário público, Alexandre Sávio Ramos, estava no cemitério, acompanhando o velório desde cedo. Antes, pelas redes sociais, havia feito um depoimento sobre o papel de Miró em sua vida:

Como estudante do Centro de Artes da UFPE, nos anos 1990, aprendi a escutar poesia e entender o mundo com a força de Miró. E desde então esse mundo ficou mais libertário e potente como ele sempre foi. Senti quando roubaram a bicicleta de Belinha ou o cheira-cola catava piolhos. E quando o mundo acabou e ele estava no Makro? E o cobrador, e os ônibus e o Capibaribe? Para ele, ‘domingo era o dia mais feliz/ Minha mãe fazia um macarrão / Com carne de lata e Q-suco.’ Como ele dizia: ‘que Deus te ilumine e que a Celpe não mande a conta’.”

Ramos ilustrou a postagem com duas fotos, a primeira, clicada pelo seu filho mais velho, está no alto deste texto. Na segunda, Miró está sentado ou acocorado, conversando com algumas crianças.

Sepultamento do poeta Miró da Muribeca. O artista faleceu aos 61 anos no último domingo (31). Miró lutava contra um câncer descoberto em 2020. O sepultamento de João Flávio Cordeiro da Silva foi realizado no cemitério de Santo Amaro, na cidade do Recife. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Porta retrato colocado sobre o caixão, com foto de Miró sendo beijado por sua mãe. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

A interação do poeta com as crianças era comovente. Vi isso de perto, em uma das vezes em que, junto com minha família, o encontrei num pequeno restaurante da avenida Norte, onde ele oferecia seus livros de mesa em mesa. Ele me reconheceu, sentou-se conosco, beliscou um caldinho e danou-se a conversar com meu filho caçula, mais à vontade com um menino de 11 anos do que com os adultos.

Na verdade, o poeta que morreu pouco antes de completar 62 anos era um menino.

Mais uma vez, peço ajuda a Cida Pedrosa, a quem ele chamava de “mãe branca”. Detalhe: Cida é quatro anos mais nova. “Miró era meu poetafilho, poetamigo. Diferente de muita gente, nossa relação era dele frequentar minha casa, de quando ele tava muito ruim eu ir buscar e ele dormir no meu sofá, de passar uma semana aqui, de brincar com meu cachorro, de ter uma proximidade enorme com meus meninos, de saber que ele gosta de iogurte de morango, de suco de graviola e canja de galinha”.

Isso ela falou no primeiro áudio que me mandou (se recuperando de uma covid bem cabulosa, ela nem foi ao enterro), depois gravou outros para falar da importância poética da obra de Miró, achando que era isso que a Marco Zero queria. Não era.

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AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.