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Lula e aliados após primeiro discurso do presidente eleito na noite do domingo (30). Crédito: Ricardo Stuckert
O governo de reconstrução e reconciliação proposto por Lula em seu discurso da vitória estará repleto de desafios nas áreas política, econômica e social. Ninguém melhor do que o ex-presidente para enfrentá-los. O mandatário que deixou a Presidência com o maior índice de aprovação da história, elegeu e reelegeu sua sucessora, foi judicialmente perseguido e preso por 580 dias até sua libertação e a reabilitação de seus direitos políticos para construir uma frente ampla democrática, unindo adversários históricos, e derrotar nas urnas a máquina de Jair Bolsonaro.
“Eu me considero um cidadão que teve um processo de ressurreição na política brasileira, porque tentaram me enterrar vivo e eu estou aqui para governar esse país numa situação muito difícil, mas eu tenho fé em Deus que, com a ajuda do povo, nós vamos encontrar uma saída para que esse país volte a viver democraticamente, harmonicamente”, disse Lula em sua primeira fala pública depois de proclamado o resultado.
Antes de ter efetivamente a caneta na mão para governar, o presidente eleito precisa do acesso a informações detalhadas do governo Bolsonaro, incluindo as contas públicas, para preparar sua administração. Isso se dá por meio da montagem de um governo de transição com equipes dos dois lados, do atual e do futuro presidente, que deve funcionar nos dois meses que antecedem a posse.
A transição é regulamentada por lei de 2002 e decreto de 2010. O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB-SP), o ex-ministro Aluízio Mercadante (PT-SP) e a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann (PR), são cotados para presidir o gabinete de transição de Lula. A questão é saber o quanto Bolsonaro e seu governo vão colaborar com o processo.
O acesso aos dados das contas públicas, projetos e programas federais é considerado fundamental para que o presidente eleito abra negociações para ajustar a proposta do Orçamento de 2023 encaminhada pelo atual governo ao Congresso e tenha alguma margem de manobra para tirar do papel, ainda no primeiro ano de mandato, compromissos assumidos na campanha.
A proposta orçamentária elaborada pelo governo Bolsonaro não prevê reajuste do salário mínimo e nem garante recursos para a manutenção do Auxílio Brasil de 600 reais. Lula se comprometeu a dar aumento real ao SM em todos os anos de seu governo e a ampliar o Auxílio Brasil incluindo 150 reais por criança para as famílias beneficiadas.
Um outro ponto delicado será a discussão do que se convencionou chamar de Orçamento Secreto, emendas do relator ao orçamento que podem ser feitas sem a identificação dos deputados e senadores. Lula criticou veementemente a medida adotada na gestão Bolsonaro associando-a à compra de apoio político. Para 2022, o Congresso aprovou R$ 16,5 bilhões. Em 2023, a previsão é de R$ 19 bilhões para essas emendas.
Por falar em Congresso, a construção de uma base parlamentar de sustentação política ao governo será um dos principais desafios de Lula, considerando a presença significativa de parlamentares da direita e até da extrema-direita no Parlamento.
Na Câmara, 187 dos 513 (36,4%) deputados eleitos pertencem a partidos que integraram a coligação de Bolsonaro, enquanto que a coligação de Lula elegeu 122 deputados (23,8%). No Senado, os bolsonaristas também se saíram melhor com 23 dos 81 senadores (28,4%) e os apoiadores de Lula ficaram com 11 vagas (13,6%).
O que significa que não há como garantir uma maioria sem buscar apoio de partidos de centro e centro-direita que não estiveram engajados oficialmente na campanha petista, como MDB e PSD, e mesmo algum nível de aproximação com parlamentares do famigerado Centrão, incluindo Republicanos e União Brasil, por exemplo. Lula terá três meses para costurar a base porque os novos deputados e senadores só assumem seus mandatos no início de fevereiro.
O começo da legislatura será marcado pelo processo de eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado, um momento chave que costuma dar o norte da relação entre o Poder Legislativo e o Executivo nos anos seguintes. Bolsonarista de primeira hora, o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pode chegar enfraquecido à disputa em caso de tentativa de reeleição. O contrário do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que conteve a tramitação de vários projetos do atual governo naquela Casa.
Isso considerando a perspectiva do campo progressista, mas a disputa dependerá, como sempre dependeu, da correlação de forças a ser estabelecida entre governistas e oposicionistas nas duas casas legislativas.
Uma questão fundamental é saber o quanto a Frente Ampla construída por Lula durante a campanha pode impactar as costuras políticas partidárias com repercussão dentro e fora do Congresso. Figuras importantes da campanha como a senadora Simone Tebet (MDB-MS) e o vice-presidente eleito Geraldo Alkcmin (PSB-SP) devem jogar um papel importante nesse processo.
A gestão da política econômica de um governo de esquerda, ou de centro-esquerda, está sempre sob o escrutínio e a pressão do mercado financeiro e da grande mídia, que atua na maior parte das vezes como sua porta-voz. Recentes editorias da Folha de SP, primeiro exigindo de Lula que antecipasse o nome do seu ministro da Economia e, depois, que desse “mostras imediatas de responsabilidade orçamentária e disposição de rumar ao centro, política e economicamente” só confirmam a premissa.
O apoio no segundo turno a Lula de ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central nos governos Fernando Henrique, como Armínio Fraga e Edmar Bacha, podem fazer alguma diferença dessa vez no tratamento do mercado e da imprensa à agenda do futuro presidente que é economicamente ambiciosa porque está atrelada à melhoria da qualidade de vida de milhões de brasileiros e brasileiras que hoje vivem em situação de insegurança alimentar e precarização do trabalho.
Lula tem dito que o Brasil precisa de credibilidade, responsabilidade e previsibilidade, tendo se comprometido durante a campanha com uma “política fiscal que siga regras claras e realistas compatíveis com o enfrentamento da emergência social que vivemos e com a necessidade de reativar o investimento público e privado para arrancar o país da estagnação”.
Essa agenda inclui a retomada de obras paralisadas e de programas como o Minha Casa, Minha Vida; nova lei trabalhista; reforma tributária solidária, justa e sustentável, que simplifique tributos e onde os pobres paguem menos e os ricos mais; renegociação das dívidas das famílias; programa de crédito a juros baixos para pequenos empreendedores; e a isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais por mês.
Pelo menos duas questões a serem enfrentadas por Lula podem tensionar a relação com setores financeiros. Lula é contra a privatização da Eletrobrás, dos Correios e da Petrobrás. Também deve propor a revisão da regra do teto de gastos, que vincula o aumento de gastos da União à inflação do ano anterior.
Uma das tarefas mais importantes do próximo governo será a remontagem do aparato institucional de proteção ao meio ambiente e defesa dos povos originários. As boiadas por onde passaram a política de devastação idealizada pelo ex-ministro do Meio Ambiente e agora deputado eleito Ricardo Salles (PL-SP). Marcada pelo aumento do desmatamento da Amazônia, redução drástica da fiscalização e aplicação de multas, defesa de grileiros e perseguição a servidores que atuam na proteção de territórios indígenas.
O presidente eleito se comprometeu a criar o Ministério dos Povos Originários e colocar no seu comando um(a) indígena.
Anunciada a vitória de Lula, o governo da Noruega informou que irá retomar o apoio financeiro à preservação da Amazônia e a redução do desmatamento. Durante os primeiros mandatos de Lula, o presidente eleito fechou acordo com o governo da Noruega, em parceria também com a Alemanha, para a constituição de um fundo bilionário de cooperação internacional, que foi cortado no primeiro ano da gestão Bolsonaro.
O tema da Amazônia e das mudanças climáticas é um dos que mais mobiliza a opinião pública internacional e os países mais influentes. As ações de reconstrução da política de proteção vão reabrir para o Brasil as portas dos fóruns internacionais mais importantes e devem garantir ao país o protagonismo que já teve no passado na agenda global ambiental.
A vitória de Lula deve fortalecer espaços multilaterais como o Mercosul, o Brics e o G-20, ampliando a voz e a articulação geopolítica dos chamados países em desenvolvimento. As crises diplomáticas do Brasil com a China – nosso principal parceiro comercial no mundo – devem ficar definitivamente para trás.
O resultado da eleição no Brasil fortalece também os laços do país com os vizinhos latino-americanos, uma marca da diplomacia dos dois primeiro mandatos presidenciais de Lula, entre 2003 e 2010. Com Lula no governo, os seis países que possuem as maiores economias e populações locais passarão a ter presidentes do campo da esquerda e da centro-esquerda, caso do Brasil, Argentina, México, Peru, Colômbia e Chile.
Para que toda essa imensa agenda de reconstrução nacional possa ser articulada e sair do papel é preciso baixar a temperatura política nacional. Lula deixou evidente essa prioridade: “A partir de 1º de janeiro de 2023 vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras. Não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”.
O discurso sinaliza a troca da retórica do ódio produzida por Bolsonaro para uma postura de conciliação nacional encampada por Lula e que pretende distensionar o ambiente da política institucional e também da vida cotidiana dos brasileiros e brasileiras. “A ninguém interessa viver num país dividido, em permanente estado de guerra. Este país precisa de paz e de união. Este povo não quer mais brigar. Este povo está cansado de enxergar no outro um inimigo a ser temido ou destruído. É hora de baixar as armas, que jamais deveriam ter sido empunhadas. Armas matam. E nós escolhemos a vida”.
No campo institucional, Lula já anunciou que vai recriar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social agregando empresários, trabalhadores e movimentos sociais para discutir os grandes temas da agenda nacional no modelo do seu primeiro mandato. Entre suas primeiras medidas de governo, estará a convocação de um encontro com os 27 governadores eleitos e os 27 prefeitos de capital para tratar, entre outros temas, do combate à forme; a retomada de obras de infraestrutura e moradia; e a estruturação da relação federativa na área da segurança pública, que ganhará um ministério específico.
Como presidente-eleito e, depois, presidente de fato, Lula estará diariamente produzindo falas e gestos políticos que necessariamente vão ser visibilizados pela mídia de massa e reforçarão pelo exemplo de cima o compromisso com o distensionamento das relações entre adversários no país.
A postura pode – em médio ou longo prazo – influenciar corações e mentes de fiéis evangélicos, grupo mais visado pelas mentiras bolsonaristas que reforçaram o antipetismo, e “desarmar” os pastores mais conservadores e extremistas. Os evangélicos já são 31% da população brasileira e há estimativas de que passem de 50% em 2032.
Importante dizer que Bolsonaro ainda tem dois meses de governo à frente da Presidência e perdeu por uma margem estreita de votos para Lula o que o coloca como a grande liderança de oposição à futura administração federal. Mesmo sem apoios relevantes no Brasil e fora para dar um golpe de estado, ele pode fazer ainda muito estrago no ambiente político do país. O atual presidente já falou a aliados nos bastidores que teme que ele e seus filhos sejam presos quando deixar o Planalto. O medo nunca foi um bom conselheiro.
A diferença é que, agora, do outro lado da arena, está a maior liderança popular da história recente do Brasil, respaldado pela vitória inconteste na urnas, saudada por líderes de países de todos os continentes como um “alívio” para o mundo.
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Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República