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“Ou comanda as Forças Armadas ou é comandado por elas”: o conselho de José Genoíno para Lula

Marco Zero Conteúdo / 02/01/2023
Presidente Lula passa em revista tropa da Marinha perfilada diante do Congresso Nacional.

Crédito: José Cruz/Agência Brasil

por Vasconcelo Quadros*

Assessor Especial do Ministério da Defesa no governo da presidente Dilma Rousseff, o ex-deputado José Genoíno tem uma visão objetiva sobre os militares e um conselho útil ao novo governo: “Ou comanda as Forças Armadas ou é comandado por elas”, afirma nesta entrevista exclusiva para a Marco Zero.

Ele frisa que o poder civil emanado das urnas deve tratar de questões relacionadas à defesa sem necessariamente negociar com a cúpula militar. Na sua avaliação, a estranha leniência das Forças Armadas com o extremismo foi tática de pressionar o poder civil pelo medo, para manter os privilégios diante da derrocada do projeto bolsonarista que, na essência, é de inspiração militar.

Genoíno sugere que, além de devolver aos quartéis ou para casa os cerca de 8 mil militares da reserva ou da ativa que ocupam cargos de natureza civil, Lula deve se desviar da histórica tutela militar, conceito que inspirou os bolsonaristas a acampar em frente a unidades do Exército na esperança de um golpe contra o resultado das eleições. “Nosso governo deveria enfrentar essa questão. Se não desmilitarizar, nós não vamos conseguir governar bem”, alerta.

Com experiência de sete mandatos de deputado federal, fundador e ex-presidente do PT, mas sem a pretensão de voltar ao governo, o hoje professor de história e militante lulista e partidário não dá entrevista para a imprensa, da qual guarda certo ressentimento pela forma que foi tratado no escândalo conhecido como mensalão. Mas abriu uma exceção para a MZ, depois de explicar que quer se manter longe dos holofotes para expressar com liberdade e independência suas opiniões.

“É necessário desbolsonarizar as Forças Armadas e desmilitarizar o governo”, afirma Genoíno, que enxerga na politização dos quartéis e num eventual avanço do militarismo golpista possíveis tentativas de desestabilização do governo e da democracia. Ele avalia que os militares, que apostaram na reeleição de Bolsonaro, na prática, comandaram o governo que se encerrou. “Bolsonaro foi o cavalo selado que eles (os militares) montaram em cima na campanha e durante o todo o governo”, diz ele.

Genoíno cutuca seus correligionários lembrando que, no decorrer da transição, Lula se ocupou de tudo relacionado ao novo governo, menos do papel das Forças Armadas que, a seu ver, deve ser revisto e adequado ao projeto de políticas públicas de defesa do país.

O ex-deputado considerou um equívoco a nomeação de José Múcio Monteiro para o Ministério da Defesa. Ele diz que é necessário autoridade política para devolver os militares aos quartéis e definir um novo papel das forças, no qual velhas doutrinas, como “inimigo interno”, “poder moderador”, “tutela”, “golpismo”, “garantia da lei e da ordem” sejam substituídos por uma política de defesa que leve em conta a tecnologia para garantir a soberania do país diante de eventuais ameaças externas.

Genoíno defende ainda o fim das ações de garantia da lei e da ordem (GLO), critica os comandos militares que permitiram acampamentos de golpistas em áreas militares – de onde saíram arruaceiros e extremistas presos por tentar espalhar o caos com atentados a bomba – e diz que chefes que toleraram atos antidemocráticos ou se envolveram em contestação às urnas eletrônicas não devem ser promovidos a comandantes de força.

José Genoíno não falar com jornalistas desde o Mensalão, mas abriu exceção para a MZ. Crédito: Agência Brasil

  • Leia a íntegra da entrevista:

Marco ZeroPor que essa ideia de tutela ainda paira como ameaça?

José Genoíno – A tutela militar se expressa na ideia de que eles são o poder moderador, donos do estado e do patriotismo, mas são, na verdade, subordinados ao poder civil, que emana do voto popular. A tutela está em todas as constituições com essa história de garantia da lei e da ordem (GLO), que é uma forçação de barra para se colocar como poder moderador. Como portam arma e têm o monopólio da violência, acabam tendo a força na mão. É um modelo de pressão política. É inaceitável.

Como avalia o papel dos militares diante de manifestantes que não se conformaram com o resultado das eleições?

“Estão cometendo uma excrescência permitindo esses acampamentos em frente a quartéis. São militares da reserva, família de militares da reserva, família de militares da ativa. Estão com esses acampamentos fazendo pressão sobre o novo governo, tipo ‘não mexam conosco, nós queremos privilégios, queremos tutelar vocês’. Forças Armadas servem para defender o país. E o que é defesa? Acesso à tecnologia sensível, cooperação com países vizinhos, parceria em pesquisas, dissuasão para dificultar ameaças, integração com a América do Sul. No governo do inominável [Jair Bolsonaro], continuou a política de guerra cultural, retórica do ódio, contra o politicamente correto para alimentar a ideia de inimigo interno. Nosso governo deveria enfrentar essa questão.

O que os militares querem?

Qual é a tática? Levantam as armas para espalhar o medo. Foi assim em 2021 (no 7 de setembro), quando disseram que ia ter golpe. Não teve, mas espalharam o medo. Fizeram isso também com os caminhoneiros, e também não teve. Agora é com os acampamentos. Eles querem é amedrontar, causar pânico. É um novo tipo de guerra, um tipo de golpe não tradicional, usando a ameaça, a dissuasão, o medo e o apavoramento.

Que avaliação o senhor faz de José Múcio no comando do Ministério da Defesa?

Na relação com as Forças Armadas ou se comanda ou é comandado por elas, seja de esquerda ou de direita. O Ministério da Defesa deve ser dirigido por alguém com autoridade política e essa indicação não pode ser objeto de negociação com os militares. Quem manda nos militares é quem é eleito. O poder emana do povo. Os termos dos acertos via Múcio é um equívoco do atual governo, que está pensando em todas as questões, menos nessa.

Como enfrentar a pressão militar?

Ao longo da história eles, os militares, sempre impuseram as suas vontades. Na Constituinte de 1988 colocaram o artigo 142 para agir em nome da lei e da ordem. Defendo enfrentar essa tutela militar constitucionalizada. Comandante que pregou golpe e questionou urnas eletrônicas não devem ser promovidos para o comando do Exército, Marinha e Aeronáutica. Quem comanda politicamente as Forças Armadas é o ministro da Defesa. Como não é possível mudar agora a Constituição, tem de diminuir o uso militar para a ordem interna.

Como? Acabando com as GLOs?

Acho que tem de acabar a convocação de militares para ações de garantia da lei e da ordem em questões de segurança. A GLO é uma deformação constitucional. As Forças Armadas servem para defender o país.

Como tratar a participação de militares na política?

Defendo quarentena para os militares que quiserem entrar na política, posição que estendo a todos os servidores que ocupem funções de Estado, como policiais, juízes e promotores. Hoje eles só têm o bônus. Tem de ter o ônus também.

Como desmontar a forte influência militar no aparelho estatal?

É preciso desbolsonarizar as Forças Armadas e desmilitarizar o governo. Cargo civil deve ser ocupado por civil. Militar da reserva que estiver nesses postos deve ser mandado para casa. Os da ativa devem retornar aos quartéis.

O que Bolsonaro representou para os militares?

Bolsonaro foi o cavalo selado que eles montaram em cima na campanha e no exercício do governo. Se nosso governo não desmilitarizar o Estado, nós não vamos conseguir governar bem e a tutela militar vai continuar. Enfrentar essa realidade é uma exigência do novo momento. Por outro lado, é preciso valorizar as tarefas da defesa, como pesquisas e integração com a América do Sul. O governo faz investimentos altos na formação de militares para a defesa. Não faz sentido que sejam deslocados para áreas como Ibama, Incra, etc… Além de privilégio, é uma deformação prejudicial às Forças Armadas.

Um dos últimos atos do governo Bolsonaro foi extinguir a comissão de mortos e desaparecidos políticos. O que isso representa?

Os militares que não querem a revisão da Lei da Anistia estão revisando a lei que criou a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). A CEMDP agora vai precisar fazer o ‘desmonte do desmonte’ para concluir seus trabalhos, que é a reparação aos que foram perseguidos, seguida de um pedido de desculpas formal diante da violência praticada contra os direitos humanos. A lei não protege a prática de tortura e desaparecimento forçado. É necessário que se proclame uma desculpa formal do Estado aos familiares dos desaparecidos políticos. Foi isso que faltou na conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Esconder ou negar o que houve é um método violento de dominação. Seria necessário seguir o que se fez no Chile, Argentina e Uruguai, que repararam e puniram. Aqui se fez um acordo, a Anistia, para nada mudar. Não quero que essa tragédia se repita. Não precisa revisar a Anistia, mas reparar e pedir desculpas.

Por que os militares não reconhecem que houve tortura, execuções sumárias e sumiço de oponentes?

Os militares não reconhecem e nem fazem um pedido de desculpas porque são formados dentro de uma concepção autoritária. Os governos civis têm passado a mão na cabeça deles porque se criou uma cultura do medo, na qual os militares se impõem pelas armas. É só ver o que fizeram na pandemia e agora ao permitir acampamento, refúgio de manifestantes golpistas envolvidos em arruaças e atentados a bomba), em área de segurança nacional, onde normalmente atiram para matar num carro que simplesmente passe em alta velocidade. Estou decepcionado com os militares. Não esperava que fossem cumprir esse triste papel no governo Bolsonaro.

Para Genoíno, Bolsonaro foi o"cavalo selado" que os militares "montaram, Crédito: Antônio Cruz/Agência Brasil

Que papel os militares devem ter no novo governo?

A defesa nacional precisa de um debate no Congresso, nas instituições públicas, sociedade civil e deve ser tratada como política pública. A guerra na Ucrânia mostrou que as armas tecnológicas agora são o míssil (de alta precisão) e drone. Em vez de discutir as novas tecnologias de defesa, os militares estão preocupados com acampamento no quartel. Estão cavando um poço que está rachando as Forças Armadas, que precisam ser revalorizadas dentro do seu papel. Defesa deve ser discutida como política de estado, com investimentos fiscalizados, com cadeiras também em universidades porque não é mais um tema apenas de interesse militar. A ESG (Escola Superior de Guerra) deveria abrir debates sobre defesa entre civis e militares.

Como tratar as questões de inteligência artificial?

O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e Agência Brasileira de Inteligência (Abin) devem ficar sob o comando civil. Inteligência e contrainteligência devem servir para assessoramento do presidente da República. Nas mãos de militares é um resquício do que foi a comunidade de informações da ditadura. Colocar essas atribuições dentro de um só sistema, como fez o GSI, é criar um poder militar enorme num único órgão.

*Vasconcelo Quadros foi correspondente do Jornal do Brasil, entre 2005 e 2006, na Amazônia; entre 2006 e 2002, em São Paulo, com passagens pela Agência Estado, Folha da Tarde, Diário Popular, sucursal do Jornal do Brasil e revista IstoÉ; de 2002 até 2019, já em Brasília, passagens pelas sucursais da IstoÉ, Estadão, Jornal do Brasil, entre outros, sempre atuando na editoria de Brasil (antiga Nacional ou Geral).

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