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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Por Ana Maria Franca*
Recife, início dos anos 1990. O Brasil vivenciava os primeiros anos da abertura política após uma ditadura de 21 anos, encerrada em 1985. Eram anos difíceis no campo econômico, com inflação descontrolada e desafios diversos a serem enfrentados. A capital de Pernambuco era considerada uma das cidades com maiores níveis de desigualdade. Mas, a despeito do caos que a dominava, nascia nessa época um movimento cultural que influenciou para sempre a cultura brasileira.
O Manguebeat surge nessa época em Recife e se destaca pela sua complexa originalidade de combinar diversos gêneros musicais. Ele se caracteriza pela fusão entre maracatu, rock, rap, funk e música eletrônica ao dar origem a um novo gênero, completamente distinto do que então se tinha como registro de música popular brasileira. Melodia e letra valorizavam as culturas regionais nordestinas e o desenvolvimento de um senso local de identidade própria, sem deixar de criticar as condições de vida da população e o estado de conservação do manguezal. A potência dos riffs de guitarra com o batuque grave das alfaias e a lírica do rap arrebatou multidões.
“Maracatu psicodélico, capoeira da pesada, bumba meu rádio, berimbau elétrico”: dessa antropofagia nasceu Chico Science & Nação Zumbi, um dos mais importantes grupos musicais do movimento Manguebeat e que apresentou Recife e Pernambuco para o Brasil e o mundo. Esses mangueboys, liderados por Francisco de Assis França, lançaram em 1994 sua obra-prima: o icônico Da Lama ao Caos. Uma faixa do disco, intitulada Maracatu de Tiro Certeiro, é um resumo único da dura e violenta realidade vivida pelos jovens do Recife. A música era protesto e denúncia:
De tiro certeiro, é de tiro certeiro
Como bala que já cheira a sangue
Quando o gatilho é tão frio
Quando quem tá na mira – o morto!
Eh, foi certeiro – Oh se foi
Quase trinta anos se passaram e a letra soa como um lançamento. A violência armada na região metropolitana do Recife faz sofrer a população de hoje, novos caranguejos deste mangue bonito e violento. Os tiros seguem certeiros.
O Instituto Fogo Cruzado, que atua desde 2018 no estado, mapeou, em 2022, 233 pessoas baleadas em casa no Grande Recife. Desse total, 180 morreram. O indicador de baleados em residência é um dos que mais aparecem na região, gerando um fenômeno que chamamos de tiros endereçados. Tiros certeiros.
Por um lado, essa dinâmica pode sugerir algum controle, já que quem morre sempre é o outro, alguém que tinha algum envolvimento criminal e por isso está sendo alvo de acerto de contas. Mas os dados do Fogo Cruzado mostram que esse discurso, além de superficial, não condiz com a realidade. Apesar de termos um número alto de pessoas mortas com tiros endereçados, há em 2022 um aumento no número de pessoas atingidas por balas perdidas. Nesse ano, 68 pessoas foram feridas por balas perdidas; destas, dez morreram. Isso representa um aumento de 84% em relação aos três anos anteriores.
O número é ainda mais doloroso se pusermos uma lupa sobre as vítimas: das 68 pessoas acertadas por balas perdidas, nove eram crianças. Esses tiroteios aconteceram em situações como as que apontamos acima: tiros endereçados que atingem inocentes, pessoas que nada tinham a ver com a situação que gerou os disparos.
É triste pensar que, depois de quase 30 anos, o Fogo Cruzado segue chamando atenção para a violência armada outrora explicitada por Chico Science. Quantas gestões públicas mais serão necessárias para que a população receba dignidade e paz, direitos garantidos na Constituição? Divulgar e detalhar esses dados é importante: a transparência na segurança pública é fundamental para podermos cobrar dos responsáveis medidas de segurança para a população.
A alta circulação de armas nas mãos de civis, o sucateamento de políticas de segurança e a falta de transparência do estado aumentam a sensação de insegurança da população e contribuem com o aumento da violência. O Fogo Cruzado hoje mapeia a violência armada para que Maracatu de Tiro Certeiro fique no passado de Pernambuco. Não a música, claro. Mas a triste realidade que ela denuncia. Não dá mais para aceitarmos que o tiro certeiro seja o futuro da juventude pernambucana. Nossos jovens querem ouvir e cantar maracatus, capoeiras, caboclinhos e frevos. Nossos jovens querem, acima de tudo, permanecer vivos!
* Ana Maria Franca é coordenadora regional do Fogo Cruzado em Pernambuco
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.