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Margarida do Nascimento. Crédito: Arnaldo Sete/Projeto Colabora
por Adriana Amâncio*
“É muito ruim olhar para os quatro cantos e não ver o que comer”, afirma Zilma Maria da Silva, de 59 anos, que mora no bairro dos Coelhos, área central do Recife. Situações como essa são recorrentes em sua casa sempre que o mês chega à metade. Nesse período, a dispensa da idosa, que é responsável por um neto de 17 anos, fica vazia. Dona Zilma tem como única fonte de renda R$ 600 do Auxílio Brasil, que para ela, nunca deixou de ser o Bolsa Família. Deste total, R$ 110 são reservados para a compra dos remédios para as crises de asma. Com R$ 490, ela compra um botijão de gás e alimentos baratos.
“O que compro mais é ovo e fubá. Dá para passar só 15 dias, depois, a gente vai para a casa da minha filha para comer lá”, afirma. Algumas vezes, Zilma não pode sequer contar com a ajuda da filha e aí, só resta a sorte para aliviar a barriga dela e do neto. Hoje, em Pernambuco, o número de idosos que vêm a óbito com um quadro de desnutrição associado é maior do que o de crianças com idade entre 0 e 5 anos. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, em 2020, foram registrados 268 óbitos de idosos com quadro de desnutrição associado, contra sete óbitos de crianças na mesma condição. Isso quer dizer que morrem quase quarenta vezes mais idosos do que crianças na primeira infância, com quadro de desnutrição.
A nutricionista clínica e especialista em gerontologia, Luisiana Lamour considera o dado importante, pois em linhas gerais, define que a desnutrição joga contra a saúde do idoso e a favor da enfermidade. “A desnutrição está associada à fragilidade, à diminuição da imunidade, torna o idoso suscetível a infecções e enfermidades. Pode não estar associada à causa direta [do óbito], mas indiretamente, sim”, explica. A especialista avalia que é raro identificar esse quadro, “há muita subnotificação sobre a presença da desnutrição como causa associada ao óbito do idoso”, frisa. Com experiência clínica, Luisiana afirma que tem recebido um número cada mais alto de pacientes idosos com quadro de desnutrição extremamente grave. “E não pense que são só idosos com baixa renda, não! Há idosos com renda, mas com falta de acompanhamento especializado”, observa.
De acordo com a gerontologista e integrante do setor de relações Institucionais da Pastoral da Pessoa Idosa (PPI), Áurea Barroso, a falta de acompanhamento especializado é apenas uma dentre as lacunas nas políticas públicas para que os idosos se tornem alvos fáceis da desnutrição. “Falta uma política pública eficiente de combate à desnutrição. Há um desinteresse pela questão dos idosos. A ideia é ‘vamos investir nos jovens, pois eles são a força produtiva’. Os idosos são importantes, muitos são arrimo de família, há alguns que se aposentam e vão trabalhar para manter a família. As crianças têm uma rede de proteção, mas os idosos, não. Quando não tem renda, não tem o BPC [Benefício de Prestação Continuada], fica difícil assegurar uma alimentação segura”, explica.
A falta de renda também é a causa da fome que castiga Margarida do Nascimento, de 65 anos, também moradora do bairro dos Coelhos. Responsável pela neta Vitória de Castro, de cinco anos, cuja mãe se encontra detida em uma colônia penal feminina, Margarida também conta apenas com os R$ 600 do Auxílio Brasil.
“O dinheiro não dá. Eu compro gás, compro salsicha, compro aos pouquinhos, porque não dá para fazer uma feira. Muita vezes já dormimos com fome, eu e ela’, confessa, apontando para a neta no canto da sala. Mesmo assim, quando começa a segunda quinzena do mês, sem alimento e sem renda, avó e neta apelam para a fé. “Essa semana, por sorte, veio um senhor e deu fubá e uns três pacotes de macarrão”, relembra. Dona Margarida revela que entregou a documentação ao filho mais velho e, até hoje, aguarda o deferimento da solicitação.
Mesmo idosas e em condição de privação alimentar, as avós Margarida e Zilma cuidam, sozinhas, de uma casa, dos seus netos. Essas atividades requerem bastante energia e vigor mental. “E dizem que os idosos não são importantes, essas avós são arrimo de família, são muito importantes”, contesta Áurea. Ainda segundo ela, é preciso ampliar o Benefício de Prestação Continuada e toda a rede de proteção social e de saúde voltada aos idosos.
“A primeira coisa é ampliar o BPC para 60 anos e melhorar as condicionalidades, não ter esse critério de renda per capita de até um quarto de um salário mínimo. Outra coisa, é investir na atenção básica e na proteção social, no acesso aos medicamentos, na questão primária, evitando que essa população idosa não chegue na média e na alta complexidade. Investir no Centro-Dia, onde os idosos conseguem alimentação, recebem acompanhamento multiprofissional’ , observa. O critério atual para ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada é ter no mínimo 65 anos e comprovar renda per capita inferior a um quarto de um salário mínimo.
Para entender porque, diferente do que tem ocorrido no fim da vida, na primeira infância a desnutrição já não é uma ameaça tão presente, é preciso olhar para a história recente do Brasil. A nutricionista e doutoranda em Saúde Pública, Marília Santana, afirma que essa trajetória foi impulsionada pelo curso de um conjunto de políticas sociais e de saúde. “A instituição do SUS, a criação das unidades básicas de saúde nos territórios, perto das crianças, posteriormente, as políticas de segurança alimentar resultaram na diminuição das mortes por desnutrição aguda ou com esse problema associado”, analisa.
Marília relembra que, nos anos 1980, a história do Brasil era intensamente marcada por altas taxas de mortalidade infantil. Nas décadas de 1950 e 1960, prossegue ela, as regiões Norte e Nordeste do Brasil tinham quadros de desnutrição gravíssimos, que atingiam até 20% da população. “Hoje, a gente tem números de menos de 5%. O Bolsa Família, a própria alimentação escolar, as cisternas, o acesso à água garante uma boa alimentação, que vão impactar de forma positiva neste quadro. Hoje a gente tem um perfil populacional que migrou da carência nutricional para um perfil que também preocupa muito, que é de uma população com excesso de peso, com obesidade”, conclui.
A nossa reportagem fez contato com a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco para saber se a notificação dos óbitos de idosos, com quadro associado de desnutrição é feita regularmente. Perguntamos ainda se o órgão oferece serviços de acompanhamento especializado à questão nutricional deste público e se há políticas públicas voltadas para estimular a inserção dos idosos nos programas de transferência de renda. Até o fechamento desta reportagem, não obtivemos resposta do órgão. Se houver retorno às nossas demandas, o texto será imediatamente atualizado.
*Adriana Amâncio é jornalista freelancer, com 12 anos de atuação na cobertura de pautas nas áreas de direitos humanos, meio ambiente e gênero.
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