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Pobres do Recife têm três vezes mais chances de pegar dengue do que ricos e classe média

Maria Carolina Santos / 25/04/2023
Foto fechada mostrando, em primeiro plano, um mosquito da dengue picando pele de uma pessoa.

Crédito: Nuriyah Nuyu/Pixabay

Quanto menor a renda, mais fácil para um morador do Recife ser contaminado por uma arbovirose. A diferença da “força da infecção” chega a três vezes entre os moradores de um bairro rico e de um bairro pobre. Enquanto a grande maioria da população tem anticorpos contra algum dos quatro tipos de dengue, doença que voltou a circular por aqui há mais de 25 anos, metade já teve zika, que teve seus primeiros casos no Recife há oito anos. As conclusões são de uma pesquisa sobre arboviroses na população recifense realizada pela Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco (Fiocruz-PE).

“A diferença entre classes sociais é, na verdade, algo bem óbvio”, diz a pesquisadora Cynthia Braga, que liderou os estudos. As pesquisas foram realizadas em duas etapas com coletas em 2005/2006 e em 2018/2019. “A transmissão das arboviroses é muito alta em toda cidade, mas a maior intensidade de transmissão se dá nos ambientes mais pobres, nos bairros mais precários”, diz.

A Fiocruz-PE visitou residências em três áreas socioeconômicas e ambientais distintas de Recife. Nas duas fases foram recolhidas e analisadas amostras de sangue de apro dois mil indivíduos.

Na primeira pesquisa, a soroprevalência da dengue – ou seja, a detectação de exposição prévia ao vírus – foi alta em todas as camadas sociais. Mas houve diferenças importantes: 74,3% dos moradores de áreas com melhores condições socioeconômicas – no estudo, os bairros de Casa Forte e Parnamirim – já haviam tido um dos quatro tipos de dengue. A pesquisa não fez diferenciação entre os quatro tipos.

Nos bairros mais pobres, esse percentual dá um salto para 91,1% – o bairro utilizado foi Brasília Teimosa. O bairro intermediário foi o Engenho do Meio, e, por lá, a soroprevalência ficou apenas um pouco menor do que no bairro mais pobre, com 87,4%. 

A força da infecção, porém, é bem maior nos bairros de baixa renda. A pesquisa verificou que 59% das crianças já haviam sido expostas ao vírus da dengue aos 5 anos de idade. A estimativa da força de infecção foi três vezes maior do que na área privilegiada. O risco de infecção aumentou com a idade nas três áreas. “Nas áreas intermediárias e privilegiadas, as curvas de prevalência por idade atingiram platôs por volta dos 20 anos, sugerindo que, em vez de uma força constante de infecção, elas experimentaram picos de incidência em algum momento nos últimos 20 anos”, diz o artigo sobre a primeira pesquisa.

A segunda fase para o recolhimento de amostras ocorreu entre 2018 e 2019, já com um cenário em que duas novas arboviroses estavam circulando no Recife: a zika e a chikungunya, que foram o foco do estudo.

O artigo sobre a pesquisa está em pré-print, ou seja, ainda não foi revisado por pares, mas mostra um cenário preocupante: a primeira onda de chikungunya e zika foi um verdadeiro tsunami no Recife. Após a chegada dos vírus, em 2014/2015, cerca de 50% (zika) e 30% (chikungunya) da população do Recife apresentava marcadores de exposição a essas arboviroses, demonstrando a alta vulnerabilidade da população para as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.

Cynthia Braga conta que muitas vezes as três infecções são confundidas e quando está ocorrendo uma alta de casos de dengue, pode ser, na verdade, zika ou chikungunya. “Até o exame feito durante a infecção dá muita reação cruzada. A zika é muito difícil de diferenciar, porque nem sempre apresenta as manchinhas vermelhas. Às vezes é somente uma febre, uma moleza. Então, esse rastreamento posterior é importante para mostrar o tamanho dessa primeira onda de zika no Recife”, diz a pesquisadora.

Ela cita um outro estudo de rastreio de arboviroses, também realizado entre 2018/2019, mas feito somente com grávidas, em uma maternidade. “Surpreendentemente, a maior parte das infecções prévias era de Chikungunya e Zika. Praticamente não encontramos casos de dengue. O sistema de notificação diz que é dengue, mas muitas vezes é chikungunya ou zika. O diagnóstico só na clínica é muito difícil de diferenciar”, explica.

Primeiro surto do zika vírus em Pernambuco provocou nascimento de crianças com microcefalia. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Acesso à água é um dos pilares da prevenção

Os altíssimos índices de soroprevalência não são por acaso: dois terços da população recifense vive em áreas de alto risco para arboviroses. “As cidades nordestinas têm condições ambientais favoráveis para as arboviroses: temperatura ideal e a falta de estrutura”, aponta Cynthia.

Ela cita a irregularidade no fornecimento de água como um dos principais fatores de risco, principalmente nas áreas mais pobres. “Sem ter água todo dia nas torneiras, as pessoas vão ter que acumular água em caixas d’água, tonéis, bacias. As arboviroses são uma consequência da falta de saneamento, da falta de estrutura urbana da cidade. Temos 60% da população vivendo em condições precárias. É sujeira, meio ambiente degradado, tudo isso favorece a proliferação dos mosquitos”, diz.

As infecções por zika e chikungunya, segundo o estudo mais recente, foram associadas a níveis educacionais mais baixos como indicador de desigualdades em saúde e um fator de risco independente para a infecção em quase todas as camadas socioeconômicas. Além disso, viver em uma casa, em vez de um apartamento, aumentou em três vezes o risco de exposição à infecção por chikungunya ou zika. “No Recife, nos bairros mais ricos as pessoas moram em edifícios, o que dificulta para o mosquito. E também há a super população das habitações nos bairros pobres”, diz a pesquisadora.

Para Cynthia Braga, a prevenção às arboviroses passa sim pelo desenvolvimento de vacinas e por novas tecnologias – como os mosquitos modificados que estão sendo testados pela Fiocruz – mas a principal ferramenta de prevenção é o saneamento básico, com acesso universal à água encanada.

“Vacinas são importantes, mas não resolvem o problema. Outras arboviroses podem aparecer. Há dez anos, por exemplo, não tínhamos aqui nem zika, nem chikungunya. Então a gente roda e roda e volta para a questão da pobreza, da miséria, das condições de vida da população. É preciso se pensar a médio e longo prazo em termos de cidades saudáveis para todos. E a saúde tem que ser um tema transversal a todas as políticas urbanas. Não só para arboviroses, mas para tantas outras doenças que temos no Recife, como a leptospirose, tudo passa pelo saneamento, pelo acesso à água, pela limpeza, pela educação. Será que um país como o Brasil não tem condições de melhorar as vidas nas cidades?”, questiona.

Dengue em alta pelo Brasil

Depois de um período com queda de casos – ou queda de notificações? – durante a pandemia, o número de casos de dengue têm voltado aos patamares “normais” ou até ultrapassando a média histórica.

O Brasil teve 1.016 mortes por dengue no ano passado, segundo o Ministério da Saúde. Foi o recorde de óbitos pela doença, ficando na frente de 2015, quando 986 mortes foram registradas. O que vem chamando a atenção de pesquisadores é que em lugares com climas mais amenos a dengue tem avançado. No ano passado, por exemplo, o Rio Grande do Sul registrou 66 óbitos pela doença, sendo o quinto estado com mais mortes. O centro-oeste é o que tem concentrado o maior número de casos, em 2023.

Os meses entre janeiro até o final de junho são considerados a época de sazonalidade das arboviroses. Mas essa sazonalidade está cada vez mais difícil de se perceber, com a doença ocorrendo ao longo de todo o ano.

“Antes, quando circulava só dengue, havia uma sazonalidade mais definida. Após o período das chuvas é que circulava mais, mas como temos a circulação de três vírus distintos, não conseguimos enxergar muito essa sazonalidade. Nos últimos anos, tem realmente sido nos primeiros meses do ano. Mas em geral o vírus circula permanentemente. Quando o sistema de informação identifica o aumento de casos, o vírus já está circulando na população com intensidade. O sistema detecta tardiamente, cerca de um mês depois”, diz Cynthia.

O boletim epidemiológico mais recente de Pernambuco aponta 6.539 casos suspeitos de dengue, 1.721 de chikungunya e 270 de Zika. Não houve nenhuma confirmação de óbito para dengue, nem zika, mas foram confirmadas duas mortes por chikungunya.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org