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Crédito: Agência Brasil
por Pedro Paz*
Em 15 de março deste ano, iniciei apuração jornalística acerca da tese de doutoramento de minha amiga, antropóloga e oficial da justiça Núbia Guedes, sobre o encarceramento em massa de mulheres, sobretudo mulheres negras, defendida em 29 de novembro do ano passado, sob orientação da professora e pesquisadora Flávia Pires, com o intuito de divulgar seus principais resultados por meio de alguma mídia independente, assim como a Marco Zero Conteúdo.
Em 26 de abril, assisti ao lançamento do livro Práticas comunicativas na pesquisa científica no cárcere, organizado pelas professoras e pesquisadoras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Josilene Ribeiro e Suelen Brito. Núbia participou como debatedora e, embora tenha assistido à defesa da sua tese, me impressionaram novos detalhes acerca de como é um dia de domingo em uma prisão feminina.
Nesta última terça-feira (9), ao dialogar com minha também amiga, professora e colega de doutorado Renálide Carvalho sobre a qualidade estética da tese da Núbia e sua capacidade de estabelecer relações e significados ao que observa, lembrei-me de que, no debate do lançamento do livro, ela destacou diferenças entre os dias de domingo em um presídio feminino e em um presidio masculino. Por exemplo, há mais movimentação no comércio local, no entorno de presídios masculinos, por conta de um maior trânsito de pessoas. De todo modo, em ambos os casos, os dias de domingo são reservados à visitação de familiares, companheires e entes queridos.
Imediatamente a solicitei, por meio de mensagem no WhatsApp, breve relato sobre como é o Dia das Mães em um presídio feminino. A pedi não só por que o Dia das Mães deste ano será celebrado no próximo domingo (14). Mas principalmente pelo fato de julgar que as pessoas precisam saber o que acontece nesse importante dia para nossa cultura, em um espaço marginalizado como um presídio feminino.
Para início de conversa, não há Dia das Mães em um presídio feminino. Enquanto celebramos o segundo domingo de maio em nossas casas, superlotamos restaurantes ou vamos ao cemitério para rememorar aquela que cuidou da gente, imperam o vazio, o silêncio, a tristeza, a solidão nos presídios femininos, uma espécie de punição secundária, assim como ocorreu durante a pandemia de covid-19, quando as visitas foram interrompidas.
Segundo Núbia Guedes, o Dia das Mães em um presídio feminino é comumente celebrado antecipadamente, assim como o Domingo de Páscoa, porque as mães dos agentes do sistema penitenciário são, no entendimento das administrações, mais importantes. Definitivamente, não é a mesma coisa comemorar o Dia das Mães antecipadamente, pelo simples fato de não acontecer de modo simultâneo aos demais grupos sociais. Em tempos nos quais os registros podem ser compartilhados através de redes sociais digitais, o fato de não ocorrer no mesmo dia faz uma diferença danada.
“No Dia das Mães, as crianças não visitam as suas mães. De forma enfática, não há comemoração no dia culturalmente estabelecido em nossa sociedade, o segundo domingo de maio. É uma maneira de esvaziar de significado o valor mãe para uma mulherprisioneira”, avalia Núbia.
Se houvesse Dia das Mães nos presídios femininos, ele seria ao menos como um domingo comum, vivenciado e etnografado por Núbia, no qual as mães presidiárias estenderiam seus lençóis no chão, para receber seus filhos, com o intuito de simular um lar e gerar algum sentimento de pertencimento aos seus filhos, geralmente na companhia das suas avós.
Na visita, sobre os lençóis, como em um piquenique, enquanto conversas, beijos e abraços vão e vêm, repousariam frutas, biscoitos, sanduíches, sucos e petiscos, alimentos fáceis de comer, de preferência com as mãos, sem a necessidade de utensílios, que certamente seriam barrados na revista das crianças e avós. Repousariam sobre chão de cimento, em vez de grama. E sem ar livre. Porque não há qualquer tipo de liberdade em um presídio feminino.
“As dádivas trazidas pelas famílias amainavam a dor dilacerante do cárcere. Nesse dia, as famílias, com muita alegria, sentimentos expressos pelos corpos, com emoções causadas pelo bom encontro, aumentavam a potencialidade de existir daquelas subalternas”.
A pandemia legitimou uma prática já encontrada no sistema: o interdito da visita da família, critica Núbia. A maternidade, portanto, foi empurrada para a solidão. “Em nome de uma prolatada biossegurança, o Estado restringiu a visita. Assim, as mulheres não tiveram interação no domingo, dia observado como o dia de maior potencialidade entre as famílias das prisioneiras, principalmente, para as crianças”.
Na sua análise, Núbia descreve a visita como uma confraternização de famílias pobres, marginalizadas, algumas abaixo da linha de pobreza. “Nas agruras da prisão, por mais sofrimentos sentidos em contextos diversos, a visita da família no dia de domingo se faz “unguento” na dor causada pelo encarceramento, mas ainda consubstancia a única forma de humanização da pena encontrada, dado observado como um fator macrossocial”.
Por curiosidade, resolvi verificar o que tem, sobre o Dia das Mães em presídios femininos, no Google, principal motor de busca no mundo e atualmente investigado no Brasil por campanhas contra a PL das Fake News. Encontrei nada, exceto notícias sobre Suzane von Richthofen ter deixado a prisão para “saidinha” temporária de Dia das Mães, em 2019, e apenas uma reportagem acerca do Dia das Mães no Complexo Penitenciário de Ponte Nova, em Minas Gerais, produzida pela TV Educar, em 2017.
Assim como relata Núbia, no material jornalístico, fica evidente que a data fora celebrada dias antes da culturalmente estabelecida. Apenas cinquenta presas participaram da ação promovida pela direção do presídio, em parceria com a Defensoria Pública, Pastoral Carcerária e Igreja Universal, visando humanização. As outras encarceradas foram privadas da atividade. Praticamente não há figuras masculinas nas imagens, como maridos, pais, irmãos, tios. Há majoritariamente presas, crianças e avós cercadas de arame farpado nos elevados muros rosas do presídio, cor que marca a identidade de gênero daquelas que ali estavam enclausuradas.
Vale a pena reproduzir algumas das entrevistas porque elas dão a tônica da experiência de ser uma presa que tem filho(s). Em uma delas, Ivanir diz: “Gostaria de dizer a ela [sua filha] que eu amo ela muito, muito, e que hoje seria uma dia muito melhor do que todos que eu tô passando aqui se ela pudesse ter vindo me abraçar, que eu sinto o cheiro dela todos os dias e que explicar pra ela que o motivo de eu estar aqui não é isso que ela pensa, pra ela continuar sendo essa filha maravilhosa, filha obediente que ela é, dizer pra ela que eu amo ela do fundo do meu coração”.
Paola, também presa, falou: “Ter meu filho nos meus braços é a melhor coisa que tem, porque o amor de mãe por um filho é inexplicável e pelo tempo que eu tô sem ver ele também, tem seis meses que eu tô presa aqui, eu tinha visto ele no mês de dezembro e foi muito dolorido ele chagando aqui e me rejeitando, porque ele não me queria, porque tinha desacostumado comigo, e me doeu muito um filho rejeitar a mãe. Dói demais. Só tenho a agradecer por ele estar comigo neste momento”.
Katierry não tinha mais mãe e chamou sua tia de anjo por cuidar da sua filha. Cristina estava há quatro anos sem ver seu filho, que não compareceu ao evento. Chorando, disse que daria sua vida para estar perto dele. Erika aproveitou a câmera para se declarar para sua mãe e jurar que iria mudar. Viviane, Sheila, Roseli e Bruna enviaram mensagens de amor para seus filhos.
Tanto Diva quanto João estavam presos. Os presídios ficam próximos, mas só puderam se encontrar naquele dia. Gilmária utilizou a entrevista para se defender: “Não precisa sentir vergonha nem ódio de mim não. Por eles [seus filhos], é amor de mãe, puro e verdadeiro. Fui presa por um homicídio que não cometi. Eu só simplesmente assumi, porque não tem condição de uma pessoa sozinha ter feito uma brutalidade que o delegado jogou nas minhas costas”. A família de Martha não pôde ir. Ela disse que se sentia muito sozinha.
Núbia Guedes é hoje doutora pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da UFPB. Ela entente que as prisões brasileiras são espaços de segregação, de higienização social dos corpos consideráveis abjetos e indesejáveis pelo sistema do capital de produção. Para ela, a prisão é mais árdua para as mulheres do que para os homens, porque as mães prisioneiras têm seus direitos à maternidade suprimidos.
“A mulher, quando comete crime, sofre preconceito em relação à maternidade, é atravessada por discursos estigmatizantes praticados pelos agentes de Estado e pela sociedade no tocante ao seu papel social de mãe, tendo em vista que são impedidas de vivenciarem os afetos de seus filhos, por conta de todo um sistema punitivo, aspecto evidenciado pelo castigo da proibição de visita”.
Núbia relata que as prisioneiras a revelaram que ser mulher e estar presa é “tirar duas cadeias”. Ou seja, na prática, é uma dupla prisão, pois são confinadas da própria liberdade e da convivência com os filhos.
Muitas dessas mulheres são presas por suposta associação ao tráfico ou por irrisórios roubos para dar de comer a seus filhos. “As mães presas com quem tive contato durante todo o meu percurso de pesquisa foram observadas como boas mães. São mães que têm amor e zelo por seus filhos, na maioria, crianças. O fato dessas mulheres ingressarem em crimes com uso ou não de violência na prática delituosa não se interliga com a qualidade de mãe no sentido de bons cuidados e afetos”, defende Núbia.
Na visão da antropóloga, o sistema carcerário capitaliza os sentimentos da mulher prisioneira, porque a pena é intensificada e ultrapassa a reprimenda do crime, pelo fato de os filhos também serem castigados, ao terem a convivência com a mãe restringida. “Nesse sentido, o Estado encarcera a maternidade e as crianças são atravessadas pela prisão sob o corolário da burocracia”.
O Brasil é o país com o 3° maior número de mulheres presas no mundo. Fica atrás apenas de EUA (211 mil) e China (145 mil), segundo dados divulgados em outubro do ano passado, na quinta edição do World Female Imprisonment List, levantamento global sobre mulheres presas realizado pelo Instituto de Pesquisa em Políticas Criminal e de Justiça (ICPR), da Birkbeck College, Universidade de Londres, no Reino Unido.
De acordo com o estudo, o número de mulheres presas quadruplicou desde os anos 2000, no país. Com esse aumento, o Brasil chegou a 42 mil presas, ultrapassando a Rússia (37 mil), atualmente na quarta posição.
No Brasil, 74% das mulheres presas são mães e 56% têm dois ou mais filhos, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2018. Entre as presas brasileiras, 63,5% são mulheres negras, 47,3% são jovens e 51,9% têm apenas o Ensino Fundamental Incompleto.
Informações de 2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a partir de registros no CadÚnico, mostraram que a renda familiar mensal per capita de mulheres presas era de R$ 40, enquanto a de mulheres não presas era de R$ 100.
No país, três a cada cinco mulheres presas respondem por crimes relacionados à Lei de Drogas, conforme o Infopen (Sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro), em 2018. No mundo, a população prisional feminina cresceu 60%, nos últimos 20 anos, somando 740 mil mulheres.
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