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Crédito: Sebastián Miquel
por Samarone Lima*, com fotos de Sebastián Miquel**
A eleição presidencial da Argentina, dia 22 de outubro, pode representar um desastroso retrocesso em um tema que o país se tornou exemplo na América do Sul: o julgamento e prisão dos militares envolvidos em graves violações de Direitos Humanos, logo após a reconquista da democracia.
Toda a cúpula militar foi julgada e grande parte condenada, com transmissão pelo rádio e TV. Os sobreviventes fizeram comoventes e dolorosos relatos do que sofreram, numa espécie de catarse coletiva, tema do filme 1985, do diretor Santiago Mitre, que levou multidões aos cinemas de todo o país, há dois anos.
Para ter uma idéia da importância da Justiça de Transição, realizada pelos Argentinos, o general Jorge Rafael Videla, que comandou a ditadura de 1976 a 1986, morreu em 17 de maio de 2013 aos 87 anos, no cárcere da prisão de Marcos Paz, onde cumpria pena de prisão perpétua.
O negacionismo da ditadura faz parte da campanha de Javier Milei, de 52 anos, vencedor das “primárias” (uma pré-eleição onde todos os presidenciáveis disputam), pelo partido Liberdade Avança.
Economista, novato na política, de extrema direita, tem um discurso que continua faturando alto nas urnas. Fala barbaridades o tempo todo, se declara “anarcocapitalista”, diz que vai “dinamitar” o Banco Central, defende a privatização do sistema de saúde e educação, pretende facilitar o acesso às armas de fogo e chegou a falar de um “novo mercado”, a venda de órgãos.
Não por acaso (ou inspiração), é admirador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-SP) e amigo de seu filho, Eduardo Bolsonaro. Os dois aparecem em fotos publicadas em redes sociais, simulando um revólver com os dedos. Milei considera “farsas da esquerda” as mudanças climáticas. Suas mensagens chegam a dois milhões de seguidores, nas redes sociais.
Como o assunto da ditadura tem um forte impacto no país, coube a à candidata a vice-presidenta de Milei, Victoria Villarruel, fazer o “jogo sujo” da campanha. Frequentadora assídua de programas na TV, tem uma forte presença midiática. Começou a falar da ditadura Argentina pelo ângulo oposto – defendendo os militares e atacando quem luta por memória, verdade e Justiça.
Uma de suas propostas foi a de devolver o principal centro clandestino de tortura do país, a onde funcionava a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), atualmente o Museu da Memória, aos “seus donos” – os militares. Entre 1976 e 1983, o local recebeu cinco mil presos. Apenas 10% sobreviveram. Ali, foram roubadas de seus pais 500 crianças.
Ela colocou em dúvida os graves crimes cometidos no local, com farta documentação dos próprios militares, considerando-os “simples abusos”.
Victoria achou pouco. Resolveu atacar a presidenta da organização Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, chamando-a de “personagem sinistro”, que vive “um eterno relato” em relação à memória construído em torno da ditadura e dos anos 1970.
Carlotto, que tem uma filha, Laura Carlotto, desaparecida, teve um filho na prisão, que nunca foi entregue à família. Somente em agosto de 2014, após 36 anos de luta, Estella conseguiu encontrá-lo. Foi rebatizado de Guido Carloto, em homenagem a um tio. Um encontro que emocionou o país.
Ela preferiu não lançar mais holofotes à candidata da ultradireita:
“Há que se defender com a verdade e a luta permanentemente. As ofensas, que Deus a perdoe. São coisas que doem, me que Deus a perdoe”.
Mas advertiu:
“Ela está dando sinais de que isso de agora não é nada. O que será depois?”
Para entender melhor a ameaça que ronda a Argentina, entrevistamos o jornalista Gérmán Duschatzk, ex-editor e colunista do jornal das Madres de la Plaza de Mayo, que também atuou como em várias emissoras de rádios e na mídia independente portenha. Ele também professor de redação no curso de Jornalismo do Instituto Universitario Nacional de Derechos Humanos Madres de Plaza de Mayo (IUNMA).
Nesta entrevista para a Marco Zero, ele se diz “profundamente envolvido” na realidade social e política da Argentina, que “sempre o comove”.
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Marco Zero: Como explicar este ascenso da ultradireita na Argentina?
Gérmán Duschatzk: A primeira coisa que eu considero é que ela aparece num contexto de deterioração social, das identidades políticas e das expectativas reais da sociedade. É expressão de grandes setores da sociedade que não estão dentro do sistema formal de trabalho, com um discurso forte antissistema (político, representativo, tradicional) e de livre mercado. Isso encaixa bem na sensação de solidão frente ao mundo que tem qualquer trabalhador, precarizado, de aplicativo ou autônomo. Para esses setores, está dirigida boa parte dos slogans do Milei e dos parceiros dele.
A gente passou os quatro anos do governo Macri [Maurício Macri, governou de 2015 a 2019], que propiciaram grandes retrocessos em matéria de direitos e benefícios econômicos das maiorias, revertendo os 12 anos de ciclo de inclusão dos governos do Nestor Kirchner e Cristina Kirchner [ele foi presidente de 2003 a 2007, enquanto sua esposa presidiu o país de 2007 a 2015]. Como parte substancial disso, voltamos a ficar submetidos às exigências do FMI, com uma dívida impossível de pagar nos termos e prazos definidos. Depois chegaram os quatro anos desse governo que está acabando agora [Alberto Fernández tomou posse em 2019], que, no que se relaciona com esse assunto da inclusão, não teve respostas e gerou a maior perda de votos do peronismo na história, fora dos anos de proscrição. A falta de reação do peronismo nacional em frente disso, é produto do governo frustrante desses últimos quatro anos, onde a riqueza só se concentrou mais ainda, tanto que o mudo do trabalho continuou em permanente deterioração.
O que há de diferença nesta “nova direita” Argentina?
Essa nova direita, que retoma alguns aspectos da nova direita anterior, que foi o Macri, se encaixa num momento onde as instituições da República estão desacreditadas, produto dessa falta de respostas aos interesses das maiorias.
Agora, eles vem com tudo. A candidata a vice-presidenta do Milei, Victoria Villarruel, é filha e neta de militares, fez parte da resistência às políticas de direitos humanos e castigo aos crimes de lesa humanidade. Escondida atrás de um discurso que equipara as vítimas de atos da guerrilha com a política de terrorismo de estado, ela nega os crimes da ditadura.
Ao mesmo tempo, são contra o aborto, os migrantes, a educação sexual integral, a diversidade de gênero. Enfim, tem todo esse rosário de ideias reacionárias.
O discurso do Milei contra o que ele chama de “casta” da política também é bem efetivo, só dirigido contra o peronismo (e tudo o que eles qualificam como socialista, comunista, etc).
O que representa o ataque a uma pessoa tão importante na luta pelos Direitos Humanos, como Estela de Carlotto?
O ataque contra a Estela é o ataque contra a mais ecumênica das figuras, na luta pelos direitos humanos. As respostas foram variadas, entre pessoas do âmbito dos direitos humanos e outras pessoas s públicas. Foi bastante inédito, porque a Estela não é uma pessoa polêmica, digamos. Não tem um posicionamento de esquerda em geral. Ela é dos direitos humanos, da recuperação dos netos e teve uma adesão definida a Cristina Kirchner. Mas não é de propor coisas relacionadas com a política em geral e, quando emite opinião, costuma ser bastante conciliadora. Ela não dá opiniões sobre a política, se não sobre a democracia. O que ela considera é que é melhor não dar tanto espaço para essas polêmicas, porque é a estratégia delas.
A declaração da Villarruel foi bastante bem violenta.
Sim, bem violenta. Parece mais uma estratégia de sempre aparecer. Essa força tem constantemente entrado nas polêmicas que apareceram de um jeito frontal e brutal. Aparecer sempre, ser titular das notícias, polêmicas constantes, é uma estratégia que usam, e parece dar bons resultados.
Outro dia, li uma matéria que falava como que a maior parte dos votantes do Milei não escolhe pela afinidade com as ideias, mas porque ele é conhecido como personagem, como novidade num cenário político que há oito anos, de dois partidos opostos, que não dão respostas.
Criar polêmicas parece sempre funcionar bem para essa direita.
Não sei se você viu, mas o Milei também fez vários comentários bem polêmicos sobre um assunto muito importante para os argentinos, que são as Ilhas Malvinas. Ele, faz tempo, disse se identificar com Margareth Tatcher [primeira-ministra da Inglaterra, que liderou a Guerra das Malvinas]. Agora, a que seria a ministra de relações exteriores dele, falou que no governo deles, se respeitaria a autodeterminação da população das ilhas (que não é autóctone, são ingleses, porque nós, os argentinos fomos expulsos). Também falou de fechar o Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, autarquia que existe desde 1958), que é a instituição pública mais importante em ciência e tecnologia.
Quanto mais barulho, melhor?
Venda de órgãos, venda de crianças, privatização das ruas, vouchers para estudar e se tratar na área da saúde, acabar com a distribuição do dinheiro federal entre as províncias, enfim. Um monte de besteira, realmente, coisas impossíveis, só ditas para aparecer. A mais efetiva, nesse contexto de perda de valor do peso e constante inflação, é a dolarização.
Mas a eleição real vem daqui a mais de um mês. um mês e meio. Eu não sei qual vai ser o resultado mas não vai ser igual. Por fora disso, um terço real da população com capacidade de eleger, não votou nas primárias.
* Jornalista, poeta e escritor, mestre em Estudos da América Latina pela USP
**Editor de fotografia da revista MAIZ, Facultad de Periodismo de la Universidad de la Plata, trabalhou em veículos como Página 12, El País (Espanha) e revista Nova (Brasil). Vencedor do prêmio de Fotografia do Mercosur.
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