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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
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Na zona rural nordestina, os agricultores costumam demonstrar orgulho e entusiasmo quando um visitante lhes pedem para visitar suas propriedades e ver de perto a lavoura. Não foi assim que Manoel Joaquim dos Santos reagiu ao nosso pedido para conhecer o lote de dez hectares na Agrovila 6 do assentamento Icó-Mandantes, em Petrolândia, município pernambucano de 34 mil habitantes a 460 quilômetros do Recife.
Com gestos lentos e ar de enfado, Manoel saltou da motocicleta para abrir a porteira que dá acesso ao seu lote. No entanto, nem seria preciso entrar no terreno para entender a razão do desânimo, pois mesmo quem está do lado externo da cerca enxerga as centenas de troncos de coqueiros mortos, completamente sem folhas, como enormes palitos espetados no solo em fileiras, à direita de uma estreita estrada de cascalho.
À esquerda, em uma faixa mais baixa do terreno, outras centenas de coqueiros ainda mantinham parte das folhas, muitas delas já secas. Esses coqueiros estão morrendo. A terra onde foram plantados também.
O assentamento Icó-Mandantes está no Médio São Francisco, uma das regiões brasileiras onde o processo de desertificação e degradação do solo é mais intenso. Essa região inclui também o norte da Bahia e está a pouco mais de 100 quilômetros da área de 5,7 mil Km2 que, de acordo com Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), é a primeira porção do território brasileiro com clima árido.
As áreas desertificadas estão espalhadas pelas duas margens do rio São Francisco. Por ironia, Manoel Joaquim vê sua plantação de coqueiros morrer e a produção de cocos despencar para zero a menos de dois quilômetros da margem do lago artificial de Itaparica.
O problema não é novo. Em novembro de 1999, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou em Recife, capital de Pernambuco, a COP-3 da Desertificação. Naquele ano, equipes de reportagem de jornais e TVs brasileiros percorreram as áreas mais ameaçadas do semiárido brasileiro, na Bahia, Pernambuco, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte. Na época, de acordo com dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) eram 113 mil Km2 de solo e vegetação degradados na região.
Desde então, o assunto saiu da pauta da imprensa e, salvo ações pontuais, tampouco recebeu atenção dos governos estaduais e Federal. Às vésperas da COP 30 do Clima, que acontecerá em 2025 em Belém, na Amazônia, e, em meio às ondas de calor que castigam o país, a desertificação voltou à pauta.
No entanto, os números atuais revelam um cenário mais grave desde a COP-3, que não se deu apenas em razão das mudanças climáticas e falta de ação das autoridades brasileiras. Erros de projetos financiados pelo governo brasileiro intensificaram ainda mais a desertificação na região.
De acordo com meteorologista Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), “25% das terras da região semiárida apresentam algum nível de degradação em uma escala que vai de moderado, grave e muito grave. Desse total, estima-se que 13% das terras já se transformaram em deserto”.
De acordo com essa estimativa, 270 mil km2 estão degradados, dos quais ao menos 127 mil km2 , ou 13% do território, podem ser considerados desérticos. No estado de Pernambuco, mais de 19,5 mil km2 sofrem com o fenômeno.
“Estima-se que 13% das terras já se transformaram em deserto”
Não há consenso sobre esses dados. Oficialmente, o governo brasileiro trabalha com o conceito de áreas suscetíveis à desertificação, o que representa um território de mais de 1 milhão de km2, mas isso inclui tudo o que está ao redor das áreas degradadas.
Já o engenheiro florestal, doutor em geoprocessamento pela Universidade Politécnica de Madri, Iêdo Bezerra Sá, pesquisador sênior da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), considera que a área desértica é inferior a 100 mil km2, pois costuma usar outra metodologia em seus trabalhos: “costumo excluir todas aquelas áreas cujo solo é, naturalmente, raso demais, com afloramento rochoso na superfície, e que sempre foram assim”.
Definida como a degradação do solo e perda de vegetação provocadas, principalmente, pela ação humana, a desertificação acelerou por causa da mudança climática, mas isso não explica tudo. Segundo Barbosa, que é doutor em Sensoriamento Remoto pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, “tem aumentado porque há processos como desmatamento, as carvoarias, a salinização, o sobrepastoreio, criação de animais em áreas muito pequenas”.
No entorno do lago artificial de Itaparica, no Médio São Francisco, onde vive Manoel Joaquim dos Santos, foram políticas públicas financiadas e executadas pelo próprio governo brasileiro que ajudaram a transformar milhares de quilômetros quadrados em deserto.
Manoel é um indígena da etnia Pipipã, um homem de estatura baixa, de tórax largo, ainda forte aos 66 anos. Os pipipãs vivem no lado pernambucano do vale do rio São Francisco, espalhados em aldeias nos municípios de Petrolândia e Floresta. Em meados dos anos 1980, Manoel e sua família foram obrigados a deixar o lugar onde seu povo viveu durante séculos por causa da construção da usina hidrelétrica de Itaparica, cujo lago artificial inundou um território de 834 Km2, desalojando 10.500 famílias.
Não demorou para Manoel ser reassentado na agrovila de Icó-Mandantes. Em 1988, mesmo ano de inauguração da usina, ele recebeu seu lote de terra e o acesso à água. O sistema de irrigação, bancado pelo Governo Federal por meio da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), veio acompanhado de assistência técnica rural e orientação para que plantasse coqueiros, pois a produção seria adquirida por fábricas de derivados de coco instaladas na região.
Ao lado do amigo Natanael Caetano de Silva, de 43 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolândia, Manoel começa a relaxar e mostrar entusiasmo com o interesse da equipe de reportagem. Ele conta que, durante os primeiros anos, tudo deu certo, até que os tubos que levavam a água do lago artificial até seu lote passaram a vazar e estourar, problemas que aconteciam a intervalos de tempo cada vez menores. “A Chesf não fazia manutenção, hoje está tudo destruído e, por isso, a água não chega mais aqui há quatro ou cinco anos”.
Contando apenas com a chuva, cada vez mais escassa, a produção diminuiu. Depois, os coqueiros foram morrendo um a um. As plantas do trecho mais baixo do terreno sobreviveram por mais alguns anos, pois quando chove, a água escorre para aquele lado.
Nessa altura, as mudanças climáticas se somaram aos erros do homem para potencializar a degradação do solo, afinal as chuvas estão mais escassas e mais irregulares.
A interrupção do fluxo d’água antecipou um problema que levaria mais alguns anos para acontecer por causa da salinização do solo provocada pela técnica de irrigação por aspersão, com grandes quantidades de água sendo jogada por potentes bicos aspersores. Adotada pela empresa estatal, o método está longe de ser adequado para coqueiros, sendo mais usado em grandes plantações de cana-de-açúcar, algodão, arroz, feijão, café, cana-de-açúcar, milho e soja . “Desperdiça água demais, coqueiro não precisa de tanto”, explica Manoel.
O resultado é que, além de seca, a terra está salinizada, praticamente estéril. “Os limoeiros estão murchando, sem as plantas até a abelhas dos apiários que eu tinha sumiram, umas morreram, outras foram embora”, lamenta o agricultor. Não fosse a aposentadoria rural no valor de um salário mínimo, Manoel estaria passando fome.
Natanael Caetano, o sindicalista, explica que as águas do lago de Itaparica são bastante salinas e, como foram usadas em grandes volumes, não foram aproveitadas pelas plantas, permanecendo no solo. “Além de seca, a terra agora está salinizada, imprópria para agricultura. A tendência é que, sem a cobertura vegetal, a situação piore porque, agora, quando chove, é tempestade”, diz.
Natanael explica que a maior parte das 800 famílias reassentadas nos quase 23 mil hectares (230 Km2) de Icó-Mandantes está na mesma situação de Manoel.
Em nota, a atual gestão privada da Chesf – a privatização da Eletrobrás durante o governo Jair Bolsonaro incluiu a empresa estatal – informou que o “processo de operação e manutenção do sistema de irrigação do projeto Icó-Mandantes deve ser tratado pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf)”.
No norte da Bahia, exatamente no limite do perímetro que passou a ser considerado como terra árida, uma placa informa que ali existiu – ou deveria ter existido – um projeto de “Manutenção e recuperação das áreas degradadas junto à Usina Hidrelétrica de Itaparica”. O texto da placa também detalha que o prazo de execução do projeto seria de 48 meses, de setembro de 2015 a setembro de 2019. Acima do texto, as duas responsáveis: a Chesf e uma instituição chamada Universidade Livre do Meio Ambiente do Nordeste, a Unieco.
No entanto, os agricultores da vizinhança não sabem dizer o que aconteceu naquela área onde a tabuleta alerta que se trata de um lugar de “entrada proibida”.
O secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Glória, na Bahia, Jorge Melo, que vive em uma agrovila de reassentados a 5,7 quilômetros do terreno, recorda que a Chesf conta que “plantaram umas árvores, pouca coisa, mas acho que 80% do que foi plantado já morreu”.
No portal de transparência do Governo Federal, são escassas as informações sobre o projeto, formalizado no contrato 348/2015 com o valor de R$ 1.417.900,00. (pouco mais de US$ 450 mil na cotação de 1º de abril de 2015, data da assinatura do contrato). Não houve licitação para a contratação da Unieco, que é considerada inadimplente pelo governo, e a situação do contrato está pendente.
A Unieco, apesar do nome, não é uma universidade, mas uma organização não-governamental cuja sede seria no Recife. “Seria” porque no endereço registrado como sede da ONG, no bairro do Poço da Panela, a proprietária e as funcionárias do pet shop que funciona no local nunca ouviram falar da Unieco.
Mais uma vez por meio de nota oficial, a Eletrobras e a Chesf asseguraram que o “Programa de Recuperação e Manutenção de Áreas Degradadas foi parte integrante do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga (também conhecida como Itaparica), que ocorreu de 2015 a 2019 e recuperou cerca de 60 hectares. Considerando as características da região (Caatinga), foram utilizadas predominantemente espécies de cactáceas e espécies arbustivas. A continuidade do programa encontra-se em discussão com o órgão ambiental para definição de objetivos e metodologias”.
Até o final de 2022, Alexandre Pires era coordenador da Articulação do Semiárido (ASA), a rede de mais de três mil ONGs, associações e sindicatos que construíram mais de 1 milhão de cisternas em pequenas propriedades da agricultura familiar. Sua experiência na região levou a ministra Marina Silva a convidá-lo para dirigir o departamento de combate à desertificação do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
No final de fevereiro ele concluiu uma das tarefas prioritárias de sua diretoria para o primeiro semestre de 2024: a redação do decreto que recriou a Comissão Nacional de Combate à Desertificação, que, até o início deste, só existia no papel, baseada em umalegislação de 2008, época em que as mudanças climáticas eram vistas como uma possibilidade no futuro.
Segundo Pires, a Comissão só funcionou até 2016, pois no ano anterior foi promulgada a lei que criou a política nacional de combate à desertificação. Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, os governos seguintes não adequaram a comissão à nova realidade.
“A comissão será paritária entre sociedade civil e governo, com representantes de ministérios, do Instituto Nacional do Semiárido, da Codesvasf, da Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] e de organizações da sociedade civil que atuem nas regiões susceptíveis à desertificação”, explicou Pires. No final de fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto com a nova composição Comissão.
De acordo com o decreto, a comissão continuará sendo presidida pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e “terá a participação de outras 11 pastas do governo federal, além de instituições, agências, bancos de desenvolvimento e entidades civis dos estados com áreas susceptíveis à desertificação”. Ao todo, serão 42 membros, com respectivos suplentes.
Além da Comissão recriada, Alexandre Pires espera que até o dia 17 de junho, Dia Mundial do Combate à Seca e à Desertificação, o Ministério do Meio Ambiente apresente um novoPlano de Ação Nacional de Combate à Desertificação. “Estamos atrasados, admito, mas estou otimista. A última atualização desse plano ocorreu em 2004. Assim, será possível voltar a captar recursos no exterior”, acredita.
O maior desafio da diretoria conduzida por Pires não é, no entanto, de natureza jurídica ou burocrática. O problema é dinheiro.
Ele revela o exíguo orçamento sob sua responsabilidade: R$ 5 milhões (pouco mais de US$ 1 milhão) em 2023, valor que se repetirá para todo o ano de 2024. Para efeitos de comparação, cada deputado federal brasileiro tem direito a, sozinho, apresentar R$ 37,8 milhões (US$ 7,7 milhões) em emendas ao orçamento a ser executado pelo governo.
Sem orçamento, Pires busca alternativas. Ele contou que o Ministério do Meio Ambiente recebeu do governo Bolsonaro apenas R$ 7 milhões em dois fundos – o Fundo Nacional de Mudanças Climáticas e o Fundo Nacional de Meio Ambiente. Para otimizar os recursos, os técnicos do MMA lançaram um edital conjunto dos dois fundos. “Nós propusemos a criação de uma linha de atividades sobre desertificação, ou seja, para contemplar recursos para projetos focados na desertificação. Foram aprovados sete projetos, dos quais cinco são com essa temática”, explicou. As atividades desses projetos acontecerão no sertão do Pajeú, em Pernambuco, na região do São Francisco, na Bahia, e no Xingó, em Alagoas.
Em fevereiro deste ano, os tribunais de contas (TCEs) de cinco estados nordestinos – Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe – concluíram uma auditoria conjunta sobre as políticas de combate à desertificação desenvolvidas pelo poder público. A conclusão dos auditores coincide com a de ambientalistas e agricultores da região: a velocidade da degradação aumentou, mas as ações das prefeituras, governos estaduais e do Governo Federal são insuficientes.
Um dos resultados da auditoria foi a apresentação de uma série de recomendações aos gestores públicos de cada estado. Entre elas a inclusão do tema na agenda do Consórcio Nordeste e a implementação das políticas estaduais urgentes sobre o assunto.
O relatório aponta que, à exceção do estado do Ceará, nenhum outro governo estadual faz o monitoramento do avanço da desertificação em seus territórios. De acordo com o meteorologista Humberto Barbosa, do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas, isso acontece em razão da omissão da legislação brasileira.
“A Constituição de 1988 protege a Amazônia, mas não ampliou essa proteção para outros biomas do país, como a caatinga, o pampa, a mata atlântica, ou o cerrado. A lei não exige que se faça esse monitoramento, a exemplo do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) realiza na floresta amazônica”, explicou Barbosa.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.
Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.