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Sem apoio e sem recursos, bibliotecas comunitárias ameaçam fechar

Neste Dia Mundial do Livro, as bibliotecas populares do Recife vivem seu momento mais difícil

Marco Zero Conteúdo / 23/04/2024
Esta foto mostra um grupo de crianças e adolescentes dentro de uma sala que parece ser uma biblioteca. As paredes são pintadas de azul claro e estão adornadas com prateleiras cheias de livros. Uma guitarra está pendurada na parede, ao lado do ar condicionado. O grupo está segurando livros enquanto estão participando de algum tipo de evento ou atividade. No primeiro plano, há um tapete colorido no chão com livros e outros itens espalhados sobre ele.

Crédito: Divulgação/Releitura

por Fabiana Coelho

Pernambuco é pioneiro no movimento de criação e articulação política de bibliotecas comunitárias. Há mais de dez anos, esses espaços de leitura, originados e inseridos em diversas comunidades do estado, atuam em rede no fortalecimento de políticas públicas que garantam o acesso ao livro e à leitura. No entanto, a despeito do papel que exercem e do reconhecimento adquirido nacionalmente, o apoio dos poderes públicos é pífio e, sem recursos, algumas destas bibliotecas ameaçam fechar as portas.

É o caso da Biblioteca Popular do Coque. Desde que foi encerrado o programa de apoio às bibliotecas comunitárias pela Fundação Itaú, no final do ano passado, a gestora do espaço, Betânia Andrade, tem tirado do bolso as despesas para manutenção mínima da biblioteca. São R$ 600 de aluguel, R$ 40 de energia elétrica, R$ 80 de Internet; além de água e material de limpeza. O espaço também precisa de manutenção e, sem conseguir arcar com os custos, Betânia desanima: “Eu não queria desistir depois de mais de 15 anos de luta. Mas tem sido cada vez mais difícil”.

Criada em 2007 a partir da parceria de Betânia com grupos de jovens da comunidade, a Biblioteca Popular do Coque lançou as sementes do que hoje é a Rede de Bibliotecas do Coque. Junto com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por meio do Centro de Estudos em Educação e Linguagem (Ceel), a rede articula a biblioteca comunitária e espaços de leitura nas diferentes escolas do local. “A gente percebe a diferença. A quantidade de jovens que busca o empréstimo de livros e que gosta de ler é muito maior atualmente. Isso é efeito de um trabalho articulado, de longo prazo”, conta a gestora.

A Biblioteca Popular do Coque também é uma das fundadoras da Releitura – Rede de Bibliotecas Comunitárias da Região Metropolitana do Recife. Em mais de 15 anos, a atuação articulada rendeu para os dez espaços que participam ou já participaram da rede a possibilidade de formação continuada, acervo qualificado, inserção na luta por políticas públicas, fomento e apoio a outras iniciativas comunitárias. “O papel da rede na condução de ações públicas voltadas ao livro e à leitura é reconhecida nacionalmente e até internacionalmente, mas não se converte em apoio público”, opina Rogério Andrade, da Biblioteca do Nascedouro, em Peixinhos.

Recursos humanos

Diferente do que ocorre com bibliotecas como a do Coque, Amigos da Leitura (Alto José Bonifácio), Educ Guri (Mangueira) e Poço da Panela, a Biblioteca Multicultural do Nascedouro não paga aluguel.
O espaço é hoje parte de um Centro Cultural inaugurado pela Prefeitura do Recife em 2006, porém a biblioteca é muito mais antiga e remonta ao período em que grupos da comunidade ocuparam o antigo Matadouro abandonado para revitalizar o local com ações culturais. “Hoje a gente fica em uma situação instável, sempre à mercê das políticas de gestão que, de uma hora pra outra, podem decidir ocupar o espaço com outras ações”, afirma Rogério.

Foto de Betânia Andrade, mulher negra de meia idade, com cabelos pretos cortados acima do ombro, usando camisa pólo preta, onde se lê as palavras Releitura - Bibliotecas comunitárias em rede.

Betânia Andrade

Crédito: Divulgação/Releitura

Mas embora esta seja uma preocupação constante – assim como pagamento de custos permanentes como Internet, material de limpeza e água, o problema mais difícil tem sido garantir os recursos humanos para a atuação na biblioteca. “A gente trabalha de forma voluntária, sempre dependendo de algum eventual projeto. Mas estamos sem dinheiro nem para o transporte”, desabafa.

Este é, aliás, um drama que atinge a maioria das bibliotecas comunitárias: espaços que dispõem de acervo e de pessoal qualificado que, no entanto, não pode se dedicar ao trabalho por falta de recursos. Na Biblioteca do Coque, por exemplo, os gestores Betânia e Rafael tiveram que buscar outras possibilidades de sobrevivência: ambos estão empregados como educadores em instituições de ensino e a biblioteca só tem conseguido abrir graças à parceria com a UFPE, que garante a presença de uma bolsista no local.

Muita história

Com 24 anos de existência, a Biblioteca Multicultural do Nascedouro é uma das mais antigas da Rede – assim como a do Cepoma (Centro de Educação Popular Mailde Araújo), em Brasília Teimosa. E, nestes mais de 20 anos de atuação, as parcerias têm sido sobretudo co organizações internacionais ou privadas.
O Cepoma, por exemplo, é mais antigo que a biblioteca. São 42 anos de uma instituição que une a educação e a cultura popular. Um trabalho que iniciou com mestres mamulengueiros do bairro, cresceu e hoje tem sede própria, biblioteca e um maracatu de crianças que é referência, o Nação Erê. Em todos estes anos, o parceiro mais constante tem sido uma instituição alemã, que garante, ao menos, os custos com dois educadores.

Um dos principais parceiros na história das bibliotecas comunitárias foi o Instituto C&A. Com o projeto “Prazer em Ler”, a instituição fomentou nacionalmente as ações articuladas de livro e leitura, fomentando, fortalecendo e qualificando as redes de bibliotecas comunitárias em todo o país. Com fim da parceria, a Releitura conseguiu garantir o apoio da Fundação Itaú que, embora não tivesse o alcance do programa Prazer em Ler, garantia recursos para as despesas básicas. No final do ano passado, a parceria foi encerrada.

Pouco apoio público

Em todos estes anos, as bibliotecas comunitárias contam nos dedos os projetos aprovados pelos poderes públicos. A maioria foram editais federais, lançados nas primeiras gestões do presidente Lula. Quase todas as bibliotecas comunitárias são Pontos de Leitura, o que garantiu acervo e equipamentos por meio de projetos federais.

Mas nesta atual gestão, o projeto de apoio às bibliotecas comunitárias lançado pelo Governo Federal contemplou apenas três dos espaços da Rede. “São apenas R$ 30 mil para o ano inteiro. Além disso, estamos quase no meio do ano e os recursos ainda não foram liberados”, reclama Rogério – um dos contemplados, com a Biblioteca do Nascedouro.

Foto de Isamar Martins, mulher de meia idade, de cabelos brancos encaracolados, usando óculos pretos de aro retangular. Ela usa uma camisa pólo preta com as palavras Releitura - Bibliotecas Comunitárias em Rede na altura do peito.

Isamar Martins

Crédito: Divulgação/Releitura

Por meio da Releitura, as bibliotecas comunitárias tiveram papel fundamental na construção do Plano Estadual do Livro e da Leitura. No entanto, reclamam que ainda falta muito para que as ações de fomento descritas no plano se convertam em ações. Uma das queixas é de que não existe um edital específico para as bibliotecas comunitárias. “Concorremos com outros projetos culturais, em editais como o Funcultura. São projetos voltados para ações de mediação, que não contemplam a manutenção ou custos permanentes”, critica Rogério.

Ele conta que a Biblioteca Multicultural do Nascedouro aprovou um único projeto no Funcultura, em 2012. Com outras bibliotecas não é diferente: a Biblioteca Popular do Coque, por exemplo, conseguiu garantir dois projetos no Funcultura em mais de 15 anos de existência.

Na biblioteca do Cepoma, os projetos são feitos em nome do Maracatu Nação Erê – o que garante algum benefício para a instituição como um todo. Mas, em relação às ações específicas da biblioteca, Isamar confessa que não se anima para inscrição nos editais estaduais: “É muita burocracia e poucos resultados”, explica Isamar Martins, da Cepoma. A reportagem entrou em contato com as secretarias da Cultura e da Educação do Estado, mas não obteve retorno.

Burocracia emperra

No final do ano passado, uma boa notícia animou as bibliotecas da Releitura: o lançamento, pela Prefeitura do Recife – por meio da Rede de Bibliotecas pela Paz (secretaria de Segurança Cidadã) -, de um edital de apoio às bibliotecas comunitárias. No entanto, bastou uma leitura no edital, para que elas percebessem que o acesso a este apoio seria praticamente impossível. “A exigência de documentação e de burocracia inviabilizou a participação de quase todas as bibliotecas comunitárias”, afirma Isamar.

Brasília Teimosa, Coque, Caranguejo Tabaiares… várias das bibliotecas são situadas em Zeis – Zonas Especiais de Interesse Social. São, portanto, dispensadas de IPTU. No entanto, este era um dos documentos exigidos. “Chegamos a buscar na Prefeitura uma declaração de que estávamos em Zeis, fomos ao cartório para cumprir todas as formalidades exigidas. Mas não adiantou nada”, diz Betânia.

Para a Biblioteca Multicultural do Nascedouro, outro problema se impôs: funcionamos em um equipamento que, em tese, pertence à Prefeitura do Recife. Mas nosso CNPJ é de Olinda e, por isso, fomos excluídos”, conta Rogério. Para várias outras bibliotecas comunitárias, sem recurso e sem pessoal disponível, a regularização de CNPJ e documentação exigida pelo edital era missão impossível.

Coordenadora da Rede Bibliotecas pela Paz, da Prefeitura do Recife, Débora Etcheverria reconhece estes entraves burocráticos. “As documentações são uma exigência da Procuradoria Geral do Município, que necessita de amarrações jurídicas para os editais que envolvem aporte financeiro”, diz.

Segundo ela, o edital fez parte do programa Recife, Cidade Leitora, lançado em 2022. Entre os eixos, além do apoio às bibliotecas comunitárias, o projeto inclui ações de ampliação de pontos de leitura e a intenção de construir o Plano Municipal do Livro e da Leitura. “A gente tem consciência do papel das bibliotecas comunitárias nas ações de estímulo e acesso à leitura. Também temos previstas ações de parceria com realização de formações. Quanto ao edital, estamos buscando alternativas”, diz Débora.

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