Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Lançamento de livro com temática anti-Lei Maria da Penha no TJPE causa indignação na internet

Marco Zero Conteúdo / 19/12/2017

Um convite do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) para o lançamento de um livro vem causando revolta entre os grupos de defesa dos direitos das mulheres e os movimentos sociais. É que o título da publicação, “A discriminação do gênero-homem no Brasil em face à Lei Maria da Penha”, despertou a atenção dos grupos, que passaram a questionar a decisão do Judiciário de abrir o seu salão nobre para a divulgação da obra. As entidades entendem que a atitude endossa um discurso contrário aos dispositivos legais que promovem o combate à violência contra as mulheres.

O convite circulou nas redes sociais na manhã desta terça-feira (19). Depois de algumas manifestações contrárias na internet, o evento, que seria realizado às 18h desta terça, foi cancelado. Procurada pela reportagem, a assessoria do TJPE informou apenas que “confirma o cancelamento do lançamento do livro do juiz Gilvan Macêdo dos Santos, que se trata de um estudo acadêmico aprovado como dissertação de mestrado em Portugal, em razão de agenda”. Em nota, o Tribunal informou ainda que “é comum a recepção de apresentações de trabalhos de personalidades do mundo acadêmico ou jurídico no Palácio da Justiça”, mas não respondeu os questionamentos da reportagem sobre os critérios de avaliação para que as obras recebam esse tipo de apoio do órgão de Justiça.

Em resposta à atuação do Poder Judiciário Estadual no caso, movimentos sociais produziram uma nota de repúdio (reproduzida na íntegra abaixo), na qual acusam a “Corte de Justiça de irresponsabilidade para com a vida das mulheres”. O texto, assinado por mais de 20 entidades, destaca os aumentos dos índices de violência contra a mulher em 2017, tanto em casos de estupro quanto de feminicídios e dispara: “O Tribunal de Justiça de Pernambuco receber o lançamento de um livro que traz em seu título o esvaziamento da Lei Maria da Penha – um dos mais importantes avanços no combate à violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres – é ter em suas mãos o sangue de Josefa Severina da Silva Filha, Daiane Reis Mota e tantas outras mulheres assassinadas por seus parceiros sexuais.”

Segundo dados repassados pela Secretaria de Defesa Social, entre janeiro e novembro deste ano 30.182 mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar em Pernambuco. As notificações de estupro chegaram a 1.961.

Secretária geral adjunta e presidente da Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), a advogada Ana Luiza Mousinho informou que o colegiado ainda não teve acesso ao conteúdo da obra e por isso não poderia emitir opinião sobre o procedimento do TJPE. “De todo modo, o título sugestiona um entendimento contrário à Lei Maria da Penha, a qual a OAB entende que é um instrumento legal eficaz ao combate da violência contra a mulher”, pontuou.

IMG-20171219-WA0007

Convite em nome do presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco para o lançamento do livro do juiz Gilson Macêdo dos Santos

Livro e autor

O livro é assinado pelo juíz de Direito Criminalista Gilvan Macêdo dos Santos. O trabalho é derivado de uma tese de mestrado do autor (O cenário normativo da discriminação directa do gênero-homem no Brasil e em outros países face à violência doméstica e familiar contra a mulher- Lei Maria da Penha) apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Portugal, em 2015, de acordo com os registros acadêmicos disponibilizados pela instituição de ensino na internet. A reportagem não conseguiu contato com o autor.

Lei Maria da Penha 

Em vigor desde 2006, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) é considerada um marco legal no combate à violência contra a mulher no Brasil. “A legislação foi pioneira ao demarcar o caráter específico da violência de gênero, explicitando a desigualdade entre homens e mulheres como o grande motivador do problema”, como destaca a ONU.

A Lei Maria da Penha acabou com a prática de o agressor de uma mulher prestar serviços comunitários, pagar multa ou doar cestas básicas. A pena de agressão passou de 1 para 3 anos com possibilidade de prisão em flagrante ou preventiva.

Leia na íntegra a nota de repúdio contra o lançamento do livro no TJPE:

O Tribunal de Justiça de Pernambuco receberia hoje, em seu salão nobre, o lançamento do livro “A DISCRIMINAÇÃO DO GÊNERO-HOMEM NO BRASIL FACE À LEI MARIA DA PENHA”, de autoria de um magistrado de Pernambuco que já tem em seu histórico profissional a perseguição aos movimentos sociais e a resistência a um judiciário garantidor dos direitos e princípios constitucionais. O cancelamento do evento horas antes da sua realização não é suficiente para afastar a (ir)responsabilidade da Corte de Justiça do Estado para com a vida das mulheres.

No Estado em que o aumento da violência contra a mulher em 2017, tanto em caso de estupro, quanto em caso de feminicídio, atingiu um nível catastrófico, não é à toa que o judiciário se torna cúmplice de métodos, argumentos e elaborações teóricas as quais tendem a manter a situação de vulnerabilidade da mulher. A histórica resistência de Maria da Penha e de tantas outras mulheres sujeitas à violência doméstica e familiar não pode ser reduzida a uma mera discussão teórica, sem qualquer conteúdo e capacidade de se inserir na realidade do debate.

A igualdade enquanto princípio constitucional e necessário para o aprofundamento da democracia, traz em seu significado a compreensão das desiguais condições materiais (econômicas e sociais) que as mulheres possuem em razão da sistemática subjugação dos seus direitos, da sua dignidade e da sua liberdade.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco receber o lançamento de um livro que traz em seu título o esvaziamento da Lei Maria da Penha – um dos mais importantes avanços no combate à violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres – é ter em suas mãos o sangue de Josefa Severina da Silva Filha, Daiane Reis Mota e tantas outras mulheres assassinadas por seus parceiros sexuais. Não nos calaremos diante da suspeita e injustificável cumplicidade da Justiça de Pernambuco com nossas mortes. Não aceitaremos que nossos direitos sejam esvaziados em alto som nos salões nobres dos poderosos, enquanto nossas mortes são silenciosamente ignoradas. Nenhum direito a menos.

Assinam:

Marcha Mundial das Mulheres de Pernambuco

RENAP – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares

CPDH – Centro Popular de Direitos Humanos

Grupo Robeyoncé de Pesquisa-Ação

DADSF – Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho (Direito-UFPE) 

Grupo contestação 

Maria, vem com as outras! Grupo de extensão em combate à violência contra a mulher.

DCE Dom Helder Câmara  – Gestão Ponto de Ruptura

Diretório Acadêmico Fernando Santa Cruz – gestão Sem Medo de Mudar

Coletivo MUDA

Grupo Asa Branca de Criminologia

RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas

MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto

Consulta Popular

Secretaria de Mulheres do PT de Pernambuco

PartidA

Meu Recife

Mulheres no Audiovisual PE

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

Rede de Mulheres Negras de Pernambuco

Levante Popular da Juventude

 

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.