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por Ronald Vasconcelos*
Por possuir íntima conexão com a saúde, a moradia, o meio ambiente e a qualidade de vida, as políticas de saneamento se relacionam com uma série de direitos, acolhidos na perspectiva do direito à cidade, e são um vetor fundamental à reforma urbana. A universalização do esgotamento sanitário no país é um requisito vital para fazer frente às desigualdades, principalmente no caso recifense e de sua região metropolitana.
Os fatores ambientais e de localização, junto aos de ordem cultural, econômica e social, transformam o Recife numa cidade singular. A condição de ser uma cidade erguida numa confluência dos rios e do oceano lhe confere a condição de cidade anfíbia, melhor traduzida nos versos do poeta Carlos Pena Filho: “Metade roubada ao mar, metade à imaginação”.
Entre os fatores citados, é importante evidenciar aqueles que se destacam como condicionantes significativos aos problemas sanitários e de habitabilidade na cidade, associados aos fatores econômicos que são determinantes. Tais fatores vão determinar uma forma particular de ocupação, situando-se as áreas de baixa renda entre rios, riachos, canais, morros e encostas. Essas áreas se encontram espalhadas no território, distribuídas em mais de 540 assentamentos só no Recife, que são caracterizados pela ausência ou insuficiência de saneamento básico e sujeito a múltiplos problemas, entre os quais aqueles que afetam diretamente a saúde da população.
Contudo, é no campo do esgotamento sanitário que a situação do Recife se mostra mais grave. O sistema de coleta de esgotos atende apenas a 36% do território e apenas 21% deles recebem tratamento. Nas habitações dos assentamentos precários, o esgoto é despejado diretamente nos cursos d’água, nos becos e vielas. Cerca de 42,9% dos domicílios estão ligados à rede de esgotos ou à rede pluvial, 46,6% utilizam fossas sépticas rudimentares e 7,8% jogam os dejetos sem tratamento em valas, rios, lagos, no mar e outros escoadouros. Essa baixa cobertura coloca o Recife entre as dez cidades do Brasil menos saneadas.
As perdas resultantes do processo de ocupação da cidade e da deficiência dos serviços de saneamento são inomináveis. Porém, a pior situação é a alta probabilidade de contrair doenças que vão afetar a saúde da população. Essas moléstias são decorrentes da poluição do solo e dos cursos d’água pelo lançamento in natura de esgotos fecais, à falta de um sistema adequado de esgotos, como também da insalubridade das áreas baixas da cidade.
Para enfrentar essa grave situação, o estado de Pernambuco, através de sua companhia de saneamento (Compesa), optou por implementar uma Parceria Público-Privada (PPP) nos últimos anos, visando universalizar os serviços de esgotos num período de 35 anos, estendendo a ação à toda Região Metropolitana do Recife (RMR). Essa ação em curso passou a ser denominada Programa Cidade Saneada (PCS).
Desde o início das atividades no ano de 2013, a parceira privada, BRK Ambiental, tem realizado as ações programadas de recuperação das infraestruturas existentes (90% concluídas), cadastro dos sistemas (100% concluídas), operação, manutenção, elaboração de projetos e implantação de novos sistemas (alcançando uma cobertura de 38% em 2020 e com previsão de atingir 53% em 2025). Caso a previsão de investimentos de R$ 2,7 bilhões seja cumprida até 2025, a cobertura nas sete cidades mais populosas da RMR deverá ser de 56% em Paulista, 86% em Olinda, 63% em Recife, 40% em Jaboatão dos Guararapes , 41% em Goiana , 21% em São Lourenço da Mata e 61% em Ipojuca.
Porém, o maior desafio da PPP é que seja promovida a urbanização das áreas de baixa renda (546 apenas no Recife), pois o contrato da parceria estabelece a realização da implantação dos serviços de saneamento após a urbanização dos assentamentos precários pelos municípios. Sem isso, não se atinge a universalização desejada.
Ao lado desse desafio, em 2023, outro entrave potencial passou a se apresentar com a decisão do Governo de Pernambuco de privatizar a Compesa. Os estudos dessa decisão estão sendo realizados pelo BNDES, ancorado no novo Marco do Saneamento (Lei nº14.026/20) que, sob o argumento da universalização, claramente induz estados e municípios a promoverem a concessão plena das empresas de saneamento à iniciativa privada.
Contudo, os municípios passíveis de concessão plena já foram privatizados (6% dos municípios brasileiros localizados no Sul e Sudeste) desde o governo Fernando Henrique Cardoso. A questão da escolha da modalidade de parceria com o setor privado se mostra mais complexa. Mesmo que seja fundamental a participação da iniciativa privada para a plena cobertura de esgotamento sanitário, esta não pode ser tomada como a solução total para os problemas, ainda mais quando se leva em conta os inúmeros obstáculos a essa participação.
Estudos realizados mostram que a concessão plena não é a melhor solução na promoção da universalização. Apesar da precária situação das empresas de saneamento, elas têm um papel estratégico a desempenhar no planejamento e financiamento dos serviços, já que a maior parte dos recursos a serem investidos continuarão a ser oriundos do setor público. Por isso, é importantíssimo preservar o mecanismo do subsídio cruzado, que garante a prestação de serviços onde não há viabilidade econômica, como acontece na maioria dos municípios do semiárido. Não se faça com o saneamento o mesmo que foi feito com o setor ferroviário! Este, ao invés de ampliar a oferta dos serviços regrediu, estando hoje entregue à própria sorte.
Entre as diversas modalidades de participação da iniciativa privada, as Parcerias Público Privadas (PPPs) apresentam as maiores possibilidades de atração de recursos junto à captação nas bolsas de valores, sem renunciar ao controle da companhia de saneamento e ao comando das ações no setor.
Dito isso, o maior desafio imposto à Compesa pela nova lei é a celebração, entre o estado e municípios, de bons contratos de concessão, que levem em conta o interesse público dos municípios concedentes, que estabeleçam as prioridades, o planejamento das ações, as metas a atingir, a fixação dos prazos, a modelagem de projetos e a indispensável atração do investimento privado.
O fatiamento da companhia, à venda para aumentar o caixa estadual ou para eliminar o fardo da administração, em nada contribuirá para o objetivo de sanear o território do Recife, da região metropolitana e das demais cidades do estado a fim de garantir um ambiente saudável. Ainda mais quando esse problema é fortemente agravado pelas mudanças climáticas, já sentidas no nosso cotidiano.
*Engenheiro civil e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.