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O ato de consumir como um ato político

Joel Santos Guimarães / 20/06/2015

A sociedade brasileira, na forma de movimentos sociais organizados, está promovendo uma revolução pacífica e silenciosa em diversos setores de atividade. Um dos exemplos é uma nova relação, direta, que vem se estabelecendo entre consumidores e agricultores familiares, como uma alternativa para fugir da “ditadura” de supermercados e grandes distribuidoras.

Essa relação direta, sem intermediários, vem construindo opções saudáveis e responsáveis de produção, comercialização e consumo.

A movimentação ganhou força a partir de 2000, se baseia nos princípios da economia solidária e tem um nome: consumo responsável. Há Grupos de Consumo Responsável organizados em vários estados brasileiros.

Em entrevista exclusiva ao blog Agência Solidare (reproduzida pelo Marco Zero Conteúdo), a economista Thais Mascarenhas, coordenadora de Projetos do Instituto Kairós − Ética e Atuação Responsável, ONG que tem como foco a educação, assessoria e pesquisa em consumo responsável e comércio justo e solidário, explica que “os Grupos de Consumo Responsável são consumidores e produtores organizados que se propõem a transformar seu ato de consumo em um ato político, visando à sustentabilidade da própria experiência e do bem-estar do planeta”.

CONFIRA A ENTREVISTA:

Thais Mascarenhas. Foto: Reprodução

Thais Mascarenhas. Foto: Reprodução

O que é consumo responsável e que o diferencia do consumo tradicional?
Thais – O consumo responsável é um conjunto de hábitos e práticas que fomentam um outro modelo de desenvolvimento, comprometido com a redução da desigualdade social. Seu objetivo é melhorar as relações de produção, distribuição, aquisição e uso de produtos e serviços, de acordo com os princípios da economia solidária, soberania alimentar, agroecologia e o comércio justo e solidário. É a valorização e a vivência de atitudes éticas para a construção conjunta de um novo panorama social e ambiental.

O consumo responsável adota critérios que, muitas vezes, as pessoas não levam em conta, quando optam por escolher um determinado produto. Ao invés do mais gostoso, mais bonito, ou mais útil, precisamos levar em conta se o produto que se vai comprar é realmente necessário. Além disso, o consumidor deve considerar quais os caminhos que aquele produto percorreu até chegar as prateleiras e que suas escolhas diárias afetam a sua qualidade de vida, a sociedade, a economia e a natureza.

Ou seja, o consumidor precisa levar em conta além da produção e da distribuição as questões sociais e ambientais?
Sim. Por isso, é importante que o consumidor olhe para o produto além do que está ali na sua frente. É preciso saber como ele foi produzido, as condições de trabalho de quem o fabricou e considerar ainda como os trabalhadores o produziram, levando em conta a parte social e as questões ambientais.

Muitas vezes, um produto é fabricado levando em conta todos esses pontos que você citou. Mas, como enfrentar a questão da distribuição desses produtos, controlado em sua maioria pelas grandes empresas do setor, até que eles cheguem ao consumidor final?
Precisamos olhar especificamente para o sistema de distribuição também. É que, às vezes, a produção é feita de maneira solidária, mas, quando chega na distribuição, acaba beneficiando outros atores, que monopolizam esses canais de distribuição, que não levam em conta aqueles que fabricaram os produtos e também não se preocupam em buscar um preço acessível a mais consumidores.

Praticar um consumo responsável, na verdade, é refletir criticamente sobre o seu consumo e tentar buscar esse tipo de informação e considerar esse tipo de critério nas suas escolhas.

Responsável x consciente

Quando essa visão ou conceito de consumo responsável chegou ao Brasil?
O Instituto Kairós começou a trabalhar com esse tema em 2000. Antes, havia algumas poucas instituições que trabalhavam com o tema. Mas de outra forma. O conceito de “consumo consciente”, por exemplo, vai menos na linha de entender como o produto foi produzido e distribuído e mais no sentido individualista. Mais no sentido de discutir alguns hábitos de consumo e não entra no questionamento no modo de produção. Mesmo porque algumas dessas instituições têm parceria com empresas que produzem esses produtos. Já o “consumo responsável” olha o produto desde a sua produção e busca questionar o modo de produção e distribuição atual e construir alternativas.

Nesse caso, qual deve ser o comportamento do consumidor responsável?
Ele precisa buscar informações importantes sobre o que compra e usa. Avaliar não comprar produtos de empresas que exploram seus trabalhadores, por exemplo. O boicote é bastante comum na Europa e nos Estados Unidos. Além disso, deve denunciar essa situação para não fortalecer esse tipo de produção. Tem os famosos 4Rs: reduzir, reusar, reciclar e repensar o seu consumo. O Kairós, quando começou a trabalhar com consumo responsável, tinha um foco muito na formação de professores e multiplicadores. Mas a gente foi vendo que, na verdade, só problematizar o consumo não era suficiente. Era preciso também procurar e ajudar a encontrar alternativas a esse modo de produção e de distribuição tradicional.

E a movimentação pelo consumo responsável encontrou alternativas? Quais?
A partir disso, a gente se aproximou do movimento de economia solidária, que tem justamente essa proposta de um modo de produção onde não existe patrão nem empregados, mas trabalhadores que, em suas cooperativas ou associações, decidem coletivamente o que e como produzir e como vão se organizar para fazer aquele trabalho. O que buscamos agora é encontrar meios para fortalecer esse modo de produção.

Economia solidária

E como foi essa aproximação com a economia solidária?
O Kairós foi se aproximando da economia solidária atuando mais no movimento mesmo. Em termos de projeto, o Kairós se focou em projetos ligados à agricultura familiar. Tivemos dois projetos com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e outro com a prefeitura de São Paulo. O objetivo era fazer essa discussão do consumo responsável para quem estava produzindo na agricultura familiar e para os técnicos que trabalham com os agricultores. Trabalhamos os conceitos do consumo responsável e a questão da diversificação dos meios de distribuição e comercialização. Agora estamos com um projeto com o Ministério do Trabalho para o fortalecimento de uma rede de Grupos de Consumo Responsável.

E qual a importância da economia solidária para o consumo responsável?
A economia solidária é o caminho que mais se alinha com essa proposta do consumo responsável. Não funciona como o capitalismo tradicional, pois ela não visa ao lucro, mas à melhoria da renda e da qualidade de vida dos trabalhadores. Com a economia solidária, trabalhamos o acesso a outros canais de comercialização, como a venda pelos agricultores familiares para a alimentação escolar das escolas públicas, que, por lei, são obrigadas a comprar 30% do que consomem da agricultura familiar.

Há aí várias dificuldades, porque as escolas precisam entender o que o produtor do entorno tem disponível e os agricultores conseguirem fazer um planejamento maior da produção para ter uma frequência de entrega daqueles produtos naqueles volumes para as escolas. E a nutricionista tem que adaptar o cardápio para esses produtos que são fornecidos pela agricultura familiar.

É possível fazer isso? De que maneira?
Para um agricultor familiar colocar o seu produto no mercado convencional é muito difícil, pois as condições de vendas são muito ruins. O que trabalhamos com eles é que diversifiquem esses canais de comercialização ou encontrem meios alternativos, que seria a venda para as escolas públicas ou nas feiras, por exemplo. E que as feiras não sejam apenas um local de vendas, mas também de encontro de pessoas, de formação, de socialização, que os consumidores e vendedores possam trocar receitas.

Essas feiras têm uma proposta que as diferencia das feiras tradicionais?
Sim. Por exemplo, agora estamos trabalhando com a Feira Orgânica do Modelódromo do Ibirapuera, que é uma feira bem diferente das outras feiras, já que quem está vendendo são os próprios produtores. Ou seja, há um encontro direto entre os produtores e os consumidores. É uma feira semanal, que acontece sábado de manhã e que sempre tem atividades formativas, um chef ensinando a fazer uma receita gostosa e saudável, um bate-papo com nutricionistas ou algum especialista relacionado a algum tema como a saúde, agricultura, produtos orgânicos etc.

Feira de Orgânicos do Centro Esportivo do Modelódromo, na região do Parque Ibirapuera, na zona sul de São Paulo. Foto: Fábio Arantes/Fotos Públicas

Feira de Orgânicos do Centro Esportivo do Modelódromo, na região do Parque Ibirapuera, na zona sul de São Paulo. Foto: Fábio Arantes/Fotos Públicas

O que é vendido nessas feiras?
Produtos orgânicos ou que estão em transição para o orgânico: frutas e hortaliças e produtos beneficiados como suco, molho de tomate etc.

E como o agricultor familiar e o próprio consumidor podem se organizar para que o consumo responsável possa ser adotado por um número cada vez maior de consumidores? Existe um levantamento sobre isso?
Não temos um acompanhamento sistemático disso. Fizemos um trabalho no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e São Paulo. Fizemos uma cartilha do controle social na alimentação escolar e de como o público pode se organizar para que essa compra aconteça, e ela deve ser cobrada pela sociedade civil. E também materiais sobre as outras estratégias de comercialização. São três as estratégias que a gente trabalha: feiras, alimentação escolar e organização de Grupos de Consumo Responsável, que são iniciativas de consumidores que, a partir dessa discussão sobre o consumo, se juntam para viabilizar canais de acesso alinhados com seus princípios.

Cooperativismo de consumo

O que exatamente são e como funcionam esses Grupos de Consumo Responsável?
Experiências de consumidores e produtores organizados que querem transformar o seu ato de consumo em um ato político visando à sustentabilidade da própria experiência ao bem-estar do planeta. Importante lembrar que em diversos momentos da história há a formação de organizações para aquisição de bens e serviços. Há referências de que o chamado cooperativismo de consumo surgiu no século 19, na Inglaterra, como uma das primeiras manifestações dos trabalhadores contra a exploração que sofriam por parte dos patrões.

Essa forma de organização do consumo serviu, durante décadas, como alternativa para o abastecimento de pessoas em diversas partes do mundo, até cair em decadência em consequência do predomínio pelos modelos de distribuição em massa (super e hipermercados) a partir da metade do século 20.

Quantos Grupos de Consumo Responsável existem hoje em todo o País?
O Kairós tem mapeado cerca de 20 grupos em todo o País, quase a metade deles no Estado de São Paulo. Esses grupos de consumo atuam ou no que classificamos de redes singulares ou em redes capilares. Redes singulares são grupos formados por um coletivo de consumidores que são responsáveis pela gestão e distribuição de produtos (entrega/retirada) e que se relacionam diretamente com os produtores. Uma rede capilar é um grupo de consumo formado por diferentes núcleos de consumidores, que são responsáveis pelas entregas aos consumidores. Um exemplo de rede capilar é o MICC (Movimento de Integração Campo Cidade), que fica na zona leste da cidade de São Paulo. É um grupo super interessante porque trabalha com consumidores de baixa renda.

Esse grupo, especificamente tem o apoio da igreja. Começou em 1986, na Vila Alpina. Esse grupo começou a fazer um trabalho em um assentamento, nos arredores de São Paulo e organizaram essa logística das cestas para a cidade de São Paulo. Começou com essa ideia de integrar campo e cidade a partir da produção do campo que é levada para a cidade. Hoje eles entregam cestas para cerca de 1.000 famílias, com variedades de hortaliças com preços bem baixos. Tem alguns pontos de entregas onde as famílias do bairro vão buscar.

O fortalecimento do consumo responsável e a sua expansão entre os consumidores é uma consequência da atuação dos movimentos sociais?
Sim, ele vem se fortalecendo nos últimos anos. Há políticas públicas específicas voltadas para isso e, de outro lado, tem o movimento social crescendo, pressionando e se articulando, e se fortalecendo e encontrando novas saídas e novas soluções para os desafios que vêm aparecendo.

Entrevista publicada originalmente no blog Agência Solidare, especializado em Economia Solidária

 

 Saiba mais

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[li]Para saber quais e onde são as feiras orgânicas em Recife, conheça o mapa elaborado pela Sociedade Vegetariana Brasileira: www.svbrecife.org/mapa-de-feiras-organicas[/li]
[li] Quem estiver fora do Recife, pode usar o mapa disponibilizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) para descobrir qual é a feira mais perto de sua casa: feirasorganicas.idec.org.br[/li]
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AUTOR
Foto Joel Santos Guimarães
Joel Santos Guimarães

Jornalista especializado em economia solidária, agricultura familiar, política e políticas públicas. Trabalhou na "Folha de Londrina" e "O Globo", onde esteve por mais de 20 anos exercendo diversas funções, entre elas a de chefe de redação da sucursal de São Paulo. Em 2003, fundou a Agência Meios e a Agência de Notícias Brasil-Árabe (ANBA), com Paula Quental. Foi coordenador do projeto por dez anos. Sob sua gestão, a agência conquistou 11 prêmios de jornalismo web e alcançou 1,2 milhão de acessos mensais.