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por Jane Fernandes e Joana Suarez, da revista AzMina
A avaliação de um processo judicial, em um Estado laico e democrático, deveria ser técnica, sem priorizar crenças ou questões pessoais. Mas juízes, promotores, advogados e outros operadores do Sistema de Justiça têm cada vez mais se organizado em grupos e associações de diferentes religiões – evangélicas, católica e espírita – para dar suporte a decisões baseadas na fé.
Em uma cruzada antidireitos, as entidades oferecem formação em Direito sob perspectiva religiosa, validam nomes para cargos importantes no sistema jurídico, articulam interferências em votações no Supremo Tribunal Federal (STF), influenciam decisões judiciais em âmbito individual e coletivo. Quando se trata do tema aborto, a convicção moral e religiosa pode restringir um direito humano e afetar a saúde de mulheres, meninas e pessoas que gestam.
A Associação Nacional dos Magistrados Evangélicos (Anamel) realiza seminários e congressos nos quais defende uma visão religiosa do Direito. No mais recente, o painel online O cristão e o processo penal justo, defendeu a Bíblia como um manual, por conter “determinações, orientações que servem para nossa vida, inclusive para o processo penal, como nós vamos julgar”. A Anamel transmite cultos semanais com a participação de magistrados em sua página do Instagram.
A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) defende que, “no caso do Direito, especificamente, somente a cosmovisão cristã pode erigir um sistema de justiça, igualdade e dignidade da pessoa humana”. A entidade, formada por desembargadores, juízes, advogados, promotores e defensores públicos, busca ainda explicar por que “a ética cristã é bom para a sociedade”, ou que “a visão bíblica da natureza humana é essencial para uma boa política pública”.
Pessoas com poder de decisão, trabalhadores do Judiciário, se reúnem também na Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas (Abrame), União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), União Brasileira dos Juristas Católicos (Ubrajuc), Associação Brasileira dos Juristas Conservadores (Abrajuc) para encaminhar ações conservadoras.
Os grupos de juristas católicos e evangélicos têm investido na formação de novos profissionais. O objetivo é garantir um futuro com mais advogados, juízes e outros operadores do Direito “atuando em prol dos valores da neocristandade católica”, como relata a pesquisa Cartografia dos catolicismos jurídicos antigênero do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
Direito natural e segurança jurídica nas decisões judiciais é o tema de um dos seminários à venda no Instituto Ives Gandra. Membro do Opus Dei, Ives Gandra fundou a União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), é um dos fundadores da União Brasileira de Juristas Católicos e também criou o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).
Como representante da Ujucasp, Ives defendeu que a vida começa na concepção, apontando como fonte técnica a Academia de Ciências do Vaticano, em argumentação oral enviada ao STF contra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 (que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana). O jurista sugere um suposto consenso científico, mas o marco temporal da vida humana é um debate ainda sem conclusão.
A formação na cosmovisão cristã, baseada principalmente no calvinismo, é o foco da Academia Anajure, criada em 2016. Com oferta de 40 vagas por turma, a escola oferece hospedagem e alimentação para os selecionados, que têm aulas presenciais durante uma semana. As inscrições são restritas para estudantes de Direito e recém-formados, que devem apresentar carta de recomendação do pastor.
“Equipar jovens líderes a aplicar a Palavra de Deus em cada esfera de suas vidas” é um dos propósitos do curso anual da Anajure. Na carta de princípios que os participantes assinam, há um compromisso de desempenhar o trabalho “de modo a glorificar ao Senhor Jesus, a edificar e auxiliar a Igreja e a proclamar os valores ínsitos à fé cristã no Brasil e no mundo.”
No seminário da Anamel também existem falas que vão contra a laicidade da Justiça e do processo penal justo, a exemplo de: “temos que buscar na Bíblia a visão de constituinte“. Em uma entrevista sobre a Anamel na Rede Super de Televisão, a juíza Luziene Barbosa Lima, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), diz que a associação surge de uma revelação do Senhor e que tem o intuito de ocupar o Estado para levar o evangelho.
Basta uma chance de impedir avanços no direito ao aborto para as entidades religiosas de juristas tentarem impor suas convicções nos debates. Foi o que aconteceu quando o STF iniciou a votação da ADPF 442.
A Anajure escreveu uma carta aberta ao Supremo com argumentos baseados na fé e foi aceita como amicus curiae – que é uma espécie de consultor no julgamento da ação. Entre citações da Constituição Federal e trechos bíblicos, a entidade classifica a vida como “dádiva divina” e convoca o país a entrar em oração.
Evangélicos e católicos se reuniram em outra carta contra a ADPF 442, assinada pela Anajure, pela Ujucasp, Ubrajuc, Abrajuc e mais grupos religiosos. A Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas (Abrame) também manifestou seu repúdio de forma independente.
As entidades também investem no lobby para que juristas alinhados às suas crenças ocupem cargos em órgãos federais do Judiciário. Durante o governo de Jair Bolsonaro, a Anajure sabatinou os candidatos à Defensoria Pública da União (DPU) e depois comunicou o apoio a Daniel Macedo, nome confirmado dias depois.
Daniel ocupou o cargo até janeiro de 2023 e tratou com naturalidade a mistura entre suas crenças e a chefia da DPU. “Se uma parte da Defensoria defende o aborto, temos que ter outra parte que defenda a vida. Senão vira um patrulhamento de um lado só”, disse em entrevista à Revista Piauí após a Presidência anunciar sua indicação.
Outro aval da Anajure foi na escolha de Augusto Aras para a Procuradoria Geral da República (PGR) – órgão que ele deixou em setembro de 2023, após 4 anos. Aras foi o único dos candidatos a assinar a carta de princípios enviada pela associação. Em fevereiro de 2020, Edna Zilli, atual presidente da Anajure, foi recebida pelo chefe de gabinete da PGR para defender a permanência de um missionário evangélico na Funai.
A presença de marcadores religiosos na política institucional brasileira está até na lei. “Promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”, diz o preâmbulo da Carta Magna. “É algo tão comum que talvez tenha sido naturalizado, mas que tem ficado mais evidente quando a incidência de atores religiosos passa a ser mais organizada”, esclarece Lívia Reis, pesquisadora do ISER que atuou na pesquisa Cartografia dos catolicismos jurídicos antigênero.
A criação de entidades de juristas a partir da religião está prevista no ordenamento legal brasileiro e sua existência não afronta o Estado laico, como explica Lívia. Mas, “o problema passa a ser justamente quando o Estado, através das pessoas que o representam nos órgãos de decisão, baseiam suas decisões em valores religiosos”, pondera.
A incidência de valores religiosos no Judiciário, no entanto, nunca dependeu da existência dessas associações. A pesquisadora ressalta que a Justiça não é neutra, embora devesse se basear na garantia de direitos fundamentais e sociais, o que muitas vezes é negado.
O ISER mapeia a atuação dessas entidades em processos e observa que a alusão direta à religião está sendo substituída pelo jusnaturalismo ou direito natural – uma espécie de lei imposta pela natureza e independente dos homens. “No caso do aborto, recorrem a argumentos científicos sobre a origem da vida”, comenta Lívia Reis.
Luiza* esperou por dez semanas a autorização do juiz para interromper a gravidez. Além de lidar com o luto, teve de lutar na Justiça. Ao engravidar do segundo filho recebeu um diagnóstico de malformação fetal incompatível com a vida fora do útero. Manter essa gestação até o final aumentaria seu sofrimento mental e também oferecia risco para sua saúde física.
No processo judicial, ela teve que atender a vários pedidos de laudos adicionais e novos exames. Luiza* desejou e planejou a gestação, mas a primeira ultrassonografia morfológica revelou que o feto tinha síndrome de Body Stalk (que deixa os órgãos do feto expostos). Ela buscou a Defensoria Pública de São Paulo para conseguir a autorização para o aborto por analogia à anencefalia.
A interrupção da gestação de fetos anencéfalos é permitida no Brasil desde 2012, quando o STF aprovou a ADPF 54. O aborto legal pode ser feito (desde 1940) em outras duas situações: quando a gestação é resultado de estupro ou a gravidez coloca a vida da mulher em risco.
O responsável pela ação de Luiza* na Defensoria Pública decidiu conversar com a juíza diante dos pedidos e autorizações negadas para a interrupção da gestação. A experiência anterior do órgão em processos semelhantes era de aprovações mais rápidas. A justificativa da magistrada para indeferir repetidamente foi sua posição antiaborto – disse o defensor do caso a Luiza*. Segundo ela, a magistrada disse na decisão que [a situação que Luiza* estava vivendo] “toda mulher precisava viver uma vez na vida.”
Desassistida. Foi assim que Luiza* se sentiu, afinal sempre cultivou a ideia que a Justiça é cega, e estaria acima de opiniões e crenças pessoais. “Você vai atrás de um direito, não está fazendo nada errado, mas a juíza acha que pode se colocar acima de tudo”. Ela pensou em desistir, mas o marido insistiu para levarem o processo adiante. A gestação estava com 23 semanas quando aconteceu o aborto. Antes disso, mulheres religiosas desconhecidas descobriram seu endereço e apareceram em sua casa tentando convencê-la do contrário.
O caso de Luiza* exemplifica como a visão do aborto das entidades religiosas dá suporte a decisões baseadas em critérios pessoais e religiosos, mesmo em casos de aborto legal que são judicializados.
Na Bahia, cinco mulheres desistiram de passar por um processo judicial desgastante como o de Luiza. Desde julho de 2022, 86 gestantes procuraram a Defensoria Pública do Estado (DPE-BA) para realizar o aborto legal por analogia à anencefalia. Segundo Lívia Almeida, coordenadora do Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem/DPE-BA), as alegações de suspeição e os pedidos de material complementar são as principais causas de tramitação prolongada. A religião do jurista pode estar entre as motivações.
A promotora pernambucana Henriqueta Belli nota que a participação de promotores e juízes guiados por convicções religiosas ou morais é a principal barreira quando há judicialização do aborto legal. “Promotores e juízes que não se sintam em condição de exercer uma análise técnico-jurídica não devem se envolver nesse tipo de processo.” O magistrado pode se reconhecer incapaz de avaliar o processo com isenção, e não há necessidade de explicar o porquê.
A demora na análise das ações é um complicador para a vida da pessoa que gesta. “É de conhecimento público que quanto antes a gestação for interrompida, mais saudável é para mulher”, destaca Henriqueta. Quando o aborto é negado pelo juiz da primeira instância, esse tempo é ainda maior, pois o processo será remetido a um desembargador. Se ainda assim o procedimento não for autorizado, resta levar às cortes superiores.
Os pedidos de autorização judicial para aborto legal por analogia à anencefalia são sempre acompanhados de um laudo de incompatibilidade daquele feto com a vida extrauterina assinado por dois médicos. Esse é o procedimento padrão, mas magistrados interessados em adiar o parecer costumam pedir exames específicos e até mesmo o envio das imagens.
Para ganhar tempo, a coordenadora do Nudem-BA, Lívia Almeida, conta com uma rede bem estruturada. Em uma mensagem deWhatsAppela consegue os exames e já encaminha, driblando possíveis adiamentos.
A primeira negativa em um processo judicial de aborto ocorreu em agosto deste ano, 25 meses após o Nudem assumir os casos desse tipo que chegam à Defensoria. O Núcleo recorreu da decisão e conseguiu a autorização alguns dias depois, quando o processo foi julgado na 2ª instância do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA). A decisão veio com um pouco de atraso, mas tem um peso histórico, avaliou Lívia, pois abordou pontos como Estado Laico e direito à saúde mental.
“Conjecturas que residem puramente no âmbito da moral religiosa não podem servir como fundamento para análise judicial”, disse o desembargador Geder Luiz Rocha Gomes, primeiro a votar na Segunda Câmara Criminal do TJBA, em entrevista ao jornal O Globo. Os outros magistrados acompanharam o voto de Geder Luiz para a liberação do aborto no recurso apresentado pelo Nudem.
A negativa de acesso ao aborto legal para vítimas de estupro costuma chamar atenção, mobilizando a imprensa e a sociedade. Lívia Almeida conta que, no Nudem da Bahia, até o momento, todas as demandas do tipo foram resolvidas administrativamente. O órgão lançou uma cartilha sobre violência sexual e aborto legal no ano passado.
Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Anis Instituto de Bioética, observa que a judicialização é mais comum quando envolve divergência entre os responsáveis e as crianças ou adolescentes vítimas de estupro, e/ou a gestação passou de 22 semanas. Ela lamenta que as vítimas com menos de 18 anos tenham pouco poder na decisão. “É preciso haver uma escuta qualificada, que leva em consideração a fase de desenvolvimento e a possibilidade de decidir sobre o seguimento de algo tão crucial para sua vida.”
Um dos episódios de maior repercussão nacional ocorreu em Santa Catarina, no início de 2022, e resultou na investigação da juíza Joana Ribeiro Zimmer pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por impedir uma criança vítima de estupro de fazer o aborto. A menina de 11 anos foi mantida pela Justiça por mais de um mês em um abrigo para evitar que ela fizesse o procedimento.
Ao votar pela abertura do processo administrativo, Luís Felipe Salomão, então corregedor nacional da Justiça, ressaltou indícios de conduta baseada em crenças religiosas. “Situação é muito grave pelas inserções de agente do Estado de convicções morais e religiosas, de maneira a configurar violência de vulnerável que deveria ser acolhida”, argumentou o conselheiro Luiz Philippe Vieira de Mello, que seguiu o voto do ministro Luís Felipe, assim como os demais integrantes do CNJ. De acordo com a assessoria de comunicação do Conselho, esse processo continua em andamento.
Mais de 51 mil crianças de 0 a 13 anos foram estupradas em 2023, mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O Sistema de Informação de Nascidos Vivos do Governo Federal indica que 19 mil meninas de até 14 anos têm filhos a cada ano. O Código Penal considera toda relação sexual com menor de 14 anos estupro de vulnerável.
Apesar da lei, um homem conseguiu apoio judicial para impedir sua filha de 13 anos de fazer um aborto em Goiás. O pai da vítima teria feito um acordo com o estuprador, que era seu amigo, para ele assumir as responsabilidades com a criança. A primeira tentativa de interromper a gestação ocorreu com 18 semanas, mas ela só conseguiu aprovação judicial com 28 semanas de gravidez.
A menina de Goiás conseguiu interromper a gestação decorrente de estupro após liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 25 de agosto passado. Quase duas semanas depois, o mesmo STJ negou habeas corpus para a realização de aborto de feto com síndrome de Edwards (malformação fetal grave). O relator do caso, ministro Messod Azulay Neto, admitiu a alta probabilidade de morte do feto logo após o parto, mas defendeu ainda ser possível que ele sobreviva.
Alguns entendimentos interpretam adecisão do STF (em relação à anencefalia)como um feto natimorto (que morrerá antes de nascer ou durante o parto). “Mas o que a medicina considera incompatível com a vida são os casos que têm mais de 90% de chance de morte em até um ano após o nascimento”, informa a defensora pública Lívia Almeida. Por isso, muitos serviços de saúde não fazem o aborto sem autorização judicial quando a causa para a incompatibilidade com a vida é diferente da anencefalia.
Para Maria José de Oliveira Araújo, da Rede Médica pelo Direito de Decidir no Brasil, as instituições de saúde têm um papel fundamental na redução da judicialização do aborto legal. Não há dúvida sobre a legalidade do aborto quando a gestação é resultado de estupro. Mesmo assim, meninas e mulheres encontram dificuldades para fazer o procedimento.
Há previsão legal para que um profissional de saúde se negue a realizar um aborto por objeção de consciência, mas essa conduta não se aplica a instituições. Portanto, o serviço de aborto legal precisa providenciar solução para fazer o procedimento demandado. “Obrigar a carregar, até o parto normal, um feto que não vai sobreviver, dentro de todas as normas de direitos humanos, pode ser considerado como tortura”, defende Maria José.
*Nome fictício a pedido da fonte.
Colaboraram na produção, apoio e pesquisa desta reportagem: Advogada Renata Jardim e as organizações: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Católicas Pelo Direito de Decidir, Cladem, Cfemea.
Metodologia de pesquisa: A pesquisa foi realizada entre setembro de 2023 a abril de 2024. De caráter exploratório, envolveu o mapeamento inicial: a) da atuação das organizações de juristas religiosos junto ao judiciário, identificando estratégias, temas e argumentos; b) do perfil dos membros da diretoria de duas organizações de juristas religiosos – quem eram e onde atuavam e; c) do perfil decisório de magistrados envolvidos nestas organizações em temas pré-definidos pela pesquisa como gênero na escola, uso de nome social, aborto, entre outros.
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