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Uma comunidade expulsa pelo barro

Por causa de obra do DER-PE, casas de 80 famílias foram invadidas por lama e barro do rio Tejipió

Raíssa Ebrahim / 26/03/2025
A imagem apresenta um portão de metal marrom com detalhes decorativos na parte superior. Pendurada no portão há uma placa branca, fixada com um fio, onde está escrito em letras maiúsculas e azuis: Tô indo embora!. Atrás do portão, pode-se ver uma construção com paredes verdes e uma porta aberta, sugerindo um ambiente vazio ou possivelmente abandonado.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

“Parecia um tsunami”. É assim que José Luiz da Silva, 70 anos, define a tragédia socioambiental causada pelo embarreiramento de um trecho do rio Tejipió no bairro do Curado por conta das obras de alargamento do viaduto e da construção de uma ciclofaixa na BR-232. As quase 80 famílias que moram no local viram as fortes chuvas do último dia 5 fevereiro se transformarem num mar de barro que invadiu as casas. 

A comunidade nunca tinha visto o nível da água atingir 1,5 metro quando chove, nem mesmo na temporada de inverno. A correnteza foi tão forte que alguns moradores que vivem mais próximos ao rio ficaram com medo de serem arrastados pela água.

A imagem mostra um espaço interno, com paredes pintadas de amarelo e uma escada de concreto cinza. O ambiente está visivelmente degradado. O chão está coberto por lama ressecada, com rachaduras. As paredes estão manchadas, mostrando sinais de umidade e deterioração, com partes do reboco descascando. A escada também está em más condições, com desgaste evidente e sujeira.

A marca nas paredes mostra o nível a que a água e o barro chegaram

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Aposentado com deficiência, Seu Luiz é uma das pessoas que vivem há décadas no loteamento Parque São João, na comunidade conhecida popularmente como Goodyear, no Km 14 da BR, divisa entre o Recife e Jaboatão dos Guararapes, perto da linha férrea. 

Sem apoio nem retorno do Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco (DER-PE), responsável pelas obras, que fazem parte do projeto de triplicação da BR-232, muita gente está sendo forçada a deixar suas casas e uma história de vida para trás. 

A imagem mostra um grupo de cerca de 21 pessoas sentadas em cadeiras organizadas em círculo, em uma varanda coberta. As pessoas estão envolvidas em conversas umas com as outras, e algumas seguram copos. O ambiente é acolhedor, com paredes laranja e azulejos decorativos brancos e azuis. No centro do círculo, há uma mesa pequena com alguns objetos sobre ela. Do lado direito, pode-se ver uma janela grande com grades, cercada por plantas

Parte da comunidade Goodyear se reuniu para dar entrevista à Marco Zero

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Como forma de protesto e consequência do desespero, a comunidade espalhou placas nos portões , com frases como “Tô indo embora”, “Mais de 50 anos que moro aqui, o barro tá entupindo o rio. A cheia tá aumentando, vou embora” e “Somos seres humanos, merecemos respeito. Paciência tem limite, se não tirar o barro do rio, a comunidade vai parar a obra. Urgente”.

A imagem mostra uma escavadeira amarela trabalhando em uma estrada de terra, enquanto o fundo apresenta algumas casas, árvores e um céu azul com algumas nuvens. À direita, há uma placa feita à mão com uma mensagem escrita em português. O texto na placa diz: SOMOS SERES HUMANOS: MERECEMOS RESPEITO. PACIÊNCIA TEM LIMITE. SE NÃO TIRAR O BARRO DO RIO, URGENTE A COMUNIDADE VAI PARAR A OBRA. A cena sugere um protesto ou reivindicação de uma comunidade local que exige ações imediatas para resolver problemas relacionados ao acúmulo de barro no rio.

Famílias do Loteamento Parque São João espalham placas com pedidos de ajuda

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Para dar passagem a caminhões e tratores das obras do viaduto e da ciclofaixa, o curso do rio Tejipió, já assoreado, foi interrompido por uma barreira temporária. As manilhas colocadas dentro d’água, relatam os moradores, não foram suficientes para dar conta da vazão fluvial, sobretudo com as chuvas. Resultado: sem ter para onde escoar, quando a precipitação chegou forte o rio mudou seu curso e invadiu as moradias arrastando muito barro.

“Sempre tivemos cheia aqui, mas era uma cheia que dava para aguentar. Mas, depois dessa obra aí, a cheia foi maior. Nunca deram duas cheias no verão. E foi uma cheia grande, parecia um tsunami. Deixou a rua cheia de lama, derrubou muro, derrubou portão”, detalha Seu Luiz. “Qualquer chuvinha a água chega aqui nas casas agora. Essa obra criou um banco de areia dentro do rio”, denuncia José Luiz da Silva.

Claro, Inácio! A foto mostra um grupo de pessoas reunidas em uma área de construção sob uma ponte. Há pilares de concreto ainda em construção e, ao redor, o terreno está coberto com entulho e materiais relacionados à obra. Próximo, há uma área de água que reflete o céu e a vegetação, e ao fundo aparecem árvores e construções menores cercadas por uma vegetação densa.

Parte da comunidade observa o estreitamento do rio Tejipió após a retirada da barreira

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

A comunidade relata que a última vez que esse trecho do Tejipió passou por limpeza foi na gestão do prefeito João Paulo (PT). Hoje deputado estadual, ele é coordenador da Frente Parlamentar do Rio Tejipió, instalada na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) no ano passado. Com 20 quilômetros de extensão, o rio nasce no município de São Lourenço da Mata e seu curso corta os municípios do Recife e de Jaboatão.

“Agora temos medo também da chuva do verão”

“Colocaram manilhas de boca pequena para sustentar um rio. Não sustenta”, diz Maria Aparecida Lira, 73 anos. A dona de casa conta que agora tem medo também das chuvas do verão. “Nós não somos contra o progresso. Essa obra vai favorecer a nossa comunidade. Só que nós temos que pensar em nós também, porque tem um monte de casa vazia aqui que o pessoal está se mudando sem condições de pagar aluguel”, expõe. 

A imagem mostra uma mulher de meia idade de pé em frente a uma casa com grades. Ela está vestindo um vestido com um padrão geométrico formado por triângulos nas cores preto, branco e verde. O prédio ao fundo tem uma fachada revestida por azulejos claros e possui grades metálicas nas janelas e portas. A pessoa está sobre uma calçada elevada, e a luz do sol projeta uma sombra no chão. À esquerda, há uma construção com um toldo listrado em vermelho e branco. A foto foi tirada durante o dia, em um ambiente iluminado pelo sol.

A aposentada Aparecida mostra o batente alto que já não basta para conter a água

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Parte da família de dona Aparecida está indo embora do Parque São João. Vendeu um carro e comprou uma casa em outro lugar. A neta dela de 21 anos é cadeirante e não tem mais condições de conviver com a situação. “Como ela vai ficar aqui? Como é que eu vou tirar uma menina que pesa quase 70 quilos quando estiver tudo cheio d’água?”, questiona, apelando por ajuda e fiscalização.

A nora de Aparecida, Fábia Adriana de Azevedo, 38 anos, relata que, quando a água começa a subir, ela precisa pedir ajuda para colocar a filha na casa de algum vizinho que seja mais alta. “Quando eu vejo que a água está passando da roda da cadeira de rodas, tenho que pedir ajuda de algum vizinho para colocar ela em alguma casa em cima”, conta. “Nessa cheia que teve agora, eu cheguei ao ponto que nem tinha dado comida para ela. Não que eu não tenha como comprar, mas eu não tive como dar. Um vizinho foi quem me cedeu o almoço”, detalha a mãe. 

A imagem mostra uma mulher de pele morena e cabelos escuros, usando uma blusa rosa de alças finas. Ela tem uma expressão séria e parece estar olhando diretamente para a câmera. O fundo apresenta uma parede com azulejos decorativos em tons de azul e branco, e há algumas plantas ao redor. A cena transmite um clima quente e simples, possivelmente em um ambiente doméstico ou informal.

Dona de um mercadinho Fábia está indo embora com a família e a filha cadeirante

Fábia é dona de um mercadinho na comunidade: “Toda chuva quando começa agora, eu sou obrigada a colocar as coisas lá em cima para não perder os produtos. É uma perda muito grande a gente sair do nosso estabelecimento, de uma casa própria, para procurar outra coisa”, lamenta. 

“Tivemos aquela cheia três anos atrás, quando todo mundo que está aqui perdeu tudo. E foi muito difícil para todos nós comprar as coisas novamente. Teve pessoas que nem conseguiram. E agora, novamente. Nessa chuva de fevereiro, perdi, por exemplo, guarda-roupa e escrivaninha”, relembra Fábia, falando também do medo de contaminação com a água que invade as residências e alaga as ruas.

DER não se posiciona

A imagem mostra uma construção em andamento em um terreno aberto. Há estruturas de madeira que servem como suportes temporários durante a obra. No topo de uma dessas estruturas, uma pessoa está trabalhando, vestindo roupas de segurança, incluindo um capacete laranja. O chão é de terra com pedras espalhadas e, ao fundo, há algumas casas e postes de eletricidade com fios conectados. O céu está azul, com algumas nuvens brancas, criando um contraste com o ambiente de trabalho.

Parte da obra da BR 232 na entrada da Comunidade Goodyear

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

A Marco Zero fez diversos contatos com o DER por meio da sua assessoria de imprensa, desde a última segunda-feira, 17 de março, porém não obteve qualquer posicionamento do órgão estadual, seja em forma de entrevista ou nota oficial. O espaço segue aberto. 

O trecho de triplicação da BR-232 vai do viaduto sobre a BR-101 até a BR-408, com extensão de 6,8 quilômetro e investimento de R$ 157 milhões. As obras deveriam ter sido concluídas neste mês de março.

A reportagem também procurou as prefeituras do Recife e de Jaboatão para saber de ações de limpeza e manutenção do rio Tejipió na área da Comunidade Goodyear. A primeira não se posicionou alegando que o trecho pertence em sua totalidade ao município vizinho. Já a gestão de Jaboatão informou que irá fazer uma limpeza no entorno ainda nesta semana.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com