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“Construção de sentido é comunicação”. Tendo a certeza dessa máxima, e a fim de fortalecer os estudos sobre a comunicação como um direito humano fundamental, a comunicadora e pesquisadora Midiã Noelle lançou o seu livro de estreia Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares, publicado pela Editora Planeta.
Na obra, a jornalista baiana convida os leitores a refletir sobre o poder da comunicação na construção, desconstrução e reconstrução de um imaginário social que durante séculos desumanizou os corpos negros colocando-os em um lugar de vulnerabilidade constante. Com base em sua experiência pessoal e profissional, Midiã Noelle traz um olhar sensível sobre os processos comunicacionais e defende a importância da comunicação antirracista no cotidiano da população e em todos os âmbitos, não apenas no jornalismo, na publicidade ou redes sociais.
A comunicadora é fundadora do Instituto Commbne, organização que fomenta a comunicação e a justiça racial com atuação em diversas áreas e especializada em temas como negritude, direitos humanos e justiça de gênero. Midiã também foi uma das responsáveis pela redação e implementação do Plano Nacional de Comunicação pela Igualdade Racial na Administração Pública Federal, contratada pela Unesco.
Em conversa com a Marco Zero, Midiã Noelle defendeu as estratégias antirracistas para promover uma sociedade mais justa e inclusiva.
Marco Zero – Tendo a comunicação antirracista como mote principal, o seu livro propõe uma comunicação para todas as pessoas e não apenas para pessoas negras. Como você enxerga o papel de todos os agentes da sociedade ao indicar estratégias para promover essa comunicação antirracista?
Midiã Noelle – Quando eu construí esse livro foi na lógica de que toda e qualquer pessoa tem que ter no seu ato de comunicar a obrigação do enfrentamento ao racismo. Independente dessa pessoa ser negra ou não negra, toda e qualquer pessoa deve falar contra o racismo. E é a comunicação, a construção da linguagem, a construção do sentido, a percepção mesmo da construção da comunicação no dia a dia que possibilita às pessoas o enfrentamento às iniquidades ou o reforço delas.
Então, a gente reconhece que toda e qualquer pessoa pode e deve participar da construção da comunicação antirracista. É isso que a própria Djamila Ribeiro reforça com o conceito de “lugar de fala”, um conceito que muitas vezes é utilizado de forma equivocada por pessoas que querem se isentar na participação de um debate sobre determinado tema, quando na verdade todo mundo tem, sim, seu lugar de fala nos debates.
O meu livro, que possui como título Comunicação Antirracista, um guia para todas as pessoas em todos os lugares, tem um recorte específico para que uma pessoa que é adolescente, estudante de ensino médio, em qualquer idade, consiga entender o que está escrito, justamente por ser um livro construído de uma forma dialogada. A obra vai sendo construída de uma forma cadenciada, que vem do legado familiar, passando por uma perspectiva histórica, política, e também do dia a dia, da nossa atuação enquanto ser humano, entendendo a comunicação como direito humano fundamental. Então, se a comunicação é direito humano fundamental, a gente tem que usar esse direito para promover outros direitos também, para enfrentar violências e desigualdades.
Se a comunicação é direito humano fundamental, a gente tem que usar esse direito para promover outros direitos também, para enfrentar violências e desigualdades.
O livro traz um olhar cuidadoso do cotidiano da população negra e acredito que isso vem muito do seu lugar de comunicadora negra que passou por experiências diversas ao longo da vida pessoal e profissional. Como isso é explorado no livro?
O livro tem um recorte racial muito focado na perspectiva da população afro-brasileira, mas que traz também uma lógica da diáspora negra, da afro-diáspora, entendendo as consequências do processo de escravização de pessoas negras e trazendo esse olhar para outros países também. Eu sei que as realidades do Brasil se assemelham muito com o que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, dentro dessa lógica de países de diáspora. Então, são situações que também impactam a vida de pessoas em todo o mundo.
Por isso, qualquer pessoa que ler esse livro vai conseguir também entender a importância de significar a humanidade no olhar da população global mesmo. A importância da gente reconstruir esse olhar, reconsiderando a população negra de fato humana, já que a gente, há pouco tempo atrás, quase 140 anos apenas, éramos tidos como objetos, coisas, e o imaginário construído ao longo de quase 400 anos do processo de escravização no mundo foi muito violento, e nos tirou do lugar do que é ser humano mesmo, das pessoas nos enxergarem como o sujeito de direito. Por isso, nós precisamos resgatar essa humanidade porque somos pessoas com nome, sobrenome, história, memória e sentido. Então, é um livro que eu quero que toque as pessoas, sabe?
É um livro que eu escrevo de uma forma para que todo mundo se identifique. Por isso que eu começo falando do meu pai e da minha família no livro, porque eu sou uma mulher hoje candomblecista, mas que eu venho de uma origem evangélica e eu quero que as pessoas se conectem e entendam que é possível praticar, ter práticas antirracistas no âmbito da comunicação em tudo que é feito. Meu pai tinha isso comigo sem saber. Minha família tinha isso comigo sem saber, porque nós éramos uma família negra do bairro da Liberdade, em Salvador, que é um dos territórios mais pretos que existem no mundo, com quase a toda sua totalidade composta por pessoas negras.
Salvador é o lugar mais preto, de fato, fora do continente africano. Então, eu coloco o Brasil nesse lugar, no contexto da afrodiáspora. E meus pais estavam me educando ali, naquele contexto. Quando eu via meu pai editar o filme, quando eu via meu pai tirar foto, quando eu via meus tios também serem fotógrafos, quando eu via meu tio que trabalhava com tecnologia também, tudo aquilo é construção de sentido, e construção de sentido é comunicação.
Comunicação é estratégia, na verdade. Ela não é ferramenta, ela é estratégia e ela é o que, de fato, transforma o tempo.
As pessoas precisam tirar a comunicação desse lugar ferramental, de card, de texto, do noticioso, e entender que a comunicação é estratégia, na verdade. Ela não é ferramenta, ela é estratégia e ela é o que, de fato, transforma o tempo. Comunicação é o próprio tempo. Então, é a partir da comunicação que a gente consegue impactar as pessoas. Algumas pessoas dizem que esse livro é uma arma de enfrentamento ao racismo. Eu odeio isso, porque eu não gosto de armas, mas se for para ser armamentista, para defender direitos, eu, como uma boa filha de Ogum, estou pronta para a batalha.
Por que é importante pensarmos a comunicação antirracista não apenas voltada aos profissionais da área, mas também para toda a sociedade? De que forma isso pode contribuir para a construção de um imaginário coletivo pautado no antirracismo?
Eu costumo dizer que toda pessoa comunica. Nem todas as pessoas são profissionais de comunicação, mas toda pessoa comunica. Apesar de ser jornalista, diplomada e tudo mais, eu defendo também a comunicação que não é diplomada. Eu não posso me colocar em um lugar de superioridade a uma pessoa que é de uma comunicação periférica, de um território, de uma comunicação popular, que participa de uma mídia negra, de um espaço midiático, e que não tem um diploma na mão, mas que está ali também na construção do processo de sentido nessa guerra de narrativa para dar respeito ao seu espaço, ao seu território. Isso inclui também os influenciadores.
Claro que a gente precisa ter uma série de marcos, regulamentos, acompanhamento e um olhar enquanto política pública para todo mundo que está exercendo algum tipo de trabalho no âmbito da comunicação, mas entendendo também que não se deve censurar as pessoas. Quando eu falo na lógica de política pública é de combate à desinformação, de assegurar direitos aos defensores de direitos humanos no âmbito da comunicação, porque a gente sabe que pessoas defensoras de direitos humanos na comunicação sofrem muito em seus territórios, morrem também, são vítimas da violência fatal no dia a dia.
Entendo a comunicação como educação, porque a gente precisa entender os nossos direitos, quais são os marcos, quais são as nossas referências e quem veio antes da gente. Então, o processo do estudo em comunicação para mim é fundamental para as pessoas também saberem um pouco da memória e da história. Por exemplo, a gente tinha o Nego Bispo. O Nego Bispo, um homem quilombola, era um grande comunicador, ele era um escritor, um pensador, e quando ele falava em cosmovisão, ele falava sobre o além, sobre aquilo que não está palpável e tangível aos nossos olhos. E isso também é muito importante entender quando eu falo de comunicação, porque para mim comunicação é orixá, é exu e é o tempo. Por isso, a gente tem que despertar também aquelas pessoas que não são diplomadas, mas que estão fazendo uma transformação muito grande através da comunicação. Apesar de defender a importância do diploma, eu também defendo as pessoas que não têm diploma no reconhecimento da atuação do seu trabalho. Porém, isso requer cuidados.
Os influenciadores são extremamente fundamentais, mas também tem a necessidade desses influenciadores entenderem os espaços que eles ocupam. E, se eles ocupam esses espaços e trabalham de graça para esses espaços que são as plataformas digitais, também tem que fazer uma cobrança dessas big techs que estão aí cada vez mais atuando contra a diversidade. Então a gente precisa também trazer esse olhar para os influenciadores. Entender quem são essas pessoas, entender o que é o produto que eles constroem. E claro, todo mundo tem o direito de produzir o que for e o que quiser, mas se for no tom de violência, de desinformação, de cultura do ódio, aí de fato não pode ser permitido.
Como você avalia o tratamento dado pela administração pública à comunicação antirracista, tanto no atual governo quanto ao longo da história do Brasil? Na sua opinião, o que ainda falta para que essa pauta ganhe mais força?
Eu acho que a gente precisa ainda qualificar um outro olhar para a comunicação, que é o olhar da comunicação como direito. A gente sabe que nos últimos anos tivemos que lidar com a ausência de Conselhos, o não impulsionamento da realização de novos Conselhos de Comunicação, porque as pessoas não conseguem compreender que a comunicação é política, elas colocam a comunicação num lugar ainda muito do tarefeiro.
A gente não pode pensar, por exemplo, em educação midiática sem pensar em letramento digital e letramento racial. É uma triangulação, não tem como. Se a gente for falar que a educação midiática é importante e, para mim, falar em educação midiática é falar em comunicação como um todo, a gente tem que falar que a educação midiática só vai ser de fato efetiva quando chegar nas escolas.
No que diz respeito a educação midiática, por exemplo, é necessário trazer uma política atrelada a discussão da perspectiva racial e fortalecer a implementação da lei 10.639, que é a lei da Escola da Cultura Afro-Brasileira e é muito importante, mas existe há mais de 20 anos e não foi devidamente implementada, e a partir da implementação dessa lei a gente pode pensar na comunicação antirracista, na construção desse imaginário antirracista dentro das escolas.
Por isso, é fundamental pensar a comunicação em outro lugar, é pensar no campo da tecnologia também, a gente sabendo que as plataformas digitais, as big techs, elas se disfarçam de empresas de tecnologia sendo empresas de comunicação, na verdade.
Na sua visão, de que forma a comunicação antirracista deve ser construída no Brasil? O que você considera fundamental para que ela aconteça de maneira efetiva?
Quando eu falo de comunicação na lógica antirracista, eu falo de uma lógica antirracista que seja antiproibicionista, antipunitivista e anticapacitista, porque a lógica do discurso das guerras às drogas, ela segue sendo muito forte no Brasil e naturalizando a violência contra pessoas negras, e não é a guerra às drogas, é a guerra contra as pessoas negras, atrelado a um histórico que vem do processo de desumanização dos nossos corpos. Então, se a gente não olha para a comunicação de uma maneira estratégica em todos os âmbitos do governo, não adianta, de fato.
E não só para o governo, fora dos espaços de governo também. O nosso movimento negro precisa respeitar e reconhecer a comunicação negra feita nesse país, não apenas como espaço noticioso, mas também como um grupo que faz política. As pessoas que trabalham no espaço de comunicação, elas não estão ali só para fazer o dia a dia, elas estão ali para pensar politicamente como fortalecer a pauta do enfrentamento ao racismo, do reconhecimento da dignidade humana das pessoas negras e da promoção de direitos na vida dessas pessoas. Então, a comunicação é revolução. E se a gente não tiver uma comunicação que entenda as questões raciais no Brasil e no mundo, a gente vai acabar reforçando as violências.
Durante muito tempo eu trabalhei com a população em situação de rua e assim eu entendi o tanto que o racismo pode ser cruel. E a rua, para mim, também é a construção de afeto, é a construção de respeito. A gente tem que pedir licença para ocupar a rua, porque tem coisas negativas, mas também coisas muito positivas do âmbito do cuidado. A rua é comunicação, é movimento. Mas as pessoas que vivem em situação de rua são invisibilizadas e violentadas constantemente. Então, quando falo do reconhecimento da humanidade do outro, eu estou falando desse tipo de pessoa, dessa população específica. Se a Simone de Beauvoir fala que a mulher é o outro do outro, e a Grada Kilomba fala que a mulher negra é o outro do outro do outro, eu diria que pessoas nesses cenários, nessa triangulação, que vivem em contextos de extrema vulnerabilidade, seja por conta do contexto da guerra às drogas, seja por conta do contexto capacitista, são o outro do outro do outro do outro.
O nosso movimento negro precisa respeitar e reconhecer a comunicação negra feita nesse país.
É um lugar ainda não visto e que a gente precisa olhar, entender e evidenciar. Portanto, a comunicação antirracista ela precisa ser antipunitivista, antiproibicionista e anticapacitista para que a gente possa entender que o buraco é mais embaixo. E a população negra também precisa fazer uma autoreflexão sobre como ela pauta a comunicação, não só no movimento negro e no movimento feminista negro no Brasil, mas em todos os países da diáspora negra, sobretudo, aqueles que foram impactados pelo tráfico transatlântico durante a escravização.
Como você acredita que pessoas negras e não negras podem contribuir, a partir de suas próprias realidades e lugares de fala, para a construção de uma sociedade antirracista?
Essa coisa de nos colocar no lugar do outro, eu acho que isso é muito importante. Por exemplo, uma amiga branca recentemente falou pra mim que queria fazer algo sobre questões sociais, pesquisar pessoas negras e tal. Aí eu perguntei para ela “por que você não estuda você mesma, pessoa branca? Porque você também não se coloca nesse lugar de entender porque é uma necessidade de um estudo sobre o outro?”
Há uma lógica de normalidade, de normatização de que ser branco é o normal, e o ser negro é que tem que ser investigado, pesquisado. Nessa lógica do pacto narcisístico da branquitude, os brancos se colocam no lugar de superioridade.
Quando a gente se pauta, a gente se pauta também no entendimento de que algumas dores só a gente vai conseguir compreender na lógica do que a gente sente, então ninguém melhor do que a gente para falar e expor. Isso não invalida que outras pessoas falem, muito pelo contrário, todo mundo pode pesquisar e falar sobre qualquer tema e aí, por exemplo, essa coisa do identitarismo para mim ela é muito fraca porque a vida ela se intersecciona por mais que a gente não queira.
Então, pessoas brancas podem ser pessoas brancas que são LGBTs e essas interseções vão trazer para elas discursos que vão ser feitos a partir das suas realidades. Por isso não existe a possibilidade de um identitarismo real, é uma lógica que não faz sentido, porque o mundo é interseccional, ele acontece no âmbito da diversidade. Pessoas brancas não são simplesmente pessoas brancas, sempre vai ter uma pessoa branca que tem uma origem latina, estrangeira, sempre vai ter uma mulher, e por mais que seja uma mulher, pode não atender a uma lógica heteronormativa. Então assim, as pautas se misturam.
Por isso eu acho que a gente precisa entender que a comunicação é fundamental para desconstruir, construir e reconstruir sentidos, porque tudo é muito mutável no dia a dia e as pessoas têm suas dinâmicas culturais, territoriais e etc. Mas a gente não pode perder o nosso direcionamento que é o da produção de direitos às pessoas, a garantia da declaração universal dos Direitos Humanos para todas as pessoas em todos os lugares, então, eu tento construir uma contranarrativa a partir daquilo que tem sentido, e convido os leitores do meu livro a fazer o mesmo.
Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.