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Fios elétricos da Neoenergia mataram 162 araras azuis ameaçadas de extinção na Bahia

Jeniffer Oliveira / 19/07/2025
A imagem mostra três araras-azuis-de-Lear pousadas em uma estrutura de poste de energia elétrica. Duas delas estão lado a lado, empoleiradas em uma viga horizontal de metal, enquanto a terceira está no ar, com as asas abertas em pleno voo, prestes a pousar no mesmo local. As araras têm penas de coloração azul intensa e bicos curvos, típicos da espécie. O cenário é composto por isoladores e cabos elétricos, que sugerem risco de choque elétrico. O fundo está desfocado e branco, dando destaque às aves e à estrutura metálica.

Crédito: Cortesia/Leandro Rios

As imagens compartilhadas no Instagram de organizações protetoras de animais silvestres causam um certo choque a quem vê de primeira. Pássaros e animais arborícolas, aqueles que vivem principalmente em árvores, estariam morrendo na rede elétrica de diferentes regiões da Bahia. Nos últimos seis anos, 162 araras-azuis-de-lear, espécie ameaçada de extinção nativa da caatinga baiana, morreram ao se chocar com os fios de alta tensão e transformadores em torno da Reserva de Canudos, habitat natural dessa ave.

Segundo o último censo (2022), a população existente é de quase 2.300 animais, assim, foram eletrocutadas mais de 7% de toda a população dessa espécie. O projeto Jardins da Arara de Lear atua na conservação da base alimentar desses animais desde 2014 e tem monitorado essas mortes. De 2019 até 2025, o ano com maior número de mortes foi 2022, somando 46 casos fatais.

O infográfico apresenta o número de mortes de araras-azuis-de-Lear com suspeita de eletroplessão, distribuído por ano, de 2019 a 2025. O título está em letras brancas sobre um fundo azul no topo da imagem. À direita do título, há um símbolo circular que lembra um ninho de arara estilizado. Logo abaixo, há um gráfico de barras verticais na cor laranja, com fundo cinza claro. O eixo horizontal representa os anos (de 2019 a 2025), e o eixo vertical representa a quantidade de mortes, com marcações numéricas. Os dados apresentados são: 2019: 10 mortes;  2020: 13 mortes; 2021: 18 mortes; 2022: 46 mortes (o maior número); 2023: 28 mortes; 2024: 22 mortes; e 2025: 25 mortes. A fonte das informações está indicada na parte inferior direita do infográfico: Fonte: Projeto Jardins da Arara de Lear.

Foram os próprios ornintólogos e zoólogos do projeto que encontraram a solução técnica para evitar a mortandade das araras: isolar os transformadores e aumentar a distância entre um cabo e outro, evitando que as aves encostem em dois fios simultaneamente. Os profissionais também indicaram as áreas que seriam consideradas prioritárias, ou seja, por onde a alteração deveria começar a ser feita.

Em 2022, a Neoenergia/Coelba começou a fazer a modificação da rede elétrica a partir de uma recomendação do Ministério Público da Bahia (MPBA). O efeito foi imediato: o número de mortes caiu das 46 registradas em 2022, para 28 em 2023. No entanto, a empresa modificou apenas os ramais indicados como prioritários, deixando os cabos elétricos das regiões vizinhas sem a devida proteção, o que não foi o bastante para cessar as mortes por eletroplessão.

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Eletroplessão é o termo usado por peritos e legistas para definir a morte provocada por descarga elétrica acidental

Ave símbolo da caatinga

A espécie foi registrada cientificamente em 1978 pelo ornitólogo alemão Helmut Sick, mas essa descoberta só teria sido possível a partir dos estudos do ornitólogo brasileiro Olivério Mário de Oliveira Pinto, considerado o pai da ornitologia no Brasil. À época, havia menos de 100 dessas araras vivendo na natureza.

A descoberta do seu habitat natural foi na região da Toca Velha, onde hoje existe a Estação Biológica de Canudos, administrada pela Fundação Biodiversitas, focada na preservação desses animais e na manutenção dos espaços para que eles possam dormir e se reproduzir. As araras também podem ser encontradas na APA Serra Branca, no município de Jeremoabo, a 48 quilômetros da estação. A arara-azul-de-lear se tornou um dos animais simbólicos da caatinga.

Segundo Marlene Reis, ambientalista e presidenta do Projeto Jardins de Arara de Lear, a reprodução dela é lenta e acontece uma vez por ano. Cada ninhada pode chegar a três ovos, mas apenas um filhote costuma sobreviver. “Cada indivíduo que a gente perde é uma preocupação para a conservação desse bicho. Porque existem várias ameaças, não só ameaça pela energia elétrica, mas também tem predador, tem tráfico de animais silvestres, que infelizmente ainda existe”, lamenta Reis.

A imagem mostra uma arara-azul-de-Lear morta, deitada de lado sobre o chão de terra seca. A ave tem penas azul-escuras, com uma mancha amarela ao redor do olho e na base do bico curvo, que está entreaberto. Uma das asas está parcialmente estendida, e o corpo está imóvel, com sinais visíveis de rigidez. O solo ao redor é avermelhado, com pequenas pedras e galhos secos. A cena transmite tristeza e alerta, sugerindo que a morte da ave possa estar relacionada a causas como eletroplessão ou outras ameaças ambientais.

Arara encontrada morta na estação biológica em 9 de julho

Crédito: Cortesia/Projeto Araras de Lear

Mamíferos ameaçados por desmatamento

Por causa da rede elétrica da Coelba, animais estão sob risco de uma ponta a outra da Bahia. Em Mata de São João, município da região metropolitana de Salvador, localizado a 400 quilômetros de Canudos, as vítimas são diferentes: mamíferos silvestres arborícolas como preguiças-de-coleira, macacos, cuícas, além de espécies como o tamanduá-mirim têm morrido nas redes elétricas da Coelba. Nesses casos, a maior parte das mortes acontecem nos transformadores.

Neste território há o maior corredor de Mata Atlântica do norte da Bahia, formado pela Reserva Sapiranga, Floresta do Aruá, Reserva Camurugipe e porções de vegetação nativa dentro de fazendas.

De acordo com a bióloga e coordenadora do Projeto Conecta Vidas, Luciana Veríssimo, só nos últimos dois anos, ao menos 20 preguiças-de-coleira morreram na rede elétrica da Reserva do Aruá. “A preguiça é um animal 100% arborícola, só vive nas árvores. Ela desce uma vez na semana pra poder fazer o cocô dela, mas fora isso, ela só vive nas árvores, se alimenta de folhas e ela precisa das árvores para poder se locomover ao longo da floresta”, explica Veríssimo que trabalha na região há 20 anos.

O aumento de mortes em um curto espaço de tempo estaria ligado ao crescimento da construção de empreendimentos imobiliários na reserva após a pandemia. O litoral de Mata do São João, onde está localizada a famosa Praia do Forte, foi impactado pela especulação imobiliária, o que tem provocado desmatamento e migração desses animais para outros locais.

“Essas pessoas começaram a vir para cá e começou o boom imobiliário com bastante supressão de vegetação e isso faz com que os animais saiam das suas áreas em busca de refúgio. Foi aí que a gente começou a observar registros de preguiças eletrocutadas”, afirma. “Eu trabalhei 10 anos no projeto Tamar da Praia do Forte. Em 10 anos, acionaram a gente apenas duas vezes para fazer o resgate de preguiças. Pós-pandemia pra cá, isso acontece agora a toda hora, todo dia tem registro, tem ocorrência de preguiça atravessando a rua, preguiça na cerca, preguiça dentro da casa, preguiça andando em fio de energia”, completa.

O projeto Conecta Vidas foi criado em uma parceria do Aruá Observação Vida Silvestre e o Laboratório de Ecologia Aplicada da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), a partir da demanda de atuar na proteção de preguiças-de-coleira e outros animais silvestres potenciais vítimas de eletroplessão.

“A gente tem esses roteiros de observação de preguiças e as pessoas acabavam nos informando onde havia preguiça andando no fio de energia ou já morta, pendurada num fio de energia. Então a gente decidiu criar o projeto para tentar minimizar esses impactos. Foram instalados pontos de travessia de fauna em áreas onde a gente sabia que os animais atravessavam, mas a floresta tinha perdido a conexão”, afirma Luciana.

Na região que abriga o maior número de preguiças-de-coleira do Brasil, pesquisadores e ambientalistas contam com a ajuda dos moradores nativos do território. Com o grupo Ciência Cidadã, 14 comunidades dentro e ao redor da floresta repassam as informações de avistagens e ocorrências de preguiça. “Isso tá sendo muito importante, porque a gente está fazendo com que as próprias comunidades adotem a causa da preguiça como sua. Então, eles nos avisam de tudo, a gente tá conseguindo mapear as áreas de ocorrência e ver onde estão as ameaças”, relata Veríssimo.

A imagem mostra um bicho-preguiça morto, pendurado em uma estrutura de poste de energia elétrica. O animal está entre fios e componentes metálicos da rede elétrica, preso por um dos braços e com o corpo flácido, indicando que sofreu uma descarga elétrica fatal. A estrutura é composta por cabos grossos, isoladores e suportes metálicos. O céu ao fundo está claro, sugerindo que a foto foi tirada ao entardecer ou amanhecer.

Preguiças morrem ao usar os postes a Coelba para passar de um trecho de mata para outro

Crédito: Cortesia/Projeto Conecta Vidas

A lentidão do poder público

Tanto o Projeto Jardins de Araras de Lear quanto o Projeto Conecta Vidas vêm dialogando com a Neonergia/Coelba e com os órgãos públicos para tentar diminuir as mortes, mas isso têm surtido pouco efeito. Em Canudos, a Neoenergia iniciou, de fato a modificação da rede elétrica nos locais prioritários indicados pela organização. E só. “Naquela região de concentração ela [Neonergia/Coelba] não alterou todas as redes. Não morreu arara na que alterou, mas morreu nessa outra aqui, que era pra ter sido feita também”, relata Marlene Reis, do Araras de Lear.

Em Mata de São João, onde a maioria dos fios são encapados, o problema ocorre nos transformadores em que os animais ficam presos e acabam morrendo. Segundo Luciana Veríssimo, do Conecta Vidas a empresa de energia chegou a colocar protetores nos transformadores para testes, mas as mortes continuam acontecendo. “Já estamos há um ano e meio, em inúmeras tratativas, fizemos muitos relatórios que eles solicitavam ou que o promotor solicitava para tentar chegar numa maneira de minimizar os impactos, mas até agora nada aconteceu”, reforça.

O que diz a Neonergia/Coelba

Em nota, Neoenergia/Coelba afirma que nos últimos três anos investiu mais de R$ 40 milhões em projetos de conservação e prevenção de acidentes para animais silvestres, especialmente na região do Raso da Catarina, na Bahia. “Foram implementados mais de 4.700 postes com um novo padrão que oferece maior segurança para as aves. Além disso, o projeto ainda conta com o apoio de ONGs e inclui ações de educação ambiental, agroecologia, monitoramento da espécie e produção de mudas nativas, essenciais para a alimentação da avifauna”.

A concessionária ainda reforça que “a expansão imobiliária e o crescimento urbano desordenado impactaram o comportamento dos animais no litoral de Mata de São João, que precisaram se deslocar para outros ambientes visando a subsistência. Durante esse deslocamento, os animais podem acidentalmente acessar a rede elétrica, e para protegê-los, a Neoenergia Coelba tem implementado diversas ações, como a proteção do sistema elétrico na Reserva do Aruá, prevenindo choques em caso de contato dos animais com a rede”.

O Ministério Público da Bahia (MPBA), em relação ao que ocorre na Mata de São João, informou que “adotou uma série de diligências, no intuito de reunir dados a orientar a atuação da instituição e o processo de negociação, a exemplo da expedição de ofícios requisitando informações e documentos ao Conselho Gestor da APA Litoral-Norte, à Neoenergia/Coelba, ao Cetas-Ibama, Cetas-Inema e ao Laboratório de Medicina Veterinária da UFBA. O diálogo entre os atores interessados tem sido contínuo e progressivo, inclusive com a participação de representantes da sociedade civil, por meio do Projeto Conecta-Vidas, com atuação na região, e de pesquisadores do Laboratório de Ecologia Aplicada à Conservação da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)”.

“Para barrar as mortes, o MPBA tem exigido da Neoenergia/Coelba a proteção integral dos transformadores e estruturas da rede elétrica e a apresentação de um plano de adequação da rede de eletricidade local. A proposta de TAC está em fase de negociação”, completa a nota.

Sobre Canudos, o MPBA afirma que “vem diligenciado junto à empresa para promover a adequação da rede de transmissão e a adoção de medidas preventivas, a fim de evitar morte de animais. Foram realizadas diversas reuniões, estando prevista uma nova rodada de negociações, com vistas à formalização de um TAC, que está em fase de ajustes pelas partes. A proposta tem como foco a realização de melhorias na rede elétrica da Coelba, visando sua adequação ao padrão tecnológico Avifauna, no intuito de prevenir novas ocorrências de mortes por eletroplessão das aves”.

A imagem é uma montagem com duas fotografias lado a lado, ambas mostrando postes de energia elétrica em áreas abertas. A Foto da esquerda: mostra um poste de concreto com estrutura metálica e um transformador verde fixado em sua base. Há diversos fios e isoladores elétricos, mas não há animais visíveis. O céu ao fundo está nublado, em tom claro e uniforme. A **Foto da direita **mostra outro poste, mais distante e em um ângulo mais aberto. Este poste está cheio de araras-azuis-de-Lear, que se empoleiram na parte superior e nos fios que o cercam. Ao todo, há cerca de 12 aves distribuídas pelo poste e pelos cabos. O céu está azul claro e, no canto inferior direito, há parte da copa de uma árvore.

Com as modificações, araras se penduram nos fios sem correr riscos

Crédito: Cortesia/Projeto Jardins da Arara de Lear

A nota continua dizendo que: “foram ouvidas diversas entidades não governamentais, que emitiram pareceres técnicos, bem como a equipe técnica da própria Coelba, que sugeriram alternativas para a solução do problema. Atualmente, as tratativas estão concentradas na formalização do TAC, que estabelecerá as diretrizes para a prevenção de novos óbitos de animais silvestres em decorrência de eletroplessão. O Ministério Público reafirma seu compromisso com a proteção da vida silvestre e a defesa do meio ambiente, buscando soluções eficazes para o problema”.

O Instituto do Meio Ambiente também se posicionou dizendo que “tem participado de articulações institucionais com o Ministério Público da Bahia (MPBA) e com a empresa concessionária de energia (Coelba), no intuito de buscar soluções conjuntas que minimizem os riscos. Técnicos do Inema também têm participado de discussões no âmbito de grupos de trabalho e projetos voltados à conservação das espécies, acompanhando dados de campo e sinalizando a necessidade de medidas corretivas em trechos críticos da rede elétrica, como adequações tecnológicas que visem isolar as partes eletrificadas das redes e assim reduzir os riscos de eletroplessão dos animais silvestres”.

AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.