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O mais novo relatório sobre conflitos socioambientais e violações de direitos em comunidades tradicionais pesqueiras revela uma realidade alarmante: uma persistente ofensiva do capital sobre os territórios, agravada pela violência e pela omissão do Estado, ao mesmo tempo em que homens e mulheres das águas sentem os efeitos das mudanças climáticas. O documento, do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), teve seu lançamento regional nesta quinta-feira, 31 de julho, no Recife.
Pernambuco é um dos estados que exemplifica a intensidade e diversidade desses conflitos, com quatro novos relatos de comunidades pesqueiras e uma atualização de conflito. A situação na região é especialmente crítica devido à expansão de grandes empreendimentos e à especulação imobiliária.
O “3º Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil – 2024” denuncia as violações enfrentadas por 450 comunidades pesqueiras em 16 estados do Brasil. O Maranhão lidera o número de conflitos relatados, seguido pela Bahia e, em terceiro lugar, o Pará. Quase todas as comunidades (97,3%) foram unânimes em dizer que percebem os efeitos das mudanças climáticas em seus territórios.
Os dados apontam que a pesca artesanal está sendo profundamente impactada por forças externas que ameaçam sua existência. A especulação imobiliária lidera os conflitos, afetando 71,4% dos casos, enquanto 77,6% das comunidades relatam queda na quantidade de pescado, comprometendo sua subsistência.
Além disso, 97,3% já sentem os efeitos das mudanças climáticas e 79,6% denunciam a ruptura de seus laços comunitários. Empresas privadas, agentes econômicos e o próprio poder público são apontados como os principais responsáveis por essas violações.
Outro dado importante apresentado no relatório é que a maioria das comunidades (53,1%) não tem nenhum processo de regularização fundiária iniciado.
Ameaças como o processo de privatização das praias com a PEC 03/2022 e de avanço de empreendimentos nos rios e mares como a recente proposta de exploração de petróleo na foz do Amazonas e de implantação de usinas eólicas no Mar (offshore), são alguns dos exemplos da intensificação dos conflitos que ameaçam a prática da pesca artesanal, além da permanência dos pescadores artesanais nos seus territórios.
Como novidade nessa edição, a publicação também faz levantamento da percepção dos impactos das mudanças climáticas entre os pescadores e pescadoras artesanais, que foram algumas das principais vítimas dos desastres extremos causados pelo clima, nos últimos anos. Enchentes no Rio Grande do Sul entre os anos de 2023 e 2024 e as secas que aconteceram na Amazônia, também nesse período, causaram impactos que levaram à morte de espécies de peixes, impactos na saúde, devido à falta de acesso a água limpa, além dos impactos socioeconômicos.
A seca e as enchentes são os casos mais emblemáticos, mas não são os únicos. Entre os dados levantados, aparecem a percepção do aumento da temperatura e de diminuição das espécies como algumas das consequências das mudanças climáticas. A expectativa é que os dados ajudem nos debates que ocorrerão na COP 30, em novembro, na cidade de Belém (PA), o que motivou também a escolha da capital paraense para o lançamento da publicação.
Protesto em defesa da Ilha de Mercês, em Suape, no ano de 2024. Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Praia de Mangue Seco, Igarassu
Esta comunidade de 200 famílias, onde as mulheres marisqueiras são a maioria, sofre com a especulação imobiliária e a privatização de áreas, o que compromete o acesso à praia e dificulta suas atividades econômicas.
Empresas privadas, como o Hotel e Marina Galvão, e a Prefeitura Municipal de Igarassu são apontadas como principais agentes causadores dos problemas. A comunidade é um exemplo da divisão sexual do trabalho, onde as mulheres são responsáveis pelo beneficiamento e comercialização do pescado e pela reprodução da pesca artesanal como modo de vida.
Maracaípe, Ipojuca
A comunidade, predominantemente de pescadores e jangadeiros, enfrenta sérios problemas com a família Fragoso, que reivindica a posse de 70% das terras, incluindo o manguezal, erguendo cercas e muros que restringem o acesso das pescadoras às áreas de pesca e aos manguezais.
O avanço do turismo de massa e da indústria hoteleira intensifica a privatização e a discriminação, resultando em racismo ambiental e agravando vulnerabilidades socioeconômicas e ambientais. O derramamento de petróleo de 2019 é citado como um desastre com impactos devastadores na saúde física e mental, segurança alimentar e crise no mercado pesqueiro, cujos efeitos ainda são sentidos.
Vila Velha, Itamaracá
Com cerca de 150 famílias, a comunidade vive conflitos relacionados à especulação imobiliária e à privatização de territórios, especialmente na área da trilha ecológica. Agentes privados e latifundiários, como os herdeiros do Dr. Acidino, são os responsáveis por essas restrições e pela negligência na garantia de direitos.
Itapissuma
Esta comunidade de 400 famílias, com 50 mulheres pescadoras, enfrenta restrições de acesso ao manguezal adjacente a um complexo prisional desde 2021. A direção da Penitenciária Agroindustrial São João alegou que pescadoras estariam transportando armas e drogas, impondo um cadastro para acesso, uma medida que o relatório denuncia como racismo ambiental e misoginia, afetando a economia local e estigmatizando as comunidades.
A reativação de atividades de aquicultura (carcinicultura) pelas unidades prisionais também agrava a privatização de áreas essenciais para a pesca.
Suape, Cabo de Santo Agostinho
A comunidade lida com uma série complexa de conflitos decorrentes da implantação e manutenção do Complexo Portuário e Industrial Governador Eraldo Gueiros (Porto de Suape), que incluem dragagens, empreendimentos turísticos (como o Vila Galé EcoResort do Cabo), esgoto industrial e urbano, especulação imobiliária, ferrovias e restrições de acesso impostas pela segurança terceirizada.
Uma nova e grave ameaça é a proposta de implantação de um terminal de minério de ferro na Ilha de Cocaia pela Bemisa – Brasil Exploração Mineral S/A, uma área de extrema relevância ambiental e social para cerca de 300 famílias pescadoras que dependem dela para subsistência. As comunidades se articulam para exigir consultas prévias, livres e informadas, e a exclusão da Ilha de Cocaia do polígono do Porto de Suape para seu uso sustentável tradicional.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com