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“É mito a mulher árabe não ter autonomia”, diz curadora sobre cinema feminino

Maria Carolina Santos / 14/08/2025

Foto: Sudao, lembre de nós/Divulgação

Até o próximo domingo (17), o Recife recebe uma programação extensa de filmes feitos por realizadoras árabes dentro da 5ª edição da Mostra de Cinema Árabe Feminino. A grande maioria das sessões acontece no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) do Derby, com sessão de encerramento no cimema São Luiz, na Boa Vista. É uma oportunidade única de conhecer uma variedade de formatos e temáticas do mundo árabe. A programação completa pode ser conferida aqui e todas as sessões são gratuitas.

Logo após o filme de abertura da mostra, o road movie Rainhas, a pesquisadora e jornalista Carol Almeida, que assina a curadoria ao lado de Alia Ayman e Analu Bambirra, conversou com a Marco Zero sobre a escolha dos filmes para a mostra, os preconceitos sobre o Oriente Médio e o papel das mulheres no cinema árabe. Confira abaixo.

Como é o trabalho de curadoria da mostra? Porque se pensa que no mundo árabe as mulheres cineastas são muito poucas. Como realmente é esse cenário?
A existência dessa mostra é justamente para quebrar com todos esses mitos que a gente tem sobre o mundo árabe. E quando eu falo mitos sobre o mundo árabe, eu estou falando muito sobre esse mito de que a mulher no mundo árabe não tem autonomia. É o contrário. Em muitos lugares do mundo árabe, a presença da mulher, particularmente na criação, na literatura, no cinema e na música é central na produção artística.

E no cinema, por exemplo, no cinema palestino ou no cinema libanês, muito do que há de vanguarda na linguagem artística hoje é feito por mulheres. Elas estão na ponta das provocações e experiências estéticas radicais. E a curadoria de uma mostra como essa, que existe desde 2019, é um desafio justamente porque são muitos, muitos filmes para a gente selecionar o que exibir durante uma semana. É um exercício imenso e a gente tem que abdicar de muita coisa que gostamos, inclusive.

Uma das curadoras da mostra, Carol Almeida destaca a experimentação das cienastas árabes. Foto: MCS/MZ

E tem uma diversidade também de formatos, não é? Tem ficção, tem curta-metragem, tem longa-metragem, tem documentário…
Sim, tem filmes experimentais. E eu acho muito legal porque essas cineastas árabes trabalham com a radicalidade da linguagem. A diretora que convidamos neste ano para dar uma masterclass é uma diretora libanesa chamada Rania Stephan, que tem um exercício de montagem a partir de imagens de arquivos que é muito radical. Um exemplo é o longa-metragem dela que estamos trazendo para a mostra, que se chama Os três desaparecimentos de Soad Hosni (2011). Soad Honsi era uma atriz egípcia famosíssima, a atriz mais famosa do Egito durante muito tempo. E a diretora, a partir das imagens de arquivo da própria Soad Hosni, nas centenas de filmes que ela fez no Egito, recria a vida dessa mulher com as imagens dos filmes em que ela estava. É uma história inclusive trágica, Soad Hosni morreu de uma maneira trágica. E Rania Stephan recria isso a partir das imagens que já estavam nos filmes em que a atriz estava. Então, são gestos muito radicais. Nesta edição, a mostra tem filmes de ficção, muitos documentários, mas temos filmes experimentais também. É uma diversidade muito grande de experiências estéticas no cinema feminino árabe.

A mostra traz também a obra de cineastas palestinas, em um momento em que ocorre um genocídio da população de Gaza. De onde essas cineastas trabalham? Como é o trabalho delas?
Há muitas diretoras palestinas hoje no mundo. Uma pequena parte dessas diretoras estão hoje na Cisjordânia. Mas é uma pequena parte, porque a maior parte das diretoras palestinas e, obviamente, das diretoras mais radicais, vivem no que a gente chama de diáspora. Vivem em outros lugares do mundo, muitas na Europa, outras nos Estados Unidos. E elas tentam conseguir financiamentos desses outros lugares para conseguir criar cultura, criar linguagem e criar arquivos da Palestina, mesmo fora da Palestina. Então, boa parte das realizadoras que estão trabalhando hoje com essas imagens vivem fora da Palestina e não têm o direito ao retorno. Assim como o povo palestino não tem o direito ao retorno à sua própria terra. O cinema é uma forma delas estarem na Palestina também. Uma forma delas reivindicarem a terra a partir das imagens cinematográficas. Então, temos, sim, algumas diretoras que ainda estão na Cisjordânia e que estão documentando diariamente o que está acontecendo lá, mas uma boa parte dessas realizadoras hoje vive fora do território palestino.

E já existem produções para o cinema que falem do genocídio que está acontecendo desde outubro de 2023 na Palestina?
O último filme que vamos exibir na sessão de encerramento, no cinema São Luiz, é um filme feito em Gaza, pós-outubro de 2023, com imagens de Gaza. É um filme, inclusive, de imagens fortíssimas. Um filme sobre um médico que passou 43 dias dentro de Gaza, tentando, da forma possível, ajudar as centenas e centenas de crianças que chegavam para ele, um cirurgião. E há no filme imagens muito fortes de Gaza pós-outubro de 2023. Então, a gente tem, sim, imagens já feitas dentro do genocídio. Estamos começando a receber as primeiras imagens, as primeiras narrativas que foram filmadas já dentro do contexto do genocídio.

A mostra também tem um filme sobre o Sudão, que também vive massacres violentos.
A situação no Sudão é gravíssima, e mundo não fala sobre isso. O Sudão é completamente esquecido da narrativa. O filme que a gente está trazendo, Sudão, lembre de nós, inclusive é de uma diretora que não é sudanesa. Ela é uma diretora tunisiana, do norte da África. E ela vai para o Sudão e começa a filmar justamente um momento de manifestações de jovens sudaneses. Boa parte desses manifestantes, eu diria que é grande centralidade, é de mulheres jovens sudanesas, que estão nas ruas, lutando pelo fim do regime ditatorial e militar. O que a gente vê hoje no Sudão é muito resultado do que acontece depois dessas manifestações que estão no filme, uma resposta muito cruel e violenta a essas pessoas e a esses jovens manifestantes. as diretoras árabes também circulam em outros territórios.

Vocês recebem filmes de países que são mais fechados para as mulheres, como a Arábia Saudita?
No mundo árabe há várias culturas diferentes. Tem o Norte da África, tem a região do Levante, como chamamos ali a Palestina, Líbano, Síria. Até o próprio idoma árabe que é falado é diferente. No Golfo Pérsico, tem a Arábia Saudita, o Qatar, os Emirados Árabes… que são países que são aliados do poder colonial, aliados dos Estados Unidos e, muitas vezes, aliados de Israel. Esses lugares são os mais complicados, inclusive de expressão. Às vezes chegam filmes interessantes, sim, que furam as bolhas, mas são lugares extremamente complicados, porque são lugares que, acima de tudo, são aliados de um projeto de poder colonial.

Lugares onde também as mulheres são mais reprimidas.
Exato. E ainda assim elas conseguem fazer filmes. A gente recebe filmes interessantes da Arábia Saudita. Só que os outros filmes (de outros países) conseguem trazer mais questões para a gente. A gente já trouxe alguns filmes da Arábia Saudita. Inclusive, é interessantíssimo porque esses países têm o dinheiro. Por exemplo, muito dos financiamentos dos filmes que a gente vê aqui na mostra são da Arábia Saudita, às vezes dos Emirados Árabes. Então, tem umas brechas dentro dessa complexidade. Você consegue tirar dinheiro do poder colonial que está dentro do mundo árabe, porque há brechas para financiamento de cinema. É complexo, não é tão simples. E acho que uma das grandes funções da mostra é justamente quebrar esse mito de que as mulheres árabes vivem num contexto de repressão. Quem vive numa sociedade patriarcal e violenta também somos nós. Temos alguns filmes de diretoras questionando suas famílias em relação a práticas internas, familiares que, talvez, a gente não tivesse essa liberdade terapêutica que elas têm. É um outro tipo de relação familiar. Essa mostra ajuda a descolonizar o nosso olhar em relação ao mundo árabe, porque nós somos muito preconceituosos. Fomos ensinados dentro de uma monocultura visual orientalista — como o pensador palestino Edward Said conceituou –, que é, obviamente, muito racista, que é islamofóbica. Acho que é muito importante a gente começar a ver filmes dessas mulheres realizadoras para quebrar esses preconceitos.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org