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Para milhões de brasileiros diagnosticados com doença celíaca, cada refeição é um desafio. Em um país onde o pão francês é quase patrimônio cultural e o trigo está presente em boa parte dos alimentos industrializados, manter uma dieta 100% livre de glúten exige vigilância constante, acesso a informações confiáveis e, muitas vezes, um orçamento mais alto.
Entre rótulos confusos, contaminação cruzada e a escassez de opções seguras fora de casa, os celíacos enfrentam não apenas uma condição médica, mas um cotidiano repleto de obstáculos invisíveis. Estima-se que aproximadamente 1% da população mundial tenha a doença, aqui no Brasil, segundo a Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (Fenacelbra), o número gira em torno de 2 milhões de pessoas.Já um estudo publicado pela revista científica Gut, citado em uma reportagem do G1, aponta que uma em cada dez pessoas que não possui doença celíaca ou alergia ao trigo apresenta alguma sensibilidade ao glúten ou ao trigo.
De acordo com o Ministério da Saúde, a doença celíaca é causada pela intolerância permanente ao glúten, principal fração protéica presente no trigo, no centeio, na cevada e na aveia, e se expressa por inflamação das células intestinais em indivíduos geneticamente predispostos
Em Pernambuco, um grupo de aproximadamente 300 pessoas se une para pensar em estratégias para fomentar as discussões sobre saúde, segurança e inclusão da comunidade celíaca. O Coletivo de Celíacos de Pernambuco (Cocelpe), atua oficialmente desde 2021, composto por uma parcela da população pernambucana que possui a doença.

Ana Isabel Machado, começou a investigar a doença celíaca em 2014, quando recebeu o diagnóstico de sensibilidade ao glúten não celíaco, que é uma variação da doença celíaca. No entanto, o diagnóstico da doença só veio em 2019. Desde então, começou a atuar pela causa se tornando chef de cozinha especializada no assunto e, posteriormente, sendo uma das fundadoras do Cocelpe. Ela contou os desafios enfrentados para que os celíacos tenham acesso a um direito humano fundamental que é se alimentar.
“O mundo inteiro gira ao redor do glúten. Então, a gente tem glúten no produto de limpeza e higiene, em produtos de beleza e maquiagem, nas medicações. E temos uma lacuna que, inclusive, a Anvisa atendeu parcialmente quando ela obrigou a indústria farmacêutica a informar se aquele produto farmacêutico tem contato com o glúten, porque não vem dizendo em nenhum lugar na bula, diferente do alimento”, explica.
Os celíacos também precisam tomar cuidado com a contaminação cruzada. O ideal é que utensílios, panelas, bancadas e até o lugar de armazenamento de alimentos sejam separados dos que possuem contato com o glúten. Para evitar esse tipo de contaminação, é aconselhável uma tripla lavagem que consiste, como o próprio nome sugere, em três lavagens com diferentes substâncias químicas e esponjas para garantir que a limpeza ocorra de maneira eficaz.
Além disso, há também fatores sociais e financeiros que atingem os celíacos e suas famílias. Uma pessoa que divide casa com pessoas não celíacas, por exemplo, pode enfrentar dificuldades para realizar o tratamento caso ocorra contaminação cruzada. Ou até mesmo comprometer a socialização, pois um simples beijo na boca pode causar uma contaminação direta. Em consequência, a doença também afeta no valor da cesta básica, pois é necessário evitar alimentos industrializados e consumir apenas alimentos especializados.
“Uma dieta sem glúten, se for para uma família que não consome muitos industrializados sem glúten, custa, em média, de 35% a 40% a mais no ticket médio. Para uma cesta básica, que, teoricamente, está em torno de 700 reais, é uma família que vai gastar pelo menos 1.100. Também existe a necessidade de suplementação de vitaminas que a gente não absorve, então, os celíacos gastam muito com suplementação, e alguns é para o resto da vida, porque não tem uma absorção satisfatória”, relata Machado.
Em Pernambuco, 300 pessoas discutem diariamente estratégias de alimentação segura
Crédito: cortesia/Cocelpe
A arquiteta Catarina Tavares, de 48 anos, teve uma vida marcada por problemas de saúde até chegar ao diagnóstico da doença celíaca, aos 45 anos. Foi toda uma vida com diferentes alergias graves, problemas respiratórios, dores no corpo, problemas na visão, na tireóide. Isso só para citar alguns dos sintomas.
Mas foi a partir do resultado de um exame de ferritina, durante o acompanhamento online com uma nutróloga que Catarina recebeu o diagnóstico definitivo. Após sentir cansaço extremo e fazer tratamento para a ferritina muito baixa, Catarina teve pouca evolução e foi assim que a profissional levantou três suspeitas: doença de Crohn, doença celíaca ou câncer. Com os exames e o acompanhamento com uma outra profissional gastroenterologista foi comprovada a doença celíaca.
“O glúten vai acabando tudo que é do celíaco. E o glúten está em todos os lugares. Ele fica, inclusive, suspenso por 48 horas. Então, é uma padaria que hoje em dia não posso entrar, numa pizzaria, eu não posso ir no aniversário de pizzaria, eu não vou. Até porque eu me contamino pelas vias respiratórias. Então, é uma vida bem diferente da vida da maioria das pessoas”, relata Catarina.
Ela também fala da dificuldade que é socializar tendo a doença celíaca. ”Aqui em Recife não existe um restaurante, uma lanchonete, uma coisa que a pessoa possa ir”, explica. Segundo ela, na capital só existem opções de comida pronta para este público por encomenda. Pensando também nisso, ela elaborou uma lista de marcas seguras de alimentos para consumir e lugares para ir fora de Recife, que também fica disponibilizada para o grupo do Cocelpe.
Diferente do diagnóstico tardio de Catarina, a pequena Rebeca Monteiro, de sete anos, recebeu o diagnóstico há um ano. A mãe da menina, Andreza Monteiro, contou que os sintomas começaram quando a menina tinha dois anos. Passou por muitas internações ao longo dos anos, até que certa vez ela foi internada e a médica suspeitou de algum problema abdominal.
Moradoras de Barra de Guabiraba, no agreste pernambucano, começaram a fazer vários exames, como ultrassons e até ressonância magnética, mas apenas quando foi encaminhada para o Hospital Barão de Lucena, em Recife, que veio a suspeita e o diagnóstico da doença.
Desde então, lidar com a doença celíaca tem sido um desafio. “Um terror, porque poucas pessoas aceitam, o comércio não está adaptado. Existe muita dificuldade para encontrar as coisas para ela comer. Muita falta também de empatia de muitas pessoas que não entendem, às vezes dizem que é mimimi, que é frescura. É uma dificuldade imensa. Para quem também não tem tantas condições, é muito complicado, porque é tudo caro”, descreve Andreza.
Andreza mudou rotina da família em função da filha
Crédito: Acervo pessoal
A vida da família toda mudou, casada e com duas filhas mais velhas, todos da casa de Andreza passaram por uma adaptação. “Aqui na minha casa foi uma mudança radical, de tudo. Até para os visitantes, quem quiser visitar a minha casa, também tem que se adaptar à dieta por conta dela, porque está em jogo a saúde dela, a vida dela. E para mim é tudo. Essa mudança eu aceitei também, porque já era muito cansativo, mais de quatro anos, eu vendo ela doente, sem resposta nenhuma. E isso foi por uma parte bom, maravilhoso para a gente, porque só de ver ela bem, já é muita coisa”, afirma.
Segundo a médica gastroenterologista do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, Graciana Bandeira, entre todos os desafios que a doença pode proporcionar, o principal deles é o chegar ao diagnóstico. Isso acontece por dois grandes fatores, o primeiro, ocorre porque a doença celíaca é uma doença que não existe esse conceito formal, mas é uma doença que atinge vários sistemas. A médica explica que “se for analisada apenas na forma clássica da doença celíaca, que é o paciente que tem diarreia, distensão abdominal, que perde peso, você não vai conseguir atingir parte dos pacientes, principalmente os pacientes adultos”.
O segundo, é que, nem sempre, os pacientes apresentam as alterações que são esperadas, sendo possível identificá-la apenas a partir de uma biópsia. “O típico da doença celíaca é você ter, na biópsia, atrofia do epitélio intestinal, ou seja, o nosso intestino delgado, é como se fosse um tapete aveludado, aquele tapete bem felpudo. E aí, esse aveludado é por onde são absorvidos nutrientes, eritroides, onde a gente faz a absorção dos alimentos ingeridos, de maneira geral. E na doença celíaca, você tem graus variáveis de atrofia desse epitélio, a mucosa fica careca, e isso a gente vai ver na biópsia”, pontua.
Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo (UNIAESO), mestranda pelo Programa de Pós-graduação e Inovação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/Campus Agreste. Contato: jeniffer@marcozero.org.