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UFPE inicia curso inédito de Medicina exclusivo para assentados da reforma agrária e quilombolas numa parceria com o Pronera
Caruaru (PE) — “Nós temos políticas de saúde importantes e que poderiam andar lado a lado com as da medicina tradicional, essas dos hospitais”. Formada em História e professora, Ana Cláudia Mendes, 35 anos, quilombola de Conceição das Crioulas, agora é uma das 80 pessoas estudantes do curso inédito de Medicina exclusivo para assentados da reforma agrária e quilombolas, numa parceria com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), no Centro Acadêmico do Agreste (CAA), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
De Salgueiro, sertão central de Pernambuco, a 550 quilômetros do Recife, Ana Cláudia quer dar um olhar diferente à saúde. “A gente não vai mais olhar o médico como sendo só ele a pessoa que tem todo o saber. A gente vai poder olhar para ele de igual para igual”, comemorou, durante a solenidade de abertura do curso, na última terça-feira, 2 de dezembro, no campus de Caruaru.
Após ser alvo de fake news e discurso de ódio por parte da extrema direita e de repúdio por algumas associações médicas, como o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) e o Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), a UFPE enfrentou uma batalha judicial que durou quase três meses e atrasou o cronograma do edital.
As atividades começaram esta semana com a universidade tendo vencido ao menos três ações na Justiça Federal. Política pública consolidada, com quase três décadas de existência e criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, o Pronera já formou quase 200 mil estudantes em 545 cursos em todos os estados brasileiros, da alfabetização à pós-graduação. Mas nunca em curso médico.
Agora alunas como Ana Cláudia vão poder estudar, numa turma extra de Medicina, para atuarem em seus territórios de origem — ou onde mais desejarem —, aliando o conhecimento acadêmico ao das parteiras, da medicina tradicional e das benzedeiras, por exemplo.
Conhecida pela luta e defesa da educação escolar quilombola, Conceição das Crioulas, formada no século XVIII por seis mulheres negras, tem 100% de seus professores oriundos do próprio território, além de currículo e projeto político-pedagógico específicos. Para Ana Cláudia, cursar Medicina pelo Pronera é mais uma vitória dessa construção coletiva.
Ana Cláudia Mendes, 35 anos, do Quilombo Conceição das Crioulas é uma das estudantes
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
“A educação escolar quilombola nos dá base para seguirmos do meio educacional para a área da saúde e também para outras profissões. A gente costuma dizer para nossos jovens — e também seguimos essa política — que nós podemos ocupar todos os lugares e todas as profissões. Nós podemos tudo”, afirma.
“Foi muito tempo de exclusão e de expropriação dos nossos direitos. Então todas as oportunidades que nós conseguirmos, a partir de nossa luta, é necessário que a gente as vivencie. Nós somos o eco do sonho dos nossos ancestrais”, complementa Ana Cláudia, que agora entra na universidade com outros dois quilombolas de Conceição das Crioulas.
“Nós temos uma responsabilidade muito grande que é vir para a academia, para esse ambiente, sobretudo esse de Medicina, que costuma ser um curso elitizado, de pessoas brancas. Por isso também a gente enfrentou esse embate todo, com denúncias contra o curso e paralisação do processo seletivo. E que bom que conseguimos seguir e hoje estamos fazendo a aula inaugural”, comemora.
Os 80 estudantes do novo e inédito curso de Medicina foram recebidos em solenidade na UFPE
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Ana Cláudia vai estudar com pessoas de vários estados do país, entre eles Paraíba, Rio Grande do Norte, Bahia, Sergipe, Ceará, Acre, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul. Cada aluno contará com suporte financeiro para alojamento, alimentação e transporte durante o curso.
Mais de mil candidatos se inscreveram no processo seletivo, que teve cerca de 600 inscrições homologadas. Aproximadamente 400 estudantes foram a Caruaru realizar a prova de redação, que somou-se ao histórico escolar, conforme previa o edital. Muitas, por não conseguirem arcar com o deslocamento, não realizaram a prova. Dos 80 aprovados, 59 são mulheres.
Quem também está vendo o sonho virar realidade são as jovens Maria Eduarda Nogueira, 18 anos, do assentamento do MST Virgulino Ferreira, em Serra Talhada, sertão pernambucano (foto que abre esta repostagem), e Amanda Paulino, 19 anos, do Movimento Atingidos por Barragens (MAB), de Jaguaribara, interior do Ceará. Militantes, filhas dos movimentos sociais, elas vivem uma mesma realidade: a falta de médicos e de transporte para acessar os serviços de saúde distantes de onde moram.
“A gente tem um posto de saúde, só que ele fica muito distante e é de difícil acesso por conta da locomoção. Só conseguimos médico uma vez no mês. Deveria haver ali a assistência todos os dias”, detalha Maria Eduarda, que também pretende atuar como médica na própria comunidade e em outros locais no meio rural.
A realidade de Amanda não é muito diferente. “Lá em Jaguaribara, no Vale do Jaguaribe, como em tantas outras cidades nos interiores, faltam médicos e não chegam recursos, muitas vezes são sucateados. Falta essa assistência humanizada que reconhece o paciente e não apenas o trata com uma forma hospitalar, medicamentosa”, relata.
Amanda Paulino, 19 anos, de Jaguaribara (CE), é militante do Movimento dos Atingidos por Barragens
Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero“Meu sentimento hoje aqui é de um pouco de orgulho também por ter conseguido e ter vencido todas essas etapas, inclusive os processos judiciais. Acho que o sentimento é também de tranquilidade porque eu sei que, de agora para frente, a gente vai conseguir vencer qualquer outra coisa que vier. Porque a gente já conseguiu botar o pé na universidade e, daqui, a gente só sai formados”, diz Maria Eduarda.
Para Amanda, se formar em medicina é “sobretudo uma forma de resistência e uma forma de construir a revolução, uma revolução construída por todos e todas”, porque, para ela, “também cabem, nesses espaços, termos médicos na construção desse projeto de sociedade que nós queremos e pelo qual tanto lutamos para ter”.
O evento de abertura contou com a presença do reitor da universidade, Alfredo Gomes, do vice-reitor, Moacyr Araújo, de representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Ministério da Educação, de movimentos e organizações sociais, da Prefeitura de Caruaru e da deputada estadual Rosa Amorim (PT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outros nomes.
Emocionado, Gomes aproveitou a solenidade para anunciar que a instituição já está dando andamento a outros dois cursos na área de saúde pelo Pronera: Enfermagem e Odontologia. Num discurso com muitos agradecimentos, ele reiterou: “vai ter Medicina do Pronera na UFPE, sim”. No decorrer das ações judiciais, Gomes havia declarado que iria até as últimas instâncias em defesa do curso. As críticas e fake news da extrema direita foram quase todas direcionadas a pessoa dele.
Reitor da UFPE, Alfredo Gomes, recebeu os novos alunos no Centro Acadêmico do Agreste
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroEm seu discurso, Rosa Amorim declarou: “àqueles que disseram que filho de agricultor e de empregada doméstica e gente pobre nesse Brasil não deveria nunca ocupar uma cadeira da universidade, nós estamos aqui para dizer que vamos ocupar esse lugar porque ele nos pertence e a gente vai contar uma nova história”.
A Marco Zero também conversou com a médica de família e comunidade Andreia Campigotto. Filha de assentados da reforma agrária no Rio Grande do Sul, ela é professora do curso de Medicina da UFPE, docente da turma do Pronera e mestra em Saúde Pública pela Fiocruz-PE. Andreia será docente da turma do Pronera.
Marco Zero – Qual a sua trajetória desde o assentamento até se tornar professora do curso de Medicina?
Andreia – Eu nasci e cresci em um assentamento da reforma agrária. Meus pais são assentados da reforma agrária desde o ano de 1983. Eles foram assentados meses antes do MST ser fundado, alguns meses depois, o meu pai estava no encontro onde foi fundado o MST. Então eu venho de uma geração do campo que cresceu sabendo que a terra dá sustento, mas a educação é que liberta. No assentamento onde eu nasci, onde meus pais conquistaram a terra, no início não foi nada simples.
Acessei a escola do ensino fundamental no meu assentamento e depois tive que me deslocar para outras comunidades para poder continuar os estudos porque não existia transporte na época que pudesse transportar essas crianças para a escola. O assentamento era cerca de 14, 15 km de distância da cidade. Então acho que é toda uma geração que, na verdade, insistiu que estudar realmente é um ato de resistência e que realmente é uma herança coletiva deixada. A minha trajetória até a universidade nunca foi individual. Ela foi uma construção com muitas mãos. Desde o vizinho que ajudava a cuidar da filha até a professora que sempre acreditou em mim, até o assentamento todo que celebrava cada passo, cada vitória.
Assentada da reforma agrária no RS, Andreia é professora de Medicina da UFPE há 11 anos
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroEntão cheguei na medicina carregada do cheiro da terra e de muitas vozes dizendo que realmente era essa a possibilidade do povo do campo acessar o ensino superior. Hoje, como professora universitária há 11 anos, para mim, realmente é uma reafirmação do compromisso político e afetivo de que realmente a educação é transformadora e realmente eu não estou aqui sozinha.
Eu estou aqui com aqueles que me empurraram para frente quando o mundo parecia distante demais e ser professora hoje é devolver ao povo o que o povo me deu. É transformar a universidade num espaço em que a filha de assentados não apenas entra, mas agora ela ensina, ela pesquisa, ela decide e ela sonha. Então a minha trajetória é pessoal, sim, mas eu acredito que, acima de tudo, ela é profundamente coletiva.
Qual a importância do curso de Medicina pelo Pronera?
Sobre a primeira turma de Medicina do Pronera, para mim, na prática, é ver o Estado brasileiro finalmente reconhecendo que o campo não produz só alimento, mas também produz ciência, produz cuidado e agora vai produzir profissionais de saúde. É a universidade pública realmente cumprindo seu papel social ao abrir as suas portas para quem historicamente ficou do lado de fora. É uma política pública que está sendo efetivada, neste momento, não em discurso, mas em prática concreta.
E, politicamente, é um gesto de reparação histórica. Formar médicas e médicos vindos do campo significa devolver dignidade a territórios que, por décadas, viveram com ausência de assistência e também com invisibilidade. O que a gente tem que fazer é fortalecer o SUS, desde a sua raiz. É dizer também, com clareza, que o Brasil que queremos só será possível quando a universidade pública realmente conversar com o povo e quando o povo realmente ocupar a universidade. Então acredito que esse momento é um momento histórico para a universidade pública brasileira.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com