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Em 1931, foi criada em Pernambuco a Seção de Ordem Política e Social, que surgiu junto com a Secretaria da Segurança Pública do estado. Em 1934, a Inspetoria de Ordem Política e Social. Um ano depois, a Delegacia de Ordem Política e Social, a famosa DOPS, que só foi extinta em 1990, por decreto do então governador Miguel Arraes. Lançado no final de 2025, o livro online Mulheres e Resistências – caminhos de insubmissão nos arquivos da Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco mergulha nos arquivos dos anos iniciais da DOPS até 1946 com um recorte original: as mulheres que foram fichadas em Pernambuco durante a ditadura do Estado Novo, os anos mais autoritários de Getúlio Vargas no poder.
O livro, de acesso gratuito por meio deste link, foi idealizado pela jornalista e produtora cultural Clarice Hoffmann, responsável também pela sistematização dos dados dos cerca de 400 prontuários analisados, e traz ensaios das sociólogas Anita Pequeno e Sophia Branco. Os prontuários da DOPS estão no Arquivo Público de Pernambuco, no centro do Recife, e foram digitalizados em 2017.
O livro foi lançado em 16 de dezembro com uma mesa de debates no auditório do Arquivo Público, com a participação das autoras e mediação de Maria Betânia Ávila, uma das fundadoras do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Na mesa, ela falou sobre o apagamento da memória e o silenciamento das vozes femininas.
“Esse apagamento é ferramenta histórica de regimes autoritários para manter estruturas de poder, ao excluir as mulheres da narrativa oficial da resistência. Tradicionalmente, a história do Brasil, seja da repressão ou do exílio, é contada a partir de uma perspectiva masculina, enquanto as mulheres foram frequentemente reduzidas a um papel biológico ou natural, o que as situava fora do processo histórico. Esse mecanismo, sustentado pelo patriarcado, pelo capitalismo e pelo racismo, busca negar às mulheres o status de sujeitos sócio-históricos e políticos, consolidando uma dominação que é também de natureza colonial e epistemológica”, disse.
Para Sophia Branco, esse material é uma oportunidade de ter acesso a uma parte da vida política do Recife pouco conhecida, que é a atuação de mulheres comunistas em classes populares. “Mulheres negras, operárias, tecelãs, lavadeiras e de várias outras ocupações que se organizavam em associações, em sindicatos, que se organizavam em partidos. E eram perseguidas porque se organizavam politicamente, porque estavam em reuniões, nas ruas, porque recebiam e distribuíam jornais . Quando se pensa na memória da atuação comunista, que foi muito efervescente na cidade do Recife, se pensa no nome de comunistas homens, e não em mulheres, sobretudo não em mulheres com esse perfil social”, afirmou a socióloga na mesa de lançamento do livro, no Arquivo Público de Pernambuco.
O e-book está disponibilizado gratuitamente através de link no perfil @mulhereseresistencias e @arquivopublicodepernambuco no Instagram. Também está neste link aqui. Todas as imagens do livro são audiodescritas, possibilitando o acesso de pessoas com deficiência visual.
O projeto Mulheres e Resistências foi contemplado no Edital de Ações Criativas LPG e conta com o apoio do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (Apeje) e o incentivo do Governo do Estado de Pernambuco e Ministério da Cultura.
Entre as várias mulheres citadas no livro, estão também figuras históricas como Adalgisa Cavalcanti – a primeira mulher eleita deputada estadual na história da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), em 1947, e que inspirou o projeto Adalgisas, da Marco Zero – e a primeira vereadora do Recife, Júlia Santiago. Ambas eram mulheres negras, comunistas e que tiveram suas rotinas monitoradas pela polícia.
O DOPS-PE possuía centenas de páginas sobre Adalgisa Cavalcanti, revelando que ela foi vigiada pela polícia por décadas, inclusive durante seus mandatos parlamentares. Os delegados da DOPS a descreviam com preconceito, afirmando que ela “relegava a vida doméstica a um plano secundário” em favor do comunismo. “Bem que dona Adalgisa já se aproximando dos seus sessenta anos assaz vividos, poderia estar ao lado do seu marido, cuidando do bom velho, fazendo tricô e ouvindo novela. Mas, qual o que, prefere andar por aí afora, tramando contra tudo e contra todos […] Tem jeito não, para dona Adalgisa.”, diz trecho de um pedido de prisão contra ela.
“Assim como esse, existem outros exemplos desses julgamentos morais sobre a conduta dessas mulheres. É um relato quase cômico, mas é importante que se diga que esse tipo de gesto estava muito mais próximo da perversidade do que da loucura ou da graça”, contextualizou Sophia no evento. “Esse mesmo delegado, Álvaro Gonçalves da Costa Lima, por exemplo, está na lista dos torturadores da ditadura militar que foram denunciados na Comissão Estadual da Verdade”, disse.
A socióloga Anita Pequeno lembrou que o anticomunismo tem uma forte dimensão moral: no discurso oficial da Era Vargas, o comunismo era acusado de destruir famílias e desvirtuar homens e mulheres. Misoginia e anticomunismo caminhavam juntos. “No contexto específico da Era Vargas, a mulher aparece como muito fundamental, quase como o sustento da nação. Mas qual mulher? A mãe de família, a mulher que seria responsável pelo governo do lar. É quase aquela expressão: ‘bela, recatada e do lar’. Então, se esperava que a mulher encarnasse esse ideal público. Que a honra dessa mulher fosse a própria encarnação da moral pública. As mulheres que apresentassem qualquer dissidência – como algumas que foram listadas associadas à prostituição, ou mulheres que perdiam a virgindade muito cedo – eram assunto de polícia. A virgindade das mulheres era assunto de polícia porque a honra delas tinha a ver com a honra pública”, afirmou Anita Pequeno no evento de lançamento do livro.
Apesar das afinidades ideológicas de Vargas com o nazifascismo, em 1942 o Brasil entrou na II Guerra Mundial contra os países do Eixo. Com isso, a repressão política em Pernambuco passou a focar intensamente em mulheres estrangeiras (sobretudo alemãs, italianas e japonesas) sob suspeita de espionagem e nazismo.
Na ficha da alemã Hertha Dorotea Sachser está escrito, que em sua declaração, ela afirmou que “como alemã, consequentemente, é nazista e que tem certeza da vitória da Alemanha. Diz que não praticou nenhum ato de espionagem, mas que considera o espião um bom patriota”.
Mas há uma grande diferença entre o tratamento da polícia com essas mulheres e com o das mulheres brasileiras comunistas da classe operária. “É interessante a dinâmica que se dá aqui em Pernambuco. Essas mulheres, as que eram nazistas de fato, tinham uma ideia de que eram superiores de tal forma que elas diziam isso na cara dos policiais. E a impressão que dá é que os policiais concordavam que elas eram melhores que eles. Os policiais eram muito mais complacentes com elas. Então, essa dinâmica racial também estava apresentada”, disse Anita Pequeno.
No último texto do livro, que se chama Notas Cromáticas, as pesquisadoras se dedicam a escrever sobre como era minuciosa a descrição dos corpos das mulheres que eram fichadas. “Nas mulheres mais pobres, essa parte da cor está sempre preenchida e nas outras nem tanto. Nós vimos que nas mulheres negras, nas mulheres racializadas, a semântica das cores era muito complexa”, disse Anita Pequeno.
“Termos tais como “parda”, “parda clara”, “parda escura”, “morena”, “branca trigueira”, “preta” e “preta fula” aparecem como marcas de uma lógica classificatória ambígua que, longe de neutralizar o racismo, o sofisticava. Historicamente, as gradações de cor, associadas ao acesso desigual à cidadania, pavimentaram o caminho para a formulação posterior do mito da democracia racial e buscavam fragmentar a identidade dessa parcela da população. Como sabemos, apesar dos malabarismos orquestrados pelo Estado para camuflar e perpetuar as hierarquias sociais, e mesmo com o fortalecimento do mito da democracia racial — forjado desde o Império e consolidado como ideologia nacional —, o racismo seguia operando de forma estruturante”, diz trecho do livro.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org