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Poesia como resistência. Mais do que rimas, versos e estrofes, poesia que ocupa ruas declamada por corpos que muitas vezes não possuem o privilégio de ter a rua como um espaço de segurança. Os slams são batalhas de poesia que acontecem em espaços públicos e têm crescido em importância e visibilidade no Recife e reacendem o debate sobre arte e política na cidade. No último dia 16 de junho, a roda de conversa Nós por nós: poesia como resistência, promovida pelo projeto Usina de Valores, reuniu grupos de Pernambuco com a experiência do Slam Laje do Rio de Janeiro, no Parque 13 de Maio, no centro da cidade.
A característica interessante do movimento de slam, no entanto, está no fato de que as experiências de recitais, batalhas e slams nascem e se estabelecem nas comunidades. É nesses locais que um público que muitas vezes não circula no centro do Recife tem oportunidade de, por meio da poesia, da rima e da performance, ter contato com a política, a crítica social e econômica. Acesso a temas como o racismo, o machismo, o preconceito de classe e a discriminação de expressões culturais e religiosas.
O Recital Boca no Trombone, que acontece toda terça-feira no bairro de Água Fria, periferia do Recife, por exemplo, reúne na pracinha ou no campo de futebol do bairro diversos jovens que começam, muitos com 13 ou 14 anos, a performar com palavras e rimas questões que atravessam suas vidas. O Coletivo Controverso Urbano, um dos mais antigos dos que participaram do evento, vem de uma “velha guarda”, quando ainda não estava consolidada a prática do slam e sim de recitais como espaços de partilha de poesias autorais e conexão entre artistas, também tem experimentado a roda e o slam.
Na contramão da ideia de sair das localidades onde moram, têm suas raízes e constroem suas referências de vida, e ir em direção ao centro da cidade, o Slam das Minas ecoa urgências faladas em rodas de debate de movimentos sociais à esquerda: é preciso ir ou retornar às bases.
Depois da vitória de Bell Puã no Campeonato Nacional Slam BR e da participação dela na competição mundial de Slam, na França, o Slam das Minas PE e outras experiências de recital e batalha de poesias têm tomado uma dimensão na vida pública, com repercussão em novos grupos e mais pessoas curiosas chegando para conhecer e participar dos slams. “Poesia existe justamente para a gente colocar para fora as nossas vivências”, conta Amanda Timóteo, uma das fundadoras do Slam das Minas PE.
A necessidade de pensar a descentralização dos slams e alcançar outros públicos nas periferias motivou uma decisão do Slam das Minas PE, que começará a realizar edições itinerantes em cidades da região metropolitana. “Tem aparecido muitos eventos para a gente fazer performances, participações e batalhas, mas em grande parte no Recife. Começamos a pensar nas mulheres de outras cidades e como seria importante ter slam nesses lugares. Até para conhecer outro público, mulheres com outras vivências. É muito interessante para a gente isso”, explica Amanda.
A primeira cidade que receberá o Slam das Minas com a proposta da itinerância é Igarassu, na região metropolitana do Recife. A apenas 26 quilômetros da capital, a chegada à cidade se torna longa e cansativa para quem depende do transporte público. A articulação acontece em parceria com um grupo feminista que vem realizando atividades sobre o tema na cidade.
“Temos companheiras que já frequentam, são de outras cidades e costumam vir até o centro do Recife para sacar o Slam das Minas. A partir disso a gente pensou em Igarassu. E agora estamos pensando em fazer em outras cidades da região metropolitana”, conta Amanda. A próxima cidade deverá ser Jaboatão dos Guararapes, também na RMR.
É o caso do Slam da Praça, outras experiência que já nasceu com a ideia de levar as batalhas para as periferias, em locais inusitados e onde nem se imaginaria haver poesia. Por esse mesmo motivo, onde talvez exista maior urgência de ocupação de praças, viadutos e ruas com arte. A iniciativa já teve duas edições e acontecerá de modo itinerante em Jaboatão dos Guararapes.
[pullquote]“E as notícias são tão tristes
Até quando não passam
Na tela
E são notícias silenciadas
Sentenças que a favela
Leva
Por ser preto
Favelado
Descaso do governo
É ver mais um preto
Perfurado
Até quando
Capitão do mato
Vai quebrar canela preta
Que sobe a ladeira
Cansado
E eles lá quer saber
Se tu veio do trabalho
Ou tava só dando una trago
Igual como playboy
Fuma maconha no carro
Nem é abordado
E o tráfico caro
Criminalidade é um fardo
De quem carrega
Sangue afro na veia
Que quanto mais
Concentrado a cor
Da pele
Mais se pago o preço escravo
É linchado
Pela polícia
Marginalizado
É Brasil brasileiro
Mulato
Escravista
Berço de tantos filhos
Fruto de estupros das índias
E negras assustadas
E mães que choram
A alma dos seus filhos
Assassinados
Vai ter vermelho sangue
mais quanto tempo
Nessas viaturas caras
e nessas ruas escuras vazias
E da barreira de barro
Quantos corpos
vão ser necessários
Correr mortos”
Trecho de poesia recitada
pela poeta Amanda Timóteo[/pullquote]
O racismo persegue jovens periféricos e eles respondem com gritos e rima às violências do dia a dia. Em praça pública, à luz do dia, enquanto chegavam para participar da roda de conversa no Parque 13 de Maio, um grupo de jovens negros foi abordado pela Guarda Municipal ao lado de onde já estavam concentradas diversas pessoas que esperavam pelo início do evento. Uma viatura com quatro guardas e mais três que chegaram depois abordando ostensivamente seis jovens que saíram de casa para ouvir e recitar poesia numa praça pública é a imagem que ficou. No entanto, para muitos presentes a cena faz parte do cotidiano de violências e abusos com os quais convivem, mas não naturalizam.
“Aquilo me lembrou uma cena do filme Besouro. A cena em que o capitão do mato quebra a perna do mestre de capoeira. Eu vi isso, eu presenciei. Isso está super enfiada na nossa cultura e na nossa sociedade. A censura da arte, e o racismo. É tudo sobre o racismo. Mas o slam serve para isso. Poesia é um protesto”, conta Amanda sobre o episódio. No começo, ela relata que não acreditou na abordagem naquela circunstância, mas a surpresa não durou muito. “Isso acontece diariamente, não é uma coisa isolada. Acontece no cotidiano de quase todas as pessoas que estavam no sarau. Então é por isso que a gente faz poesia de resistência, com arte”.
Sendo mulheres e transitando em espaços periféricos, seja no Recife e região metropolitana ou nas favelas do Rio de Janeiro, a relação com a poesia como meio de resistência é evidente. A troca de experiências que aconteceu com a roda de conversa Nós por nós, por exemplo, foi fundamental para conectar e dar ânimo às participantes. Além disso, permitiu conhecer o funcionamento, o modo de organização e mobilização de outro slams.
“O slam tem muito das mulheres se unirem para desabafar sobre as vivências delas enquanto periféricas, lésbicas, negras. O slam canaliza tudo isso e, como acontece na rua, é importante porque é na rua onde a gente circula. O urbano, na nossa favela, em qualquer espaço, seja no centro ou na favela, a gente passa por diversas situações de machismo e racismo”, explica Amanda.
Para ela, conhecer a experiência do Slam da Laje, do Rio de Janeiro, que acontece dentro do Complexo do Alemão, um dos maiores agrupamentos populares daquela cidade, vira uma chave sobre como envolver mais moradores das comunidades e chamar atenção para importância de slams dentro das favelas. “Conhecer (Sabrina) Martina (do Slam da Laje) deu outra dimensão da importância do slam dentro das periferias porque é onde as pessoas mais precisam de arte, pois a arte também educa e influencia positivamente as pessoas”, conta.
“Era para a gente estar falando de poesia, mas vê do que a gente está falando. Não podemos esperar uma tragédia para nos unirmos”, pediu Sabrina Martina, do Slam Laje RJ, que veio ao Recife participar do curso sobre poesia como resistência e também presenciou a abordagem policial aos jovens que caminhavam para a roda de slam.
Para ela, a vivência da população periférica, em grande parte negra, tem que alimentar a produção poética e o posicionamento político das pessoas. “Não me considero de direita, nem de esquerda. Nós fazemos ataques poéticos para falar da nossa vida, do que nos mata”, conta e explica que a luta por uma vida melhor, por meio da arte, é antirracista. Outra urgência é construir meios de proteger a si mesmos, com estratégias de comunicação e segurança compartilhadas entre slams.
“Onde eu moro não chegam essas informações de que a cada 23 minutos um jovem negro é morto. Esse jovem negro é um nome, meu irmão, meu primo, alguém que eu conhecia. Então a gente tem que se cuidar”, conta Martina. Entre as estratégias que já colocam em prática no Rio de Janeiro está o uso de celulares para filmar abordagens policiais, grupos de conversa para avisar quando há policias ou conflitos no caminho para o slam. Desse modo, as pessoas sabem que locais evitar para se manterem em segurança.
Ao longo de 2018, outras experiências têm surgido no interior do estado, como o Slam das Minas Caruaru e o Slam Agreste, os dois no agreste pernambucano, e também o Poetry Slam PE, que acontece em Olinda. Além dessas, as poetas acreditam que devam existir outras iniciativas nascendo mas sobre as quais ainda não se têm notícia.
Tacio Russo, do Coletivo Controverso Urbano, conta que pôde observar a mudança de recitais que tinham objetivo de trocar poesias e, aos poucos, se tornaram núcleos de resistência. “O Controverso começou como uma vanguarda na poesia, apadrinhado pelos poetas marginais do Recife, mas depois foi chegando gente nova fazendo coisas diferentes”, relembra.
“Você vai para o Recital Boca no Trombone, por exemplo, e é meio que um quilombo. A gente não tinha ideia, mas ao mesmo tempo fomos forjando também essas experiências”, explica. O Controverso tem quatro anos de história e agora vem experimentando também as batalhas de slam nos eventos que promove.
Uma das características do grupo é que os recitais sempre acontecem em espaços públicos e sem microfone. O que nasceu de uma limitação de estrutura (nem sempre se tinha acesso a energia ou caixa de som) se tornou uma expressão política. “Além de limitar a performance do poeta, o microfone sempre era um problema. Então percebemos que o ato de gritar sempre foi uma coisa muito particular. A própria voz do poeta alimenta a roda. E você estimula a horizontalidade, o respeito, a importância de se ouvir o outro”, explica Russo.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.