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Crédito: Maryanne Martins/Coletivo Acauã
por Maryane Martins, em parceria com o Coletivo Acauã
Nos fundos de um quintal, em Cachoeirinha, agreste pernambucano, os espaços entre grades da janela permitem mostrar o íntimo do trabalho de uma artesã. Naquele lugar, o cheiro, muito particular a diversos outros quintais e garagens da cidade, confirma o título que foi dado a ela na década de 80: “Cidade da Sela”.
Hoje, os pouco mais de 20 mil habitantes espalhados no território de 179 Km2 de Cachoerinha – a 170 quilômetros do Recife – vivem com uma renda média de um salário mínimo e meio, mas apenas 7% da população tem emprego formal. A maior parte dos cachoeirinhenses vivem do artesanato de couro, de ferro ou da produção de derivados do leite, principalmente queijo coalho.
Entre sola (nome que se dá ao couro bruto), facas amoladas, moldes, tinta, cola e diversos outros materiais, uma mulher domina todos eles. As letras no avental denunciam seu: Rita Neves. Para os íntimos, Ritinha.
Ela tinha dez anos quando começou a trabalhar com o couro e 18 quando fez a primeira sela. De lá até aqui, são 50 anos de profissão e orgulho de ser mulher seleira.
“Eu nasci com os dentes nisso aqui, era minha mãe trabalhando e eu dentro das solas, debaixo da mesa, esperando ela acabar pra me dar um banho”. Entre esperas, Ritinha aprendeu. Foi Maria do Carmo Neves, sua mãe, quem a ensinou. Ritinha conta que antes da mãe não vem à memória nenhuma outra mulher que fizesse sela no sítio Conceição, zona rural de Cachoeirinha. Foi lá que as confecções em artigos de couro surgiram, assim como, posteriormente, em aço. Nos anos 90, a cidade já era conhecida como “A terra do Couro e do Aço”, devido ao grande fabrico, responsável por movimentar a economia local. “Hoje acredita-se que mais de 60% da população sobreviva dessa arte, direta ou indiretamente, e só cresce cada vez mais”, conta Miguel Simões, pesquisador da história do município e autor do livro “Cachoeirinha tem história”.
Muitos artesãos construíram sua renda junto ao crescimento da economia do município. E com Ritinha não foi diferente. “Eu, ainda solteira, morando com meus pais, já tinha carro de boi, cavalo, bicicleta, tudo, com 20 anos”. Assim, ela comprou a primeira casa, o primeiro carro e criou seus quatro filhos. A artesã chegou a fazer de 15 a 18 selas por quinzena, quando tinha patrão. Já teve vários, todos homens. Quando conseguiu a independência, comprou a própria garagem para as confecções e chegou a ter uma oficina só com mulheres trabalhando.
“Antes dessa doença que acabou com o mundo [a covid-19], tinha um armazém com várias mulheres produzindo, todo mundo ajudava a montar a sela”, conta Ritinha. Hoje, trabalha sozinha, em casa, com a ajuda da filha, a única que permaneceu morando com ela. Diz que não tem mais tanta pressa para produzir, não se importa com a quantidade. Além dos bens adquiridos com os anos de trabalho, recebe aposentadoria. O tempo agora, para Ritinha, é outro. Aquela urgência pelo trabalho deu espaço ao amor e a paciência pela sua arte. “ Não me imagino fazendo outra coisa, só paro quando Deus me levar, como foi com minha mãe, que faleceu fazendo sela, com 73 anos. Vou deixar o meu legado pra muita gente.”
Ritinha, que não teve a oportunidade de ser alfabetizada, foi professora de muita gente. Ao longo das cinco décadas de profissão, os dedos não contam mais o número de pessoas a quem ensinou o ofício. Entre elas estão seu ex-marido, filhos, netos, conhecidos e duas mulheres, Helena e Leonilda, das quais a seleira não esquece. Tampouco as duas esquecerão Ritinha.
“Eu não nego pra ninguém, tudo que hoje eu sei, tudo que eu consegui, agradeço primeiramente a Deus, segundo a Ritinha, minha vida começou através dela”, conta Leonilda Gercina da Silva. Ela viveu 18 dos seus 56 anos na zona rural do município de Altinho, onde morava com os pais e seus quatro irmãos. A saída de lá foi devido a uma oportunidade de trabalho na cidade de Cachoeirinha, “o ex-marido de Ritinha é meu primo, na época eles estavam precisando de alguém pra cuidar das meninas deles, meu pai saiu até de casa porque não queria que eu viesse”.
Léo, como é conhecida, diz que apesar da insatisfação do seu pai, foi melhor assim. Lá, onde morava, nunca teve acesso aos estudos. Trabalhar na casa de Ritinha significava, também, ter autonomia.
Há mais de 20 anos, Leonilda descobriu que o couro pode lhe gerar renda. Aprendeu com Ritinha todo o processo de fazer a sela. A fabricação é manual e envolve o molde e o tingimento do couro, a costura, a colagem, vaqueta, gel, a montada, o camurção, botão, fivela de passagem e o uso de diversas ferramentas. Assim como o cuidado, prática fundamental em uma arte que ultrapassa gerações.
Léo, hoje, ensina a uma prima, que a auxilia na produção, “a cada 15 dias eu e minha prima fazemos de 17 a 20 selas, do modelo mais simples, que vão para Sergipe”. Repassar o saber, é também perpetuar a memória, a raiz e a tradição do local. Essa memória coletiva, tão comum aos moradores de Cachoeirinha, traz identificação, renova a ideia de pertencimento e se atualiza a cada nova produção, a cada nova narrativa. E, na narrativa de Leonilda, “as mulheres podem tudo”.
“É enorme a importância das mulheres artesãs aqui em Cachoeirinha, antigamente ficavam muito na dependência dos pais ou maridos, até por falta de trabalho na cidade, agora, muitas são empresárias e independentes”, pontua o autor Miguel Simões. Essa independência chegou muito cedo na vida de Helena Macêdo. Aos 13 anos, aprendeu a costurar com a mãe e a ajudava a fazer roupas. Aos 15, trabalhou em tendas, locais onde ocorre a confecção dos artigos em couro, como ajudante. Ela conta que, numa família de sete irmãos, todos, desde muito novos, contribuíam com a renda da casa.
Antes da adolescência chegar, Helena percebeu que não podia esperar os estudos terminarem para começar a trabalhar. Foi nessa época que conheceu Ritinha. “Um dia conversando com ela, eu disse que queria um emprego pra ganhar dinheiro e trabalhar o tempo todo, e foi assim que comecei a aprender a mexer com o couro. Ritinha é uma pessoa que eu considero muito, sou muito grata pela oportunidade que ela me deu”, a emoção salta aos olhos de Helena quando lembra como tudo começou.
Depois de um tempo trabalhando com Ritinha, Helena foi para a tenda do seu pai. Lá, ela fazia as peças e seu irmão montava as selas. Quando ele sofreu um acidente, a vida cobrou Helena com pressa, mais uma vez, “passei a fazer as selas dele, e assim, comecei a fazer pra mim. Sempre aprendi as coisas na tora”. Essa autonomia trouxe confrontos: os olhos do seu pai se tornaram mais vigilantes e a qualidade do seu trabalho era ainda mais questionada. “Era porque eu era mulher, era a filha dele e ainda morava em casa”, e foi para os fundos do quintal de casa que Helena voltou. Montou sua própria tenda, mas ainda fazia selas para o pai. Porém, sendo a única mulher da produção, sofria muitas cobranças e sua sela tinha um valor inferior, não por merecimento, mas sim por um machismo estrutural, “se os caras trabalhavam pra ele e faziam a sela por 100 reais, a minha só era 50, pela metade do preço.”
Quando cansou da desvalorização, recorreu à tradicional feira do Couro e do Aço. Fazia as selas durante a semana e, na quinta-feira, levava para vender, “era difícil, deixei de ser humilhada pelo meu pai, mas quando chegava lá, cansada depois de trabalhar a noite toda, os caras ficavam questionando o preço, pedindo desconto”. Isso comprova o fato de que quando se é mulher, é preciso provar o tempo todo que você é capaz. Mas o passar dos anos foi generoso com Helena. Hoje, aos 47 anos e há 32 sendo fabricante de sela de vaquejada, diz que seus clientes brigam pelas suas selas. Apesar do ritmo intenso com que este trabalho apareceu na sua vida – já teve turnos de 20 horas por dia – , hoje trabalha com calma.
“Antes era mais rápido e mais barato. Em um dia fazia uma sela, mas atualmente levo de três a quatro”, conta Helena, que hoje não vai mais às feiras vender, recebe encomendas mensais de duas grandes selarias. A tenda não é mais no quintal da sua mãe, mas sim no da própria casa, que conquistou com o trabalho de uma vida. Com o tempo, Helena aprendeu a ter mais paciência, se denomina “uma perfeccionista”. O ofício exige força física, mas em tudo que suas mãos tocam, tem o cuidado. “Acho que sempre vou trabalhar com sela, eu amo, não me vejo fazendo outra coisa”. Em Cachoeirinha, essa não é uma frase incomum, o trabalho com os artigos de couro e aço, é o destino de muitos ali. Uma cidade com milhares de artesãs e artesãos. Gerações que sobrevivem à costura do tempo. Uma tradição que significa, também, possibilidade. E, para Leonilda, Helena e tantos outros, foi Ritinha quem alargou a janela do possível.
Foi por necessidade, que Alyne Maria de Melo buscou oportunidades. “Tenho 33 anos, mas trabalho com couro desde os meus 15 anos. No início, eu ia para umas tendas de algumas amigas minhas e as observava, depois de um tempo, um menino perguntou se eu queria fazer algumas peças e me ensinou.” A tenda onde Alyne trabalha desde 2012, fica em uma garagem. Lá, a produção da sela é dividida. O patrão oferece o espaço, os materiais e lida com o cliente e, cerca de dez pessoas, fazem parte do processo produtivo. É uma confecção “a muitas mãos”.
“Já trabalhei pra mim mesma, mas preferi parar porque tem semana que vende e outras não. Aqui tem um dinheiro certo”, explica Alyne, que quando quer produzir por conta própria, não pode utilizar o espaço da tenda. A mecânica de trabalho lá, é a produção por quantidade. Quanto mais selas feitas, mais todos ganham, já que o valor é fixo por cada unidade. Por esse motivo, o horário de trabalho é flexível, cada um é dono do seu próprio tempo. Ou, pelo menos, parece ser.
“Gosto de trabalhar de madrugada, tem dias que vou até às quatro da manhã. Faço as pestanas, capa, suador, boca, sainha e o que mais precisar”. Alyne, sempre fez o que foi preciso para se sustentar e “não depender de ninguém”, já trabalhou na Paraíba, plantando macaxeira e inhame, também morou em Recife e Maceió. Mas foi para Cachoeirinha que seu coração sempre pediu retorno, “não tem jeito, sempre digo: minha cidade é a melhor”.
Apesar do afeto que nutre pela cidade, Alyne reconhece que falta muito para o desenvolvimento chegar. Ela fala da desigualdade que existe no ramo do couro e do aço, “temos a riqueza mas os comerciantes, os que têm a bala na agulha, deveriam investir mais na divulgação, para quem tá de fora dar mais valor a gente. Precisávamos divulgar mais, porque aqui não é só do couro e do aço, é do queijo, da manteiga e da carne de sol. Os donos sabem que dependem da gente, do nosso trabalho, de quem é mais humilde, e sabem que acabamos aceitando o salário, mesmo que pouco e aí não querem investir. Não só nós poderíamos ganhar melhor, como eles também.”
Falar de trabalho em Cachoeirinha, é falar do couro e do aço. É falar de muitos dos cachoeirenses, inclusive dos que já se foram e deixaram o legado para os filhos e filhas, que estão dando continuidade e entrando para uma terceira e até mesmo quarta geração, que sobrevivem dessa confeccção. É falar de Ritinha, Leonilda, Helena, Alyne, que solidificam a tradição, perpetuam a memória e mostram a tantas outras mulheres que sim, é possível.
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