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A dura vida de quem luta por moradia e precisa cuidar de filhos com deficiência

Jeniffer Oliveira / 21/10/2025
A foto mostra cerca de 20 mulheres reunidas em um salão iluminado, posando em grupo. A maioria veste camisetas azuis e roupas casuais, e uma delas segura uma criança. Ao fundo, há um grande banner branco com frases de protesto em letras coloridas, pedindo respeito e apoio a “mães atípicas” e denunciando bloqueios de benefícios do INSS. As participantes demonstram união e firmeza, com expressões sérias ou discretamente sorridentes. Algumas se apoiam em cadeiras ou nos ombros umas das outras. O ambiente tem piso claro, paredes brancas e luz intensa, sugerindo um encontro ou mobilização social por direitos e assistência.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Se a vida das mães atípicas é desafiadora, as coisas podem se tornar ainda mais complicadas quando é preciso conciliar a luta por moradia com o esforço para garantir o sustento e os cuidados dos filhos com algum tipo de deficiência. Esse é a rotina de um grupo de 48 mulheres da zona oeste do Recife. Junto com dois homens, há anos elas esperam ser beneficiadas por algum programa de habitação popular.

Vindas de diferentes bairros da cidade, boa parte dessas mulheres fizeram parte das ocupações Novo Caçote e Nova Recife, localizadas ao lado do antigo Walmart da avenida Recife, zona sul da cidade. As ocupações começaram em 2018 e, até a reintegração de posse, chegaram a ter 400 pessoas, que acabaram se dispersando com a desocupação. Menos aquelas famílias que, em comum, tinham o fato de ter filhos com deficiências.

Entre essas pessoas, apenas Maria dos Prazeres, de 48 anos, foi contemplada com um apartamento que ainda está em construção no bairro da Iputinga. A dona de casa é militante por moradia há mais de 20 anos e foi uma das líderes das ocupações da avenida Recife. Segundo ela, os sem-teto participaram de outra ocupação na avenida Caxangá, mas passaram menos tempo, pois não conseguiram permanecer no local por conflitos internos.

O caso do grupo de mães atípicas foi levado à Defensoria Pública da União (DPU) e para o Ministério Público de Pernambuco, na tentativa de se enquadrarem nos programas de habitação oferecidos aos ocupantes da Caxangá, mas até agora, sem sucesso.

A DPU informou, por meio de nota, que em 2023, “foi procurada por assistidos que indicaram fazer parte da ocupação, mas que não compunham o processo judicial. Eles foram orientados a reunir a documentação comprobatória para ingressar na ação e aguardar a designação de audiência, na qual serão tratadas eventuais compensações aos ocupantes. A data da audiência ainda não foi definida”.

Hoje, Prazeres se organiza em grupo onde se reúne para discutir sobre direitos básicos. Enquanto sua moradia não sai, ela divide a casa com mais oito pessoas: duas mulheres adultas e seis crianças. Os dois filhos que moram com ela, de 12 e três anos, têm autismo, síndrome rara e TDAH, respectivamente. Pelo menos mais uma das outras seis crianças também é atípica.

A sala da casa em que Prazeres mora estava lotada de mulheres e de seus filhos quando a Marco Zero chegou. É lá que as mulheres se reúnem regularmente para discutir quais passos serão dados em busca da garantia dos direitos dos seus filhos com deficiência e moradia digna.Muitas delas também têm tentado o auxílio aluguel oferecido pela Prefeitura do Recife, mas ainda estão aguardando para saber se serão contempladas ou não.

A foto mostra uma mulher e duas crianças em frente a uma casa simples, com grades de ferro nas portas. A mulher, de expressão firme, veste camiseta azul-clara com um logotipo vermelho em forma de coração estilizado com as letras INCD abaixo. Ela está atrás de um menino em cadeira de rodas, também com a mesma camiseta. Ele está descalço e com uma das pernas apoiada sobre o descanso da cadeira. À direita, uma menina observa a cena de dentro da casa, segurando a grade, igualmente vestida com a camiseta azul. Ao lado da casa há uma bicicleta encostada e uma cesta plástica. O chão é de cimento gasto, e o ambiente sugere um cotidiano modesto, marcado por afeto, cuidado e resistência familiar.

Maria dos Prazeres luta por moradia há mais de duas décadas

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

“A gente participa de muita luta da pessoa com deficiência. É o BPC que está sendo bloqueado, é a escola que não dá acessibilidade, são tantas outras lutas. Porém, tem muita organização para a questão da moradia, que é onde a gente mais sofre. Hoje preciso dividir o meu benefício para o meu filho, para mim, para aluguel e demais coisas para sobreviver”, afirma.

Márcia Cristina, de 40 anos, mora de aluguel com os filhos e o marido, mas em 2018 também foi uma das pessoas que estiveram nas ocupações da avenida Recife. Mãe de dois filhos, não conseguiu se manter na ocupação por muito tempo, pois o filho mais velho de 12 anos usa cadeira de rodas.

“Como é que a gente mãe atípica vai pegar os nossos filhos pra tá numa ocupação para conseguir nossa casa? Então realmente só a gente que passa, a gente sabe que tá passando”, indaga. Ela também relata a dificuldade que essas crianças enfrentam para ter acesso à terapias, procedimentos médicos, acompanhamento e medicamentos.

A foto mostra uma mulher sentada em um quarto simples, de paredes brancas, segurando uma menina pequena no colo. Ao lado delas está um menino em cadeira de rodas, com expressão tranquila e uma toalha amarela sobre o ombro. A mulher veste camiseta azul e calça escura; a menina, um vestido vermelho estampado. O ambiente é iluminado e tem cartazes coloridos nas paredes com mensagens escritas à mão, pedindo inclusão e garantia de direitos para pessoas com deficiência. Há também um varal com roupas e sinais de uso cotidiano nas paredes. A imagem transmite afeto, cuidado e a luta por dignidade e apoio social.

Para Márcia Cristina, levar as crianças para uma ocupação é ainda mais difícil

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Além dessas mães que, muitas vezes, são mães solo, não possuem emprego formal nem rede de apoio e nem condições para arcar com o tratamento dos filhos de forma particular, a realidade se cruza com a de outras que enfrentam a luta por moradia. De acordo com o relatório Sem moradia digna, não há futuro, da Habitat para a Humanidade Brasil, as mulheres, sobretudo negras, chefiam 62,6% das famílias em situação de déficit habitacional.

Segundo o estudo, mesmo com uma renda média mensal de R$ 2.745,76 e despesas básicas reduzidas ao mínimo, sem considerar custos com cuidadoras ou imprevistos, uma mulher negra conseguiria poupar apenas R$ 31,62 por mês. Isso significa que, para adquirir um imóvel avaliado em R$ 69.828,57, valor médio das casas nas maiores favelas brasileiras, ela levaria aproximadamente 184 anos.

Olhando para as mães atípicas, Raquel Ludermir, gerente de Incidência em Políticas Públicas, avalia que elas passam por camadas de vulnerabilização, pois além das dificuldades enfrentadas com as questões de saúde ainda passam por questões de moradia, tornando a situação ainda mais complexa.

“Ou seja, é uma questão que não se resolve numa vida, e quem dirá se uma mulher tiver com menos condição de gerar renda, menos condição de ter um trabalho remunerado e formal e ainda cuidando com gastos adicionais que a gente sabe que é a situação de mães atípicas”, reflete.

A pesquisa também aponta que sem políticas intersetoriais que garantam não apenas a construção de habitações, mas também infraestrutura urbana, regularização fundiária e proteção contra despejos, muitas mulheres vivem em moradias precárias, improvisadas ou em coabitação involuntária, sem acesso a serviços básicos como água, saneamento, saúde e educação. O dado escancara a distância entre o sonho da casa própria e a realidade imposta às mulheres, revelando como o acesso à moradia digna permanece estruturalmente negado a quem mais precisa.

AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo (UNIAESO), mestranda pelo Programa de Pós-graduação e Inovação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/Campus Agreste. Contato: jeniffer@marcozero.org.