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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Sentada em um banco na frente do bloco C15 do conjunto Beira-Mar, em Paulista, a professora Ana Carmen aguardava com duas sacolas a mãe sair do prédio. Ia levá-la para sua casa, em Olinda, de vez. Desde que o bloco D7 caiu na sexta-feira, matando 14 pessoas, a mãe dela, Anacleide Figueiredo, de 73 anos, não se sentia segura de dormir ali. “No dia que teve o desabamento, alguns moradores ouviram um estalo. A caixa d’água de cima do prédio está toda rachada e fica minando água pelo prédio todo. É um risco altíssimo estar aqui”, diz Anacleide. Assim como ela, hoje foi dia de mudança para muitos moradores do conjunto Beira-mar.
Inaugurado em 1982, o habitacional é um colosso com 29 blocos de edifícios tipo caixão, cada um com 32 unidades, o que soma 1.711 apartamentos. Ainda há oito edifícios pilotis, com 13 andares cada. Nos anos 2000, vários prédios foram condenados pela Defesa Civil e muitos foram desocupados. Entre um bloco e outro, em meio a ruas sem asfalto e esgoto correndo a céu aberto, há prédios abandonados vigiados por um ou dois seguranças, nas 24 horas do dia.
Isso acontece porque há um enorme rolo jurídico em relação aos destinos desses prédios. Por serem do tipo “caixão”, uma técnica considerada hoje inadequada para a construção de edifícios, grande parte dos proprietários entraram na Justiça para conseguir uma indenização da seguradora por vícios de construção. O conjunto foi erguido com financiamento da Caixa Econômica Federal e, ao longo dos anos, houve alternância entre a Caixa Seguradora e a Sulamérica como seguradora dos imóveis.
Em nota, a Sulamérica nega que seja a seguradora do conjunto. A questão está na Justiça, em processo complexo que será melhor explicado na próxima reportagem.
O que deu base para a abertura de muitos desses processos foram estudos do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (ITEP) realizados entre 2007 e 2014 que apontaram riscos altos de desabamento em milhares de prédios tipo “caixão” no Grande Recife. Em 2008, em uma força-tarefa que vistoriou 5,3 mil prédios, mais de 2 mil foram considerados de risco. Somente em Paulista, são 100 edifícios interditados com base em dados do Itep.
A Defesa Civil do Paulista informou que oito blocos de prédios do conjunto Beira-mar estão interditados. De sexta-feira até esta segunda foram seis prédios interditados, com os moradores sendo obrigados a sair. A prefeitura forneceu caminhões para levar a mudança dos ex-moradores para casas de amigos e parentes.
Morador do bloco D10 há mais de 20 anos, o motorista Clécio Bunzen estava abrindo o portão para sair para o trabalho quando o parte do prédio da frente desabou. Foi um dos primeiros a ligar para os Bombeiros. No dia seguinte, a Defesa Civil condenou o prédio onde seu Clécio mora e, nesta segunda, autorizou a volta dos moradores só para fazer a mudança.
Desde 2008, ele e 24 dos 32 proprietários de apartamentos do prédio estão com uma ação judicial para tentar receber o seguro dos apartamentos. “Naquele ano o Itep veio aqui e viu que estava com alto risco do prédio cair. Entramos com a ação na Justiça contra a Caixa Econômica Federal e a Sulamérica, mas ainda não há uma decisão. Agora, resolveram tirar a gente daqui por conta desta tragédia do prédio da frente”, conta seu Clécio.
A situação do prédio dele é diferente do bloco C15, que abre esta reportagem. Por lá, a Defesa Civil ainda não foi fazer uma nova vistoria – algo prometido pela prefeitura do Paulista após o desabamento de sexta-feira. Por isso, os moradores ainda não têm o laudo comprovando que o prédio não tem condições de abrigar os moradores.
Ex-síndica do bloco C15, a professora Rosângela Ferreira só pretende deixar o apartamento onde mora há mais de 30 anos com o laudo em mãos. Pretende juntá-lo com a ação judicial que move contra a seguradora e receber com mais agilidade o valor do auxílio aluguel. No conjunto Beira-Mar, esse valor, pago pela seguradora SulAmérica, varia entre R$ 600 e R$ 1,5 mil.
Os moradores já não têm dúvidas de que o prédio vai ser interditado. A caixa d’água rachada, as paredes cheias de infiltrações, o piso “oco” e os constantes vazamentos são alguns dos muitos problemas apontados pelos moradores que também aproveitaram esta segunda-feira para fazer a mudança, mesmo sem o laudo de interdição.
No apartamento onde mora, a auxiliar de produção Nataly Braga de Lima retira com os dedos pedaços que se desprendem da parede. “Dois meses atrás ouvi um estrondo. Pensei que um tijolo tinha caído e era justamente época de chuvas. Mas não vi nada. Na semana passada, minha companheira ouviu um estalo. A Defesa Civil veio no ano passado e disse que aqui só precisava de manutenção. Mas quando o edifício caiu, na sexta, vi que o barulho era do prédio”, contou.
Nataly deixou o prédio onde morou por 12 anos nesta segunda-feira, com a companheira e as duas filhas. Não quis mais ficar no apartamento repleto de infiltrações e que fica embaixo da caixa d’água do prédio. Rosângela, que mora com a mãe idosa, vai esperar a vistoria da Defesa Civil. “Quero sair respaldada. De certa forma, estou representando os outros moradores, que já estão deixando o prédio. Fiz a denúncia, o protocolo está no meu nome. Quero a documentação dizendo quais são os riscos, mas independente de interditar ou não, vou sair daqui depois da vistoria”, diz.
Os moradores do Conjunto Beira-Mar vivem um martírio jurídico. Nem a seguradora Sulamérica, nem a Caixa Seguros ou a Caixa Econômica Federal assumem a responsabilidade pelas indenizações.
A advogada Janielly Nunes, do escritório Gamborgi, Bruno e Camisão Associados Advocacia, que defende alguns dos mutuários, explica que as ações estão suspensas desde 2019, em razão de uma determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) frente a um recurso especial repetitivo. Esse tipo de recurso diz respeito a casos em que o STJ define uma tese a ser aplicada aos processos que discutem idêntica questão de direito.
Quatro anos depois, esses processos ainda estão parados porque a relatora, ministra Isabel Gallotti, não afastou a suspensão, que deveria ter durado apenas um ano. Além disso, houve uma nova decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em recurso extraordinário, determinando que alguns desses processos sejam remetidos à Justiça Federal, incluindo dois casos do bloco D7 do Conjunto Beira-mar.
“Agora aguardamos uma grande mediação para que esses processos tenham a solução definitiva”, diz Janielly. Essa seria, na visão dela, a melhor forma de resolver o problema de várias famílias de uma só vez. Pernambuco tem hoje 120 mil mutuários. O escritório em que a advogada trabalha representa 36 mil pessoas desse grupo, entre moradores de prédios “caixão” e casas.
Em nota, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) afirmou que instaurou na sexta-feira um procedimento administrativo para apurar a existência de outros edifícios em situações semelhantes ao que desabou no conjunto Beira-Mar. O órgão quer fazer um levantamento de prédios interditados na cidade de Paulista, ou que ainda precisam ser e que estão irregularmente ocupados.
Para a Defesa Civil de Paulista, o MPPE solicitou o envio, no prazo de 15 dias úteis, da relação de todos os imóveis interditados ou diagnosticados com risco de desabamento no município, “acompanhado dos respectivos autos de interdição, se houver, além de indicar os endereços e classificação do grau de risco de cada um e se os mesmos se encontram ocupados por população carente”, diz a nota do MPPE.
O MPPE também oficiou o Núcleo 4.0 do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) – um núcleo criado para centralizar essas ações contra seguradoras – requisitando o envio, também em 15 dias úteis, de todos os processos judiciais em andamento relativos a imóveis interditados e/ou diagnosticados com risco de desabamento na cidade de Paulista.
Em nota à Marco Zero, a Prefeitura do Paulista afirmou que 92 prédios já foram vistoriados na cidade, desde o último mês de maio, e a Defesa Civil está realizando a atualização desses locais.
“De acordo com um levantamento do Itep realizado em 2008, existem 245 prédios no município. Deste total, 70% são do tipo caixão e 30% são do tipo pilotis. Até o momento, 12 prédios do tipo caixão foram interditados em Paulista, desde o ano de 2007.
Naquele ano, um prédio foi interditado em Arthur Lundgren II e outro em 2018 (bloco D7, em Beira Mar). Em 2023, já foram interditados 10 (dez) pela Defesa Civil do município, sendo 1 (um) em Jardim Maranguape, 1 (um) em Maranguape I, e 8 (oito) no Conjunto Beira Mar, no Janga.
Segundo a Defesa Civil, à medida que são realizados os levantamentos, quando é visualizada a situação, aí sim é feita a interdição quando há risco de desabamento”, diz a nota da prefeitura.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org