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A experiência da diversidade: o jornalismo feito por pessoas com deficiência

Marco Zero Conteúdo / 30/04/2025
A imagem mostra três pessoas em pé, lado a lado, em uma foto noturna. Da esquerda para a direita, está Wander Vieira; ele é um homem alto com camisa amarela; no meio está Josyclaudia Gomes. uma mulher com uma blusa verde e ao seu lado outra mulher, Elismarcia Tosta, vestida com blusa vermelha, ambas de estatura média e ao fundo mostra uma pequena árvore.

Crédito: Cortesia

O áudio enviado por um contato desconhecido, antecedido pelo código DDD 66, chegou no finalzinho da tarde no celular do editor da Marco Zero. Na mensagem, uma voz feminina se apresentava como Elismarcia, estudante de Jornalismo da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), e fazia um pedido surpreendente: a oportunidade de fazer o estágio curricular por via remota.

Por que uma estudante que vive em Rondonópolis estaria interessada em estagiar em um veículo independente do Recife, a mais de 3 mil quilômetros de distância? A resposta para essa pergunta foi o que nos levou a dar continuidade ao diálogo e estabelecer uma relação com a coordenação do curso de bacharelado em Jornalismo da instituição: Elismarcia explicou que é cega e, por isso, não conseguia estágio na mídia ou nas agências de comunicação da sua cidade.

Imediatamente, decidimos viabilizar o estágio obrigatório para a aluna e outras duas pessoas com deficiência que precisariam dessa atividade, um dos requisitos para concluir o curso na Unemat que, aliás, permitiu a modalidade de estágio remoto diante da dificuldade encontrada por esses estudantes. Por essa razão, nos próximos meses os leitores e leitoras da MZ irão encontrar reportagens sobre uma realidade bem diferente da que estão acostumados a ler em nossas páginas.

Assim, os textos de estreia publicados por Elismarcia Tosta, Josyclaudia Gomes e Wander Vieira, falam dos desafios individuais e profissionais que eles precisam superar todos os dias. Não por acaso, estão escritos em primeira pessoa.

Segundo os dados obtidos a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há cerca de 18,9 milhões de pessoas com deficiência, o que representa aproximadamente 8,9% da população. Desses, apenas 29,2% estão no mercado de trabalho. Isso equivale a cerca de 5,1 milhões de pessoas empregadas, enquanto 12,4 milhões estão fora do mercado.

Além disso, um levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego mostrou que 545,9 mil trabalhadores com deficiência estão inseridos no mercado formal de trabalho, sendo que 93% deles trabalham em empresas com mais de 100 funcionários.

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“Minha condição não deve ser um obstáculo”

por Elismarcia Tosta

Em um mundo que se diz cada vez mais inclusivo, a realidade das pessoas com deficiência ainda é marcada por desafios significativos. Com aproximadamente 15% da população mundial vivendo com algum tipo de deficiência, a busca por acessibilidade e igualdade continua sendo uma prioridade. A deficiência pode ser classificada em diferentes categorias: física, intelectual, sensorial e múltipla. Cada uma delas apresenta desafios únicos, mas todas têm algo em comum, o impacto significativo na vida das pessoas afetadas.

Ouvir de um oftalmologista que não teria nem 1% de possibilidade de voltar a enxergar foi o momento mais desesperador da minha vida. Há sete anos, meu dia a dia tem sido o mesmo: dormir enxergando tudo preto e acordar em um mundo escuro.

A perda da minha visão foi causada pelo diabetes mellitus tipo 1, uma condição que minha mãe descobriu quando eu ainda era criança. Aos seis anos, comecei a perder muito peso, o que deixou minha avó paterna preocupada. Depois de muita insistência dela, minha mãe me levou ao médico. Após passar por dois especialistas, descobrimos que eu tinha diabetes, que no meu caso era o próprio pâncreas que não produzia mais insulina. Diante disso, precisava usar insulina três vezes ao dia e medir a glicose a cada duas horas em um aparelho que era fornecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Minha rotina mudou drasticamente aos 21 anos, quando perdi totalmente a visão devido a complicações de saúde. Na época, eu tinha recentemente trancado o curso de Administração e essa nova realidade exigiu que eu me adaptasse e aprendesse tudo novamente. Comecei aulas de Orientação e Mobilidade (OM) e Atividades da Vida Diária (AVAS) para conseguir me locomover sozinha e ajudar com as atividades domésticas dentro da casa da minha família, já que ainda não estava pronta para morar sozinha.

Fiz um curso de informática para aprender a usar o celular e o computador com leitores de tela. Nunca imaginei que isso seria possível após perder a visão. Além disso, comecei a aprender o alfabeto Braille no Instituto Louis Braille da minha cidade, Rondonópolis (MT).

Durante uma conversa com minha professora de informática sobre uma bolsa no Prouni, ela me contou sobre a seleção para a graduação em Jornalismo na Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat). Este era meu sonho desde os 14 anos, pois sempre quis ser âncora de telejornalismo. Realizei o seletivo e fiquei em primeiro lugar na única vaga destinada a pessoas com deficiência. Fiquei muito feliz com essa conquista, mas ao contar para minha família sobre o início da faculdade, recebi negativas. Eles duvidavam que eu conseguiria estudar com minha condição, algo que nunca havia acontecido quando eu enxergava. Apesar das desconfianças, mantive meu foco. Um dos grandes desafios foi acessar a educação superior, pois a faculdade não estava preparada para me receber.

Durante a pandemia, as aulas começaram remotamente e eu não tinha acesso à internet nem tinha um computador para estudar, tendo que usar meu celular com internet móvel, que custava R$ 10 por semana, enquanto dava prosseguimento às atividades no Instituto Louis Braille.

Depois de dois meses, as aulas voltaram presencialmente e precisei aprender a pegar ônibus, já que nunca tinha utilizado transporte público antes. Além disso, fazia hemodiálise três vezes por semana devido ao funcionamento reduzido dos meus rins. Durante o terceiro semestre, precisei passar por um transplante duplo de rins e pâncreas em São Paulo e fiz atividades à distância usando apenas meu celular. A faculdade me forneceu uma ledora que facilitou a leitura dos materiais para que eu pudesse desenvolver os trabalhos à distancia.

Após quase cinco meses, voltei à faculdade. No início foi confuso e me senti deslocada, mas fui me adaptando e pensando nas oportunidades de estágio no mercado de trabalho. Estava esperançosa porque sabia que havia demanda por novos profissionais na área jornalística na minha cidade. No entanto, nunca fui chamada para fazer uma entrevista; muitos não viam além da minha deficiência. Meus colegas que enxergavam, conseguia estágios mais facilmente do que eu. Percebi que o mercado jornalístico ainda não estava preparado para receber profissionais com deficiência, que possuem uma visão do mundo diferente. Agora, prestes a me formar, reafirmo que minha condição não deve ser um obstáculo para me impedir de alcançar meus objetivos. Enfrentei muitos desafios, mas encarei todos de frente. O que me mantém firme é a fé e a esperança de que as pesquisas sobre células-tronco para restaurar a visão avancem no Brasil e que a sociedade aprenda a ver as pessoas com deficiência de forma igualitária.

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“Tenha paciência consigo mesmo e com os outros”

por Wander Vieira

Desde a pré-escola eu já apresentava sinais de retardo mental e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), para mim eu era igual às outras crianças, porém sempre ficava na sala depois da aula por não conseguir acompanhar o professor. Eu não entendia como uma pessoa conseguia escrever tão rápido em uma lousa e preenchê-la no mesmo intervalo de em que eu ainda estava na primeira parte do quadro. Ele dividia a lousa em três partes e, mesmo, quando ele parava de escrever e esperava, eu ainda estava na metade da segunda parte. Eu era muito lento, e me distraía muito fácil.

Não era imperativo, eu não conseguia me comunicar com as demais crianças, porque simplesmente não conseguia falar com elas mesmo querendo, as palavras não saíam, e eu gaguejava muito. Minha dificuldade era me distrair com coisas simples. Como estar copiando algo do quadro e vejo uma mosca passando perto do professor, focados, os outros alunos não viam, mas eu ficava observando essa mosca até minha consciência dizer para focar no conteúdo e esquecer aquilo, enfim tudo me distraía. Isso continua até os dias de hoje, porém se tornou menos frequente.

Foi partir da metade do ensino fundamental que minha mãe me levou em uma fonoaudióloga pra ver o problema com a pronúncia das palavras, mesmo assim ainda continuava com dificuldades nas aulas.

Era difícil também por causa do bullying. Os comentários maldosos dos outros alunos em relação a mim sempre me chateavam e meu modo de reagir a isso era chorar, porém, quando continuavam insistindo por eu chorar, eu tinha um surto de raiva pra cima desses alunos, com direto a pegar mesa e lixeiras pra arremessar neles. Só parava quando segurado por uma ou mais pessoas.

Isso trouxe problemas para meus pais, que me levaram a psicólogos, mas nunca me senti bem nessas consultas, pois nunca entendi o propósito deles. Ainda no ensino fundamental, minha mãe começou a me levar em um psiquiatra que me avaliou e me disse o que eu tinha e como aprender a viver com isso de uma forma que não me atrapalhasse, para eu cumprir com minhas responsabilidades na escola.

A primeira medicação controlada que comecei a tomar foi o Metilfenidato, vendida como Ritalina, prescrita com intuito de melhorar meu foco na aula, porém era um remédio que relutei em tomar, até que pedi ao psiquiatra para trocá-la porque, de uma criança calma, passei a “estourar” muito rápido. Foi aí que ele me passou um medicamento que eu me senti leve ao tomar, a Risperidona 1 mg. Mesmo sabendo da minha deficiência – o TDAH e do leve retardo – eu sabia que faltava alguma coisa para aprender a cumprir com minhas responsabilidades, foi aí que decidi que precisava passar por verdadeiras dificuldades sociais. Então consegui um trabalho de assistente de pintor: este foi o período que eu mais senti ansiedade, medo, frustração, nervosismo na minha vida. Era muito difícil e muito ralado, porém foi ali que aprendi a me virar, a focar no que era necessário fazer e fazer bem feito, mesmo às vezes fazendo trapalhadas.

Quando finalmente saí desse trabalho, já me sentindo preparado, passaram-se alguns meses quando saiu um edital pra concurso no site do município. Fiz a prova e passei. Hoje, mesmo tendo algumas dificuldades, me sinto muito mais forte mentalmente e muito mais resiliente às situações que enfrento e às provocações.

Se eu puder deixar algum ensinamento para alguém que está passando algo parecido seria para nunca abaixar a cabeça em situações difíceis, pois a solução pode não estar visível ali no momento, mas em algum momento a resposta irá aparecer. Tenha paciência consigo mesmo e com os outros, afinal não sabemos por qual situação os outros estão passando.

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“Não sinta que merece menos que os outros”

por Josyclaudia Gomes

Descobri por mim mesma que não enxergava como as outras pessoas, hoje sei que tenho ambliopia no olho esquerdo, ou seja, minha visão não desenvolveu normalmente. Vejo tudo embaçado de um lado e tudo limpo do outro. Até entender que isso não era igual para todos, sempre acreditei que todos enxergassem como eu. Nunca tive dificuldade para ler, para estudar, ver de longe ou perto, devido a isso meus pais nunca desconfiaram de nada, não lembro exatamente quando, mas comecei a perceber que eu enxergava diferente.

As pessoas reclamavam da visão e depois de um tempo usavam óculos, os comerciais sobre óculos de grau mostravam como era uma visão normal e uma com miopia, então pensei que provavelmente eu poderia ser míope, mas quando testava os óculos de alguém por curiosidade, minha visão continuava a mesma ou até piorava. Meus pais também não tinham condição financeira para me levar em um oftalmologista, então segui sem falar nada.

Um dia, falei com minha mãe e ela ficou curiosa, mas não passou disso. Só depois dos 18 anos de idade, decidi ir a um oftalmologista, fui ao posto de saúde e entrei na fila para uma consulta, nunca vou me esquecer do dia dessa consulta. Em uma sala com mais pessoas além de mim, me sentei em uma cadeira quase no fundo da sala e, do outro lado, o médico colocou as leras na parede. Primeiro, ele avaliou o meu olho direito, visão 100%. Mas quando avaliou o esquerdo, percebeu que tinha algo errado, pois colocou a fonte de maior tamanho e, mesmo assim, não conseguia identificar qual letra era. Então ele olhou para mim, com um olhar de piedade, e disse lamentar, pois eu tinha ambliopia e que isso não tinha cura.

Ao mesmo tempo que fiquei triste porque não tinha como reverter essa situação – o que só seria possível se a doença tivesse sido descoberta quando criança -, senti certo conforto por ao menos saber a explicação da minha visão tão diferente de um olho para outro.

Segui minha vida como sempre. Por mais que eu seja uma pessoa com deficiência, jamais havia tinha usado os meus direitos em sua plenitude, pois isso não me via como uma pessoa que merecia, afinal existem pessoas com deficiências ainda mais complicadas. Então, há uns dois anos, tentei mudar a carteira de habilitação para categoria D, foi quando descobri que pelo fato de ter ambliopia, só posso ter CNH da categoria AB. Aquela foi a primeira vez em que a minha condição física me impediu de algo, mas, em contrapartida, comecei a usar e reivindicar mais os meus direitos.

Hoje, trabalho de carteira assinada e fui contratada como uma pessoa com deficiência. Por isso, quero frisar aqui: usem os seus direitos, não sinta que merece menos que os outros.

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Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.