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O inverno de 2018 pôs fim a uma seca que começou em 2012 (ou 2011, dependendo da região). No entanto, os leitores dos principais jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo e o público que acompanha os telejornais da maior emissora de TV do País, mal ficaram sabendo que os 23,9 milhões de habitantes de brasileiros que vivem no semiárido enfrentaram as consequências da mais prolongada e intensa estiagem da história.
É bem verdade que o assunto não desapareceu do noticiário, mas quase não mereceu edições especiais, não houve deslocamento dos melhores repórteres, fotógrafos e cinegrafistas cruzando os sertões nem séries de reportagens na TV com trilha sonora dramática tal qual uma pequena telenovela. A cobertura da mídia foi protocolar, limitada na maioria das vezes à questão climática da falta de chuvas ou às consequências econômicas.
Não deixa de ser curioso, afinal a pauta “seca no Nordeste” era obrigatória na mídia brasileira desde julho de 1878, quando a revista carioca O besouro publicou as primeiras fotografias de crianças esqueléticas e os relatos de José do Patrocínio sobre os efeitos da estiagem de 1877-1879.
De lá pra cá, o aparato tecnológico da comunicação mudou, mas a cobertura da seca continuou a mesma, sempre marcada pelas imagens de chão rachado, carcaças de gado, crianças famintas, pedintes nas estradas e notícias de saque.
Pela primeira vez na história não houve mortes de crianças, nem saqueadores invadindo armazéns para levar fardos de comida para justificar. Sequer foram vistas hordas de migrantes nas estradas para justificar a viagem de enviados especiais.
E as matérias editadas nas redações paulistanas e cariocas não se ocuparam de decifrar o porquê da ausência desses elementos na maior seca de todos os tempos.
Amanhã, uma reportagem multimídia da Marco Zero Conteúdo irá mostrar aquilo que a mídia preferiu esconder: como a sociedade civil está desconstruindo a indústria da seca ao encontrar o caminho para conviver com as prolongadas estiagens. Por ora, entenda como os principais veículos de comunicação ocultaram exatamente aquilo que, por ser inédito, deveria ser a notícia.
A análise de dezenas de reportagens publicadas pelos principais veículos de comunicação do País (Folha de S. Paulo, Estadão, Valor Econômico, revistas da editora Abril, Rede Record e veículos das organizações Globo) mostram que, entre 2012 e 2017, boa parte do que foi publicado sobre a seca baseou-se em dois indicadores: a situação dos reservatórios de água e os índices pluviométricos, ou seja, quanto choveu e onde choveu.
Apesar das exceções, a cobertura da maior seca da história limitou-se a uma sucessão de boletins sobre dois números que podem ser facilmente obtidos nos sites do Instituto Nacional do Semiárido (Insa) e do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Parágrafos como esse, publicado pela revista Veja em maio de 2012, iria se repetir nos anos seguintes nos demais veículos analisados: “…a maioria desta área a redução das chuvas foi em média de 75% – chegando até 92% em alguns – e a maioria dos açudes localizados no sertão está com 30% da sua capacidade”.
Em abril deste ano, o Jornal Nacional da Globo informava o fim da seca , anunciando que “após seis anos de seca severa, chuva muda a paisagem”. Meses antes, no final de 2017, o telejornal de maior audiência no País dava conta que “quase metade das cidades do Nordeste” estava em estado de emergência por falta d’água nos reservatórios. Tudo burocrático, bem diferente das reportagens em tom de novela melodramática com que a Globo cobriu as estiagens dos anos 80.
A Record optou pelo formato que sua concorrente, a Globo, usava no século XX. Produziu uma série novelesca que, em fevereiro de 2017, ocupou uma semana completa de seu telejornal noturno. O problema é que a emissora do bispo Macedo não copiou apenas o formato: usou a linguagem de dramalhão e relatou “a grande seca” como se fosse a mesma seca de 1983, exagerando no tom catastrófico, sem fazer qualquer referência às profundas mudanças que a região passou.
O tom de tragédia e de “problema”, que serviu para sustentar a indústria da seca e o preconceito contra a região, não foi monopólio da Record. A revista Época, do grupo Globo, publicou no último mês de abril um ensaio fotográfico sob o título “Um ensaio sobre as terras secas do Nordeste – a porção de terra seca, sem vida e sem salvação, cresce no Nordeste”. É preciso ler os textos que acompanham as imagens para saber que se trata das regiões que sofrem processos de desertificação.
Empresários “inovadores” e empreendedores “modernos” querem renovar a indústria da seca. E contam com as ferramentas que a mídia tradicional lhes oferece.
Em março de 2017, o Estadão publicou em sua página de Economia & Negócios uma matéria intitulada ‘Ações para minimizar a seca que persegue o Nordeste’. Estranhamente, o texto não é assinado por nenhum jornalista da empresa e sim pela Amcham Brasil. Amcham é a sigla em inglês de Câmara de Comércio dos Estados Unidos.
Após os parágrafos iniciais repletos de clichês, frases feitas e inevitáveis versos de Asa Branca, a “matéria” finalmente revela as verdadeiras intenções da Amcham: vender um produto chamado PackH2O, uma espécie de mochila desenvolvida por uma indústria de embalagens industriais para resolver o problema do transporte individual de água por longas distâncias. A Amcham informa que mais de 200 mil packs para já foram distribuídos para latino-americanos que vivem em situação de vulnerabilidade.
O texto não revela quem pagaria pelos packH2O que seriam destinados aos brasileiros.
Se o jornal tivesse enviado bons repórteres ao semiárido, seus leitores teriam ficado sabendo que dezenas de outras tecnologias baratas e apropriadas à região já estão em uso, mudando a vida de milhões de brasileiros.
O produto de marketing que utiliza o pretexto de “ajudar o nordeste” mais bem sucedido talvez seja a água mineral da Ambev, a AMA, cujo lucro está sendo direcionado para a ONG Fundção Avina, que financia um projeto de desenvolvimento sustentável no Ceará. Manchetes como “Diretora da Ambev cria água capaz de reduzir a seca no Nordeste” (revista Glamour do grupo Globo) dão ideia de como a ação promocional de uma grande empresa recebe mais espaço do que a política estruturadora que alcança toda a região.
Sim, as exceções existem. Apesar de focar sua cobertura nas consequências econômicas da estiagem, como o aumento dos preços do leite e do feijão, o jornal Valor Econômico publicou matérias relevantes, apontando que a seca exige a integração de várias políticas articuladas às alternativas tecnológicas. Tal abordagem difere bastante com a busca por uma solução mágica, única e que movimenta grandes volumes de dinheiro.
O mesmo Estadão do merchandising da mochila de água publicou em janeiro de 2017 aquele que, provavelmente, foi o melhor material jornalístico entre todos analisados. O especial “Nordeste enfrenta maior seca em 100 anos”, apesar de também repetir alguns lugares comuns sobre o fenômeno e a região, ao menos mencionou que os programas sociais “reduziram a migração” e identificou que os projetos de agroecologia oferecem alternativas para os agricultores.
Mesmo assim, a reportagem especial do jornal paulista relegou a um plano secundário as informações com maior valor jornalístico, que era a transformação em larga escala promovida por mais de um milhão de cisternas de placas e centenas de milhares de outras tecnologias desenvolvidas pela sociedade civil e universalizadas pelas políticas públicas dos governos Lula e Dilma.
Apesar da sensibilidade dos repórteres, a edição do Estadão restringiu a nova realidade da região à dimensão de algo menor, restrita a indivíduos isolados.
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.