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A história de Xica Manicongo, a primeira travesti do Brasil, chega aos quadrinhos

Giovanna Carneiro / 20/05/2025

Divulgação / Arte Jocosa Aguiar

“Trans-historizar a história oficial”. É assim que a professora e pesquisadora Millena Valença define o projeto Xica: História e memória da primeira travesti do Brasil em HQ. Desenvolvido a partir das pesquisas das professoras Jaqueline Gomes e Megg Rayara, que realizaram um resgate da trajetória de vida de Xica Manicongo em arquivos históricos, e com ilustrações de Jocosa Aguiar, a iniciativa combina arte, literatura e educação para enfrentar o apagamento de mulheres trans e travestis negras da narrativa histórica escolar. 

Foi graças a experiência como professora na rede pública de ensino que Millena resolveu criar uma solução para os casos de transfobia que ocorrem nas escolas.

“A minha motivação para escrever o projeto veio de uma situação que ocorreu com uma aluna minha, em 2016. Ainda não havia nenhuma lei de nome social nem a lei de permanência e uso de banheiro por pessoas trans na escola e essa aluna foi vítima de transfobia ao ser proibida de utilizar o banheiro feminino. Foi uma situação desastrosa, porque convocaram toda a escola para realizar uma assembleia e decidir se a aluna podia ou não utilizar o banheiro, o que, no final, não foi aceito”, explica Millena

A partir disso, ela começou a estudar sobre gênero e sexualidades e decidiu produzir um produto didático para enfrentar a transfobia. “Considerando a educação como um instrumento de transformação social, sobretudo reconhecendo a importância de desenvolver esse trabalho em Pernambuco, que é um dos estados do Brasil com mais casos de transfeminicídio”, conta a professora.

Quem foi Xica Manicongo

Xica Manicongo foi uma figura histórica que viveu no Brasil colonial, reconhecida como a primeira travesti de que se tem registro na história do país. Ela era uma pessoa africana escravizada em Salvador, na Bahia, no século XVI. Xica foi acusada pela Inquisição portuguesa de “andar trajada como mulher”, o que, na visão das autoridades da época, era considerado um crime grave. Seu caso está documentado nos registros da Inquisição, que perseguiu pessoas que fugiam das normas de comportamento impostas pela Igreja e pelo Estado colonial. Pesquisadoras e pesquisadores promoveram um resgate da história de vida de Xica Manicongo e graças a isso ela se tornou um importante símbolo de resistência e de luta contra opressão para a população negra e LGBTQIA+.

“A queixa dos professores sempre foi a mesma, de não ter material e de não ter a formação necessária para suscitar o debate sobre a transfobia nas escolas, e de fato, a gente não tem formação na universidade, as disciplinas de gênero e sexualidade ainda são raras. Dentro do curso de História, por exemplo, quando essas disciplinas existem são optativas e, na maioria das vezes, elas não existem, então a gente não discute gênero e sexualidade”, completou Millena.

Dividido em três partes, o projeto, financiado pela Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) e pela Secretaria de Cultura de Pernambuco, reúne a HQ roteirizada e ilustrada pela artista trans Jocosa Aguiar, um suplemento didático voltado a professoras e professores e um audiolivro narrado pela multiartista Renna Costa como recurso de acessibilidade para pessoas cegas ou com baixa visão. A HQ traz a representatividade de Xica Manicongo como símbolo do movimento de mulheres trans no país, reforçando uma perspectiva positiva de suas trajetórias para além do estigma da escravidão e da transfobia.

“Eu acho que é muito fácil a gente cair num discurso pessimista quando falamos sobre as pessoas trans e travestis. Um discurso que, às vezes, impede a gente de levantar outras discussões e debates importantes. Por isso, o quadrinho não é apenas um material sobre as pessoas trans, é um quadrinho que demonstra como histórias e diversos processos ao longo da colonização do Brasil foram mudados e rearranjados para promover apagamentos e mortes. E para demonstrar como isso ainda afeta a gente hoje em dia. Por isso, o nosso objetivo é reescrever a história de Xica Manicongo através de um resgate histórico que busca humanizar os corpos de pessoas trans e travestis brasileiras”, explicou a artista Jocosa Aguiar.

Crédito: Divulgação / Arte Jocosa Aguiar

Para o projeto gráfico da história em quadrinho, Jocosa conta que criou uma personagem disruptiva que tem uma imagem inspirada nos mangás de Yu-Gi-OH!: “Ela é uma personagem que tem formas diferentes das pessoas e ambientes onde ela está, e por isso ela se destaca”.

Já a segunda parte do livro, desenvolvida por Millena Valença, é composta por um material que tem como objetivo enfrentar as violências de gênero e sexualidade a partir da educação e de um levantamento de dados, como conta a pesquisadora: “A gente faz as discussões várias conceitos, o que é gênero, o que é orientação sexual, a gente traz também toda a documentação histórica de Xica Manicongo e de outras identidades LGBTQI. O trabalho foca na Xica, mas não é exclusivamente sobre ela. É um material para professores que tem documentos históricos que falam sobre pessoas trans, mulheres lésbicas, pessoas bissexuais, entre outros. O trabalho tem também uma visão bastante problematizadora das questões ético-raciais, então tentamos fazer algo bem amplo e que vai ser bastante útil na vida acadêmica e escolar”.

O projeto inclui um processo formativo destinado aos profissionais de educação, entre professores e bibliotecários, das dez escolas públicas de Pernambuco que foram contempladas. A formação será ministrada pelas educadoras e pesquisadoras Odailta Alves e Dayanna Louise, com foco no uso da HQ como recurso didático e estratégia de enfrentamento ao apagamento dessas identidades na narrativa histórica escolar.

Cada escola contemplada receberá 20 exemplares da HQ impressa, com isso, a iniciativa tem a expectativa de alcançar, direta e indiretamente, cerca de 10 mil estudantes do Ensino Médio, Ensino Médio Técnico, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Lançamento

O lançamento oficial do livro acontecerá nesta sexta-feira, 23 de maio, às 14h, no Museu de Artes Afro-Brasil Rolando Toro (Muafro), localizado no bairro do Recife. Após o evento, o material didático será disponibilizado gratuitamente em formato digital na plataforma Educapes, para qualquer pessoa que deseje utilizá-lo como ferramenta pedagógica.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.