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A morte passou de bicicleta

Samarone Lima / 09/07/2015

“Se eu te contar tudo, vais ganhar mais dinheiro que Blade Runner”, diz Miró, numa cantina do Hospital Oswaldo Cruz, onde foi internado às pressas, dia 17 de junho. Viu a morte passando de bicicleta. Ela quase parou. Miró, um dos maiores poetas de Pernambuco, assolado há alguns anos pelo fantasma do álcool, não teve sequer forças para subir na garupa. Estava com 49 quilos, quando um milagre – e amigos – o salvaram.

Não daria trabalho para ser levado. Após três dias bebendo, “sem comer uma bolacha”, beijou a lona. Apagou no apartamento 307, onde mora sozinho, no bairro da Muribeca. “Mora sozinho” é um jeito mais delicado de falar. O poeta vive num prédio abandonado. É ele e mais ele. O resto é silêncio, paredes e solidão.

“É uma tragédia grogue. Onde moro, está se acabando. Só mora eu”.

Acordou e não conseguia sequer sentar. “Eu disse – morri”.

Impotente, sem forças, sem vizinhos, olhou para a estante da mãe e pensou – “Se eu for morrer, que morra logo. Não quero ficar com AVC”.

Com aquele seu olhar penetrante, vivo, ele diz que pediu forças para morrer.

Pegou todos os santos e orixás da mãe e colocou ao redor da cama e fez o que seria o derradeiro pedido:

“Me matem, mas não me deixem aleijado, porque não sou uma pessoa tão má”.

E apagou. Sabe-se lá por quanto tempo.

Ariano Suassuna costumava dizer que “a astúcia é a coragem do pobre”. E Miró contou com ela, para escapar.

Tempos atrás, deu uma cópia da chave de sua casa a Mirivas, um amigo que mora perto. Avisou que no dia em que passasse dois dias sem sair de casa, ele abrisse a porta, porque era bronca. Outra cópia ficou com a mulher de Mirivas.

O pedido aos orixás não foi acolhido. Miró abriu os olhos e disse “Deus, me dê outra chance!”. Nessa hora, o dono do fiteiro estava abrindo seu pequeno comércio. O poeta juntou as forças, chegou perto da janela e gritou:

“Socorro, meu irmão, que estou morrendo!”

“Porra, Miró, de novo!”, respondeu o homem, que fechou o fiteiro e foi em busca de ajuda.

“Mirivas, Miró está na pior. Amarelo. Apagou de novo”.

O vizinho chegou com um chá bem quente. Miró bebeu tudo de uma vez e queimou a língua.

“Tu deita aí, lá pelo meio dia a gente volta”, disse o amigo.

Miró apagou de novo. No início da tarde, acordou e sentiu alguma força. Olhou para os orixás e mudou o pedido.

“Me dêem mais uns dias!”.

Resolveu pedir ajuda ao escritor e médico Wilson Freire, que há um bom tempo tenta encaminhá-lo para um tratamento completo, sempre levando dribles do poeta. Pegou o celular, mas a mão tremia tanto, que não conseguir fazer a ligação. A astúcia voltou a funcionar. Botou o aparelho no chão e, usando um palito de fósforos, foi apertando os números.

Foi um pedido de salvação a cobrar.

“Tem cinquenta anos que não boto crédito no celular”, conta Miró, rindo.
“Diz”, respondeu Wilson.
“Poeta, estou morrendo”.
“Estou indo pra aí agora”.

Não se sabe ainda o cenário que Wilson Freire encontrou. Pode ser a continuação desta crônica de uma ressurreição. Miró não conseguia sequer vestir a bermuda, muito menos descer as escadas.

“O que fiz, ele vai contar ainda”, diz Miró.

A vaga no departamento Júlio de Melo, no Oswaldo Cruz, foi a resposta aos pedidos do poeta, em sua mais longa travessia. Teve que ser amarrado à cama, por causa dos delírios e da tremedeira.
Nesse processo todo, o poeta mais negro do Recife mais parecia uma vela, de tanto que apagava. Dormiu profundamente.

Definitivamente vivo

“Ele pensou que agora estava
Definitivamente morto
O legista disse:
Não,
Não levem agora
O coração ainda bate
Apesar de saber de seus vacilos com o álcool
E de paixões terríveis ao ponto de pular
Do térreo”
(Poema sem título, do livro “Quase crônico”, 2010)

Quando acordou, Miró pensou que estava na Funase (Fundação de Atendimento Socioeducativo).

“Pensei: porra, agora vou apanhar pra caralho!”

Aproveitou que as enfermeiras não estavam e resolveu “dar um Ninja”. Com os calcanhares inchados de tanta bebida, saiu procurando alguma porta aberta. A enfermeira logo o encontrou e os vigilantes o levaram de volta ao quarto.

Se preparou para as porradas.

“Mano, tem calma. Não vamos dar em você não”.

Deixaram o poeta na cama. Pouco depois, tentou de novo escapar – pelo mesmo lugar.

“De novo, irmão?”, disse o vigilante.

Aos 54 anos, mais de dez livros publicados, ovacionado em qualquer festival literário que participa, o poeta João Flávio Cordeiro da Silva, o Miró da Muribeca, não sabia onde estava. Não via nada de significativo, que apontasse um lugar no mundo.

No dia seguinte, o amigo Wilson Freire foi visitá-lo.

“E aí, poeta?’
“Estou onde?’
“No Hospital Oswaldo Cruz. Desta vez, você me pediu para ser internado”.

Miró caiu no choro. Pela primeira vez, após tantos anos mergulhado nos excessos do álcool, depois de recusar inúmeras vezes a ajuda de amigos queridos que tentavam convencê-lo a se cuidar, a ir para uma clínica, finalmente tinha estendido as mãos. Aceitou ajuda.

Talvez tenha passado um filme ruim da derrocada pessoal, especialmente após a morte da mãe, em janeiro de 2012. Sem irmãos, sem pais, Miró tinha encostado a alma nos bares, e a vida nos copos.

As lições do álcool parecem ter entrado na alma. Um poema do seu último livro, DizCrição” (2010) parece ter algo de profético:

“O álcool não respeita sol nem chuva
Não respeita polícia nem nada
Um homem bêbado acha que é Deus
Chama até o asfalto para dançar
Dança até quem não sabe dançar
O álcool não respeita nada
O cara se larga
E Deus vai tomando conta
Até que um dia Deus fique bêbado
E o esqueça”.

“Eu já estava passando vergonha. Alguns comerciantes não me vendiam mais bebida”.

Na Muribeca, uma mulher se recusou a vender uma cerveja para ele.

“Eram seis e meia da manhã e pedi uma Schin de um litro”, lembra.

Sua especialidade era intercalar três cervejas com umas caninhas.

Para piorar, Miró é daqueles homens que bebem e não se interessam por comida. Pior: perdem a fome. O almoço, a muito custo, era um pequeno pedaço de fígado, que uma mulher fazia para ele, vez em quando, com três dentes de alho de brinde. Ela cobrava R$ 5,00.

Somente no quarto dia de internação, Miró entendeu que não estava na Funase (nem em algum presídio).

“Foi uma lucidez que eu tive. Em presídio não trazem papa, suco de abacaxi, essas coisas”.

Enquanto narra sua quase-morte, Miró comemora os dez quilos e quatrocentas gramas que ganhou, desde a internação.

“Com essa crise toda, aqui parece hospital particular. São seis refeições por dia. Como o álcool inibia minha alimentação, estou comendo como um bicho. Se botarem oito refeições, eu como”.
Boatos na Internet

O poeta ficou indignado quando “algum imbecil” publicou, na Internet, que ele tinha sofrido um AVC. A história logo se espalhou. Coube a Wilson Freire desfazer a mentira, via Facebook. Logo começaram as visitas.

A assistente social o visitou.

“O senhor é alcoólatra?”
“Sou”
“O senhor teve um AVC?’
“Não”.
“O senhor tem hepatite?’
“Não”.
“Tem vontade de beber?’
“Não posso”.
“O senhor quer fazer tratamento”.
“Quero”.

Miró está se tratando, tomando remédios. Os amigos começaram a chegar. Ele os recebe em um banquinho no corredor, que já é conhecido como “O banco de Miró”. Anda pelo Hospital falando com todo mundo, sorrindo. Seu Facebook já está repleto de fotos.

Nesta sexta-feira, 10 de julho de 2015, Miró deve receber alta.

A melhor notícia é que ele não vai voltar para a solidão da Muribeca. Um casal amigo, Maria e Cássio, vai acolhê-lo em sua casa, na Várzea. Tem um quarto para ele, reservado. Amigos como Cida Pedrosa já organizaram um esquema para pegar as coisas dele no solitário apartamento e agora buscam uma quitinete no centro.

“Pela Internet, já chegaram oito cestas básicas”, diz Miró, pelo telefone.

Ele promete chegar à abertura da X Bienal do Livro de Pernambuco, onde será um dos homenageados, pela porta da frente, muito vivo.

“Com tanto carinho e amor dessas pessoas, eu vou beber?’

Pode ser que recite um poema que tem a cara deste momento:

“Hoje abri os braços mais que pude e abracei
O infinito céu, página azul do livro de Deus”.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.