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Por Luiz Felipe Campos*, especial para a Marco Zero Conteúdo
Ao chegar à cena do crime, nas primeiras horas da manhã, depois abrir caminho no mato fechado, o médico legista Pedro de França assustou-se com a quantidade de corpos. No primeiro, encontrado ainda do lado de fora da casinha, o legista contou sete perfurações de bala no tórax. Um documento encontrado em seus bolsos o identificava como José Manoel da Silva, 32 anos. Havia mais quatro corpos no interior da casa – dois homens e duas mulheres. Elas – viria-se a saber – eram Soledad Barrett, 28 anos, e Pauline Reichstul, 25 anos. A primeira recebeu quatro tiros na cabeça e dois no pescoço. A segunda, quatro tiros na cabeça e quatro no tronco. Os outros dois homens eram Jarbas Marques, 24 anos, em cujo corpo o legista contou dois tiros na cabeça e dois no tronco, e Eudaldo Gomes, 25 anos, que recebeu quatro tiros na cabeça e três no tronco. No dia seguinte, o médico legista foi enviado a periciar um sexto corpo, em uma região próxima, no qual contou três tiros na cabeça, dois no braço esquerdo, e seis nas pernas. Tratava-se de Evaldo Luiz Ferreira, 30 anos.
Apenas três dias depois, em 11 de janeiro de 1973, a notícia chegou às redações. A operação policial foi revestida de heroísmo e o caso, que ficou conhecido como o “massacre da granja São Bento”, foi levado à opinião pública como um troféu do “combate ao terrorismo”. Veículos de imprensa de todo o país, e até do exterior, noticiaram as mortes, em um sítio no Grande Recife, de “seis perigosos terroristas, pertencentes à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a serviço de Fidel Castro e do comunismo internacional”.
De acordo com a versão oficial, os seis estavam reunidos em um “congresso” no momento em que foram surpreendidos pela polícia. À ordem de prisão dada pelos agentes de segurança, os “terroristas” responderam abrindo fogo com um armamento que incluía, além de revólveres, uma espingarda calibre 12. Dessa troca de tiros – histórias de heroísmo policial dificilmente terminam com os suspeitos algemados – resultaram as mortes dos quatro homens e duas mulheres. Se examinados com atenção, no entanto, os próprios documentos oficiais revelam um estranho tiroteio. As armas supostamente encontradas em posse das vítimas teriam sido disparadas 21 vezes (sem que qualquer policial tenha registrado lesão). Por outro lado, os policiais acertaram os suspeitos 43 vezes, 17 das quais nas cabeças.
Apesar dos evidentes sinais de execução, a versão só começou a ser contestada mais de 20 anos depois. Em dezembro de 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei 9.140, que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), responsável por indenizar as famílias de vítimas da ditadura. Foi quando as testemunhas começaram a falar. Uma comerciante disse ter visto quando cinco homens saíram de um veículo oficial com emblema do Incra e avançaram sobre duas mulheres que estavam em sua loja, em Boa Viagem, buscando o dinheiro da venda de roupas em consignação. Essas mulheres eram Soledad Barrett e Pauline Reichstul. Um dos homens acertou Pauline com uma coronhada na cabeça, matando-a na hora. Mesmo assim, de acordo com o depoimento da comerciante, seu corpo foi arrasado aos pontapés para dentro do carro. O balconista da livraria onde Jarbas Marques trabalhava, no centro do Recife, revelou que seu colega foi retirado à força, durante o expediente, por dois homens à paisana. Várias pessoas viram quando José Manoel foi preso por homens que desceram armados de uma camionete do Incra, em um posto de gasolina às margens da BR-104, em Toritama, no agreste pernambucano. José Manoel colocava óleo no freio do seu carro antes de pegar a estrada para assistir a um jogo do Ipiranga, clube do qual era dirigente, em uma cidade vizinha. Não houve testemunhas das prisões de Evaldo Luiz e Eudaldo Gomes, mas a essa altura já estava mais do que claro que todas as seis vítimas foram presas em locais diferentes e executadas no tal sítio, sem que qualquer tiroteio tivesse jamais ocorrido.
Todos os relatos de familiares, amigos e testemunhas, não só sobre as prisões, como também sobre os dias que as antecederam, terminaram por revelar a pessoa por trás do crime: o ex-marinheiro José Anselmo dos Santos, mais conhecido como cabo Anselmo, famoso líder da revolta dos marujos que precipitou o golpe militar em 1964, e convertido, nos anos seguintes, em agente-duplo a serviço da ditadura. Mas isso só se descobriu quando já era tarde demais – pacientemente, entre fevereiro e dezembro de 1972, Anselmo pavimentou o caminho para uma das mais violentas emboscadas de toda a ditadura militar. Cada um dos encontros que tinha com militantes de oposição à ditadura era descrito, mais tarde, ao delegado Sérgio Fleury, do Dops-SP, a quem devia obediência; e sua própria casa, em dado momento, passou a funcionar como uma espécie de central de informações da polícia, com escutas instaladas atrás de móveis e quadros. No final, quando seu disfarce ameaçou cair, Anselmo autorizou a operação policial que levaria às mortes da granja São Bento.
Das seis pessoas que delatou nesse episódio, dois – José Manoel e Evaldo Luiz – também eram ex-marinheiros, e o conheciam há pelo menos dez anos. E uma delas, a paraguaia Soledad Barrett, era sua companheira há pelo menos um ano. Anselmo e Soledad moravam juntos em uma casa próxima à Praça do Jacaré, em Olinda. Nos fundos dessa casa, o casal chegou a montar uma lojinha chamada Butique Mafalda, onde vendiam peças de artesanato e enciclopédias Barsa. A única foto sua que restou desse período está, hoje, em posse da família Barrett. Na imagem, vê-se Anselmo de bigode e cabelo longos posando na orla de Olinda. No verso, está escrito: “A la madre, para que conozca un hijo más”. Assinou como Jadiel – um dos codinomes que usava. Essa fotografia foi enviada, em abril de 1972, a Deolinda Viedma, mãe de Soledad, que na época morava em Montevidéu. Foi sua apresentação como genro.
Enquanto os seis militantes eram executados, Anselmo embarcava em um avião da FAB com destino a São Paulo com a missão – que terminaria sendo sua última como um infiltrado – cumprida. Décadas mais tarde, em 2009, Anselmo concedeu à TV Bandeirantes aquela que seria a sua primeira entrevista em rede nacional. Aos entrevistadores, ele garantiu não sentir remorso pelo que fez: “eu não levei ninguém para a morte. Eles escolheram, eles moveram-se com as próprias pernas”. Ele afirmou ter ajudado o Brasil a evitar uma guerra civil. Em outras entrevistas concedidas desde então, ele estimou ter delatado mais de 100 pessoas, sem saber precisar quantas terminaram mortas.
O tal grupo de perigosos guerrilheiros a serviço do comunismo internacional nunca chegou a disparar um só tiro. Todos os seis foram inicialmente enterrados no Cemitério da Várzea como indigentes, embora José Manoel e Soledad portassem consigo documentos oficiais em seus nomes, e Jarbas Marques tenha sido identificado pela própria mãe. Nos dias seguintes, a pedido dos familiares, foram exumados os corpos de José Manoel, Jarbas e Pauline Reichstul. Jarbas foi sepultado no jazigo da família na Igreja Rita de Cássia, no centro do Recife. Pauline foi enterrada no Cemitério dos Israelitas, na zona oeste da cidade, onde ainda hoje o seu irmão, Henri Philippe Reichstul, a visita. Mas nenhuma história de sepultamento se compara com a de José Manoel da Silva.
O seu corpo ficou enterrado no Cemitério da Várzea até o ano de 1975. Depois, sem ter como pagar pela manutenção do jazigo, e temendo que os restos mortais fossem incinerados, a viúva Genivalda desenterrou os ossos do marido com as próprias mãos, enfiou-os em um saco plástico e os enterrou em segredo sob as raízes de um pé de fruta-pão na entrada do cemitério. Pelos 20 anos seguintes, os ossos de José Manoel ficaram enterrados sob a sombra da árvore pela qual centenas de pessoas passavam, todos os dias, chorando os seus mortos. Apenas em 1995, encorajada por Amparo Araújo, fundadora da seção estadual do Movimento Tortura Nunca Mais, Geni retornou ao Cemitério da Várzea para desenterrar pela última vez os ossos do marido e levá-lo de volta a Toritama, cidade onde nasceu. Desta vez nada foi feito em segredo: havia fotógrafos para registrar o momento em que, com as mãos ainda sujas de terra, Geni posou ao lado dos osso de José Manoel – a quem o tempo inteiro ela se referia por Zezinho. Um carro do Corpo de Bombeiros levou a urna funerária a Toritama, onde seus restos mortais foram enterrados em definitivo, no dia 17 de março de 1995 – data que virou feriado municipal.
E isso não é tudo. Alguns anos depois da morte do marido, já morando em Natal, Geni foi sequestrada e estuprada por homens que se diziam da polícia e que perguntavam pelos “amigos comunistas do seu marido”. Estava vendada e tudo o que se lembra é de ter subido um lance de escadas. Ela engravidou do estupro e, embora o padre de sua paróquia a tivesse aconselhado a ter o filho, Geni foi ao Recife e fez um aborto. Nas décadas seguintes, tentou o suicídio várias vezes – em uma delas, jogou álcool em todo o seu o corpo, a ponto de molhar o próprio fósforo que tentava, sem sucesso, acender.
Hoje, aos 75 anos, Geni é um monumento à dignidade humana. É nela, principalmente, que eu penso quando vejo a onda de revisionismo histórico promovida por um sujeito sem quaisquer virtudes, alçado ao cargo mais alto da República por uma mistura de delírio coletivo, mentiras e desinformação. Ao lado dela – se por azar algum dia os seus caminhos se cruzarem – Jair Bolsonaro ficará reduzido ao que realmente é: um sujeito minúsculo, invisível a olho nu, e Geni terá de tomar cuidado se não quiser pisoteá-lo.
*Jornalista, autor de “O massacre da granja São Bento” (Cepe Editora, 2017)
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