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Há mais de 150 vacinas em desenvolvimento contra o coronavírus. Foto: Tânia Rego/AgBr
No mês passado, o Canadá fez uma compra de 75 milhões de seringas e agulhas. Para um único fabricante, os Estados Unidos já encomendou 190 milhões de unidades desses materiais. No começo de agosto, a União Europeia alertou seus países membros sobre uma eventual falta de material para a vacinação contra o coronavírus, na expectativa da chegada de uma vacina segura e eficaz nos próximos (muitos?) meses. Assim como aconteceu uma forte disputa por máscaras médicas, álcool em gel e respiradores, a concorrência por insumos para uma possível vacinação contra o coronavírus já está ocorrendo.
A Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (Abimo) estima que o Brasil vai precisar de, no mínimo, 300 milhões de seringas e agulhas. Isso se for apenas uma dose da vacina. A capacidade da indústria, segundo a Abimo, é de 50 milhões de unidades por mês. E é bom considerar todos os outros inúmeros usos desses materiais.
O Ministério da Saúde ainda não anunciou nenhuma compra relacionada à logística de uma eventual vacinação. Tampouco respondeu aos questionamentos da Marco Zero Conteúdo. É notória a capilaridade do Sistema Único de Saúde (SUS) e a expertise do Brasil em grandes campanhas de vacinação. Mas nada se equipara ao que poderá acontecer contra o coronavírus: a vacinação de mais de 210 milhões de pessoas, no prazo mais curto possível.
Por ora, não há motivos para se acreditar que o Brasil terá uma vacinação tranquila. Em abril, por exemplo, vários postos do Recife ficaram sem atender quem estava na fila para a vacina da gripe porque não havia seringas. Em nota, a Prefeitura do Recife afirmou que o que aconteceu há quase cinco meses se deu pela alta procura da vacina. Não será diferente para uma eventual vacina contra a Covid-19. A Secretaria de Saúde do Recife também informou que o estoque foi prontamente reposto.
Em campanhas de vacinação em geral, as doses são enviadas pelo Ministério da Saúde para as secretarias municipais. Já as agulhas e seringas são insumos repassados pela secretarias estaduais. Nem a secretaria municipal do Recife nem a estadual de Pernambuco foram convocadas até agora pelo Ministério da Saúde para discutir sobre a logística de uma eventual vacina.
Em coletiva no início deste mês, o secretário estadual de Saúde, André Longo, afirmou que deverá fazer uma articulação com os programas de imunização dos municípios pernambucanos. “Devemos estar nos preparando para o fornecimento de seringas e agulhas, para que a logística possa ser garantida tão logo a gente tenha a disponibilização da vacina”, afirmou. A secretaria, contudo, ainda não anunciou nenhuma compra com essa finalidade.
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Instituto Aggeu Magalhães e com ampla experiência no desenvolvimento de vacinas, Rafael Dhalia lembra que não são apenas seringas e agulhas que já estão entrando em uma disputa mundial. O próprio material para produção e distribuição das vacinas tem que ser incluído nessa estratégia. “Até o frasco que você usa no envase de vacinas é produzido de um tipo de areia especial, não são frascos triviais e já há disputa por ele”, diz. “Se for necessário mais de uma dose da vacina, como é bastante possível, serão necessários também mais frascos”.
Em nota, a sede da Fiocruz, no Rio de Janeiro, afirma que “a questão dos insumos é preocupante mas como utilizaremos os formatos que normalmente usamos para as nossas vacinas, acreditamos que o risco seja menor nesse momento. De qualquer forma, estamos trabalhando junto aos fornecedores de insumos para evitar rupturas no abastecimento”.
Outro aspecto que Dhalia chama a atenção é para as futuras filas de vacinação. “Quem estiver na linha de frente vai ter que usar Equipamentos de Proteção Individual (EPI). É preciso que as filas de vacinação sejam bem pensadas para que não se transformem em filas de contaminação. Não é simplesmente tomar a vacina e pronto. A resposta imune leva pelo menos 15 dias para fazer efeito. É preciso repassar bem essa informação para a população”, diz.
Só pela logística, a possibilidade de ter boa parte da população vacinada até fevereiro, como já foi dito pelo governador de São Paulo João Dória, é algo muito distante.
Outra discussão que o Brasil já pode ir adiantando é sobre a lista de prioridades para a tão esperada vacina. Há no Senado uma proposta sobre como deveria ser essa fila e outra para que os planos de saúde sejam obrigados a cobrir o custo da vacina.
O projeto de Lei (PL) 4.023/2020, do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), versa sobre como deve ser a distribuição de doses de vacina e também a transferência de verbas federais para a compra por estados e municípios.
O PL propõe que estados com as maiores taxas de hospitalizações e de óbitos por Covid-19 e por síndrome respiratória aguda grave (srag) tenham prioridade no recebimento. Locais com poucas unidades de saúde e com mais percentual de grupos vulneráveis (hipertensos, diabéticos, idosos) também andariam mais rápido na fila.
Pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante da Rede Análise Covid-19, Mellanie Fontes-Dutra afirma que estabelecer a ordem de vacinação é uma discussão urgente. “Acho que necessariamente deveriam ter prioridade grupos de riscos e profissionais da saúde, com a extensão depois para a população em geral. Sobre a questão dos planos de saúde, como estamos em uma crise, deveria ser oferecida nos postos de saúde, para todas as pessoas. Quanto mais cedo isso for discutido e ficar claro para a população, melhor para se organizar”.
Há muitas questões sobre a vacinação em aberto, esperando as respostas da ciência. Não se sabe ainda, por exemplo, se quem já teve a doença vai precisar se vacinar. É esperado que a fase 3 dos testes defina quantas doses serão necessárias. E ainda se a vacina terá que ser atualizada anualmente, assim como acontece contra o vírus da influenza.
Outro questionamento ainda sem resposta é se uma mesma vacina servirá para todos os países. Por enquanto, o coronavírus não tem demonstrado mutações significantes.
“Acredita-se que uma única vacina poderá ser usada mundialmente. Mas se vai precisar de atualização frequente é outra história. Pesquisas têm mostrado que a resposta de anticorpos tem rápido declínio, mas também que as células T têm um desempenho importante na imunização contra o coronavírus. É preciso mais estudos”, diz o pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães, da Fiocruz, Gabriel Wallau, que coordenou um estudo que sequenciou o genoma de 39 amostras colhidas em Pernambuco.
O sequenciamento mostrou que aqui no estado prevalece a cepa europeia do vírus. Apenas uma amostra era asiática. Esse sequenciamento pode ajudar na fabricação e atualização de uma futura vacina, com informações específicas sobre o tipo de vírus que circula no estado. A pesquisa agora entre em segunda fase, com o sequenciamento de mais 60 amostras do vírus.
Sem ter feito isolamento adequado, sem políticas integradas, sem mensagens fortes ou publicidade do Governo Federal sobre estratégias de prevenção, o Brasil mantém há semanas uma inaceitável média de mil mortos por dia. E isso em plena abertura das atividades econômicas. A vacina parece, cada vez mais, ser a única saída para o controle da doença no Brasil.
Não faz muito tempo o diretor geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, fez um desabafo de que talvez nunca se tenha uma vacina para o coronavírus. É, sim, uma possibilidade. Mas com investimento na casa dos bilhões, mais de 150 vacinas em testes, incluindo seis delas em fase 3, a comunidade científica está esperançosa.
Duas das mais promissoras e avançadas vacinas contra o coronavírus estão sendo testadas no Brasil. A ChAdOx1 nCoV-19, da Universidade de Oxford com o laboratório AstraZeneca, e a Coronavac, da chinesa Sinovac. O mais importante é que as duas têm acordos de transferência de tecnologia e poderão ser fabricadas no Brasil. A britânica é com a Fiocruz e a da Sinovac com o Instituto Butantã.
Ambas estão na fase 3 de testes, a última antes de serem submetidas ao escrutínio dos órgãos de controle, a fase 4. Essa fase atual envolve milhares de pessoas em testes duplo cegos, com uma variação maior de idade e de etnia.
A carioca Jaqueline Desiderio faz parte dos 6 mil voluntários que participam do teste de Oxford no Brasil. Ela não sabe se recebeu a vacina candidata contra o coronavírus ou uma já utilizada contra a meningite.
Jaqueline conta que após a vacinação recebeu comprimidos de paracetamol para tomar a cada 6 horas e que chegou a ter febre de 38 graus, certa fadiga e dor no local da aplicação. Reações esperadas para qualquer vacina. “Durou apenas um dia. Logo fiquei boa. Acredito que recebi a vacina do corona mesmo. Mas se eu recebi a de meningite, vou ter prioridade na vacinação, caso essa vacina de Oxford seja aprovada”, contou Jaqueline para a Marco Zero.
No meio de tanto otimismo e resultados positivos, fica a dúvida: o que pode dar errado em uma vacina quando ela já se encontra em fase 3? Muita coisa. Mellanie Fontes-Dutra cita que apenas metade das vacinas que chegam nessa fase são aprovadas.
Quando se fala de erro em vacina, um caso recente geralmente é trazido à discussão: a vacina contra a dengue do laboratório Sanofi Pasteur, a Dengvaxia.
Depois de cumpridas todas as fases, aprovada pelos órgãos regulatórios (inclusive no Brasil, pela Anvisa), a vacina apresentou um efeito inesperado: pessoas vacinadas e que jamais haviam tido um dos quatro tipos de dengue, quando eram infectadas pelo vírus desenvolviam sintomas muito mais graves, geralmente levando a uma dengue hemorrágica.
Ao invés de proteger, a vacina gerava uma reação exacerbada do sistema imunológico.
Essa reação, porém, só foi notada quando a vacina já estava há quase dois anos no mercado e a levou a ter seu uso indicado apenas para pessoas que já haviam se infectado por algum dos quatro subtipos do vírus da dengue.
É possível que algo assim aconteça com uma vacina contra o coronavírus?
“Queria dizer que não, mas pode”, responde o pesquisador Rafael Dhalia. “Isso está sendo estudado. Temos circulando quatro tipos de coronavírus que causam resfriados: 229e, nl63, oc43 e hku1. Pode ser que quem já teve esses resfriados tenha uma resposta desproporcional ao novo coronavírus. Pode ser também o oposto: que eles sirvam como uma imunização cruzada”, diz Dhalia, salientando que essa reação vai depender também do tipo de tecnologia usada na vacina – com vírus atenuado seria mais propensa a essa reação, o que não é o caso das vacinas de Oxford (vetor viral), nem da Sinovac (vírus inativado).
A ilusão da vacina russa – Vacinas obrigatoriamente levam tempo. E isso não diz respeito a investimento: é que é preciso fazer testes em milhares de pessoas para afirmar não só sua eficácia, mas também sua segurança.
Então, quando o presidente russo Vladimir Putin anunciou nesta semana a autorização para a vacina do Instituto Gamaleya, da qual não há nenhuma publicação sobre ela e que foi testada em apenas 38 pessoas, a comunidade científica acolheu a informação com amplo ceticismo. A Rússia já quer iniciar a vacinação em massa em outubro.
O acompanhamento de uma vacina comum na terceira fase pode chegar a seis anos. No caso do coronavírus, muitos estudos preveem um ano ou 18 meses. A Rússia começou a testar a vacina há apenas dois meses. “Todo mundo vai querer dizer que tem a vacina primeiro. Simplesmente não há tempo para uma vacina já estar pronta. É uma ilusão, assim como a cloroquina, a ivermectina. O ser humano espera um milagre que vai salvar a humanidade, mas não é assim que as coisas funcionam. Estão apenas iludindo a população desesperada por uma vacina”, diz Dhalia.
Mellanie Fontes-Dutra considera o anúncio russo uma temeridade. “É uma vacina sem transparência e sem a legitimidade dos órgãos que regulam e validam o método científico. Não há depósito de fase 3 dessa vacina. Isso levanta rumores se não é propaganda do governo russo, se não é manobra política. Não é sobre chegar primeiro ou alguém roubar a vacina de alguém, é sobre a gente driblar uma crise de emergência mundial. É algo muito sério”, reforça.
Apesar do ceticismo internacional, Paraná e Bahia já anunciaram acordos com a Rússia para compra e fabricação da vacina russa. Mas só devem chegar ao Brasil no segundo semestre de 2021. A Anvisa afirmou que ainda não há como avaliar a vacina russa, já que há não há documentos.
Vale lembrar que vacina é sempre sobre coletividade. Nenhuma vacina é 100% eficaz. Sempre vai existir indivíduos que, mesmo vacinados, não vão gerar resposta imune. Esse percentual pode ser de até 20% em vacinas com longos estudos. Em uma vacina emergencial, como é no caso do coronavírus, porcentagens até maiores poderão ser aceitas.
“Ou você protege todo mundo, ou ninguém está protegido”, ressalta Dhalia. A OMS iniciou em abril um consórcio global para garantir a distribuição da vacina com preço de custo e evitar uma disputa selvagem – convidado para o grupo inicial, o Brasil declinou, mas aderiu em junho à iniciativa. Várias fundações internacionais, como a de Melinda e Bill Gates, já estão financiando 12 pesquisas, que, se derem certo, terão doses doadas para países mais pobres.
Mesmo assim, falta dinheiro para a ação: a expectativa era ter até o final do ano verbas para 2 bilhões de doses, mas só foram arrecadados até agora o suficiente para 300 milhões de doses.
Ainda que ações como testes em massa, rastreamento, distanciamento social e o uso de máscaras possam frear a disseminação do coronavírus, é uma vacina que poderá dar uma resposta segura para a volta de algo parecido com o que se tinha no mundo antes do surto de Wuhan em janeiro.
Quando isso irá acontecer?
Mellanie Fontes-Dutra acredita que, no mínimo, no segundo semestre de 2021 haverá no Brasil uma população substancialmente vacinada. “Dependendo da vacina que se provar eficaz, o Brasil não vai estar entre os primeiros países a recebê-la”, comenta.
Para Dhalia, “na maior esperança possível”, em dois anos. E mesmo nesses prazos mais realistas, distante das promessas dos políticos, a existência de uma vacina eficaz será um feito extraordinário da ciência.
Por isso, Dhalia afirma que pesquisas em outras direções são necessárias, para esta e para as pandemias futuras. “Vacina é louvável, mas temos que investir em pesquisas de drogas antivirais. Ainda não se conseguiu fazer uma vacina para o HIV, e o que é mais eficaz e salva milhares de vidas é o coquetel de remédios. Mais imediato ainda é o investimento em drogas para a inibição da resposta inflamatória. A maioria das pessoas com coronavírus morre pela resposta imunológica, a cascata de citocinas. Já existem drogas em testes para inibir essa reação. Isso é para hoje. E o mais importante de tudo é continuar prevenindo: distanciamento, higiene, uso de máscaras. Isso vai barrar hoje a infecção. Esses quatro pilares juntos (vacina, antivirais, moduladores de imunidade e prevenção) é que vão debelar a infecção. Todo o resto é especulação”.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org