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Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo
É evidente que atrás de todo e qualquer índice social e econômico há pessoas com suas histórias e especificidades que os números são incapazes de retratar, mas quando se trata de dados sobre a comunidade transgênero no Brasil é possível dizer que a realidade vivida por estas pessoas é, em sua maioria, invisível aos olhos dos principais institutos de estatística. Quando uma mulher e um homem cisgênero (indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu) desempregados se deparam com a taxa de desocupação de 12,4% do trimestre fechado em fevereiro, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), eles se veem nestes números e sabem, ao menos, o básico para continuar tentando sair do grupo de 13,1 milhões da população desocupada. Mas como é esta busca para mulheres e homens trans que estão desempregados?
Não há acompanhamento de dados de empregabilidade desta parcela da população. Organizações sociais e redes de acolhimento realizam monitoramentos e produzem relatórios, mas continuam cobrando do Estado uma posição mais efetiva. A procura por trabalho anda de mãos dadas com a luta por sobrevivência no país onde mais se mata transexuais. Isso porque esta parcela da população recorre muitas vezes à prostituição como alternativa à falta de espaço no mercado de trabalho. Esta alternativa, no entanto, inclui riscos à vida e à saúde e está ainda mais impregnada pela discriminação e a objetificação às quais os corpos trans e travestis são submetidos. Para conseguir emprego, trans e travestis precisam estar vivos e, para continuar vivendo, eles precisam ter o direito garantido para fazer valer oportunidades de estudo, qualificação e emprego.
Segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), 167 transexuais foram mortos no Brasil entre 1º de outubro de 2017 e 1º de outubro de 2018, mantendo o país no primeiro lugar no ranking de 72 países. A pesquisa, que é divulgada anualmente, evidenciou o México em segundo lugar com 72 vítimas, seguido dos Estados Unidos com 28. Já de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 179 pessoas trans e travestis foram assassinadas no país em 2017 e 70% destas vítimas eram profissionais do sexo. Ainda segundo a Antra, 90% da população trans brasileira tem na prostituição a fonte única de renda. Estes índices, que não partem do Estado, começam a ser desenhados desde o período em que estas pessoas estão cursando a educação básica, como mostra uma pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em que 82% dos transexuais disseram não ter concluído os estudos.
De acordo com relatório do Ministério dos Direitos Humanos, atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Disque 100 recebeu cinco denúncias de violência contra travestis e duas contra transexuais em Pernambuco, no ano de 2016. Ongs e movimentos sociais lembram que a invisibilidade do segmento no estado gera subnotificação e não expressa a realidade vivida por este público. No âmbito do trabalho, a situação é parecida, mas por outras questões. A procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT-PE), Débora Tito, conta que são poucas as denúncias de discriminação de trans e travesti. “São como as pessoas submetidas ao trabalho escravo. Muitas pessoas trans e travestis acreditam que devem passar por isso, merecem passar por situações de discriminação. A diferença é que são ainda mais invisíveis.”
A coordenadora-geral da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE), Chopelly Santos, reforça a ideia de que a ausência de trabalho e a violência contra esta parcela da população estão intimamente ligadas. “A falta de empregabilidade e o fato de serem discriminadas levam estas pessoas para o submundo onde não há muitas coisas boas para ofertar. Lá estão a prostituição e o tráfico de drogas, mas quem se importa com as vidas trans e travestis? Um traficante não se importa de matar uma dessas pessoas porque sabe que vai ficar impune.”, explica. Chopelly também aponta para a falta de legislação que atenda às demandas de emprego e garanta a inclusão e a adaptação deste segmento no mercado de trabalho.
Com análise semelhante, a primeira advogada trans das regiões Norte e Nordeste e codeputada das Juntas (PSOL) na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), Robeyoncé Lima, afirma que para legislar e construir políticas públicas voltadas para as demandas da população trans e travestis no mercado de trabalho é necessário ampliar a discussão, porque “não dá para falar sobre emprego sem discutir segurança pública e a proteção destas vidas”.
A parlamentar chama atenção para a necessidade de adequação do mercado de trabalho à população trans e travesti que muitas vezes vive uma “rotina noturna, fora do horário comercial”. “Imagina o quanto é difícil uma trans ou uma travesti que passa mais de trinta anos se prostituindo adaptar-se à luz do dia. De uma hora para outra chega uma empresa e diz: ‘Parabéns, querida, você foi contratada e não precisa mais se prostituir. Chegue aqui às 6h da manhã’. Precisamos trabalhar o empoderamento destas pessoas para que elas saibam que não precisam se submeter às condições ruins de um emprego e as empresas precisam enxergar a realidade destas pessoas.”
O acesso desta população ao emprego também passa pela inclusão nos ensinos básico e superior. Ação pioneira no país, a Diretoria LGBT da Universidade Federal de Pernambuco foi instalada no intuito de combater a lgbtfobia no ambiente acadêmico. Segundo a assistente administrativa em educação, Geovana Borges, as ações realizadas na diretoria são, em sua maioria, voltadas à assistência ao público alvo e para a formação de servidores no sentido de prepará-los para o atendimento às pessoas LGBTI+.
“Pretendemos estabelecer parcerias com empresas para facilitar a inclusão no mercado de trabalho através da diretoria, mas nossa equipe ainda é pequena e está em processo de construção. Atualmente priorizamos a assistência aos alunos e queremos expandir para os campus da universidade que estão localizados no interior do estado. O primeiro passo é interiorizar nossa atuação para depois ampliá-la. É necessário que os movimentos sociais e os alunos LGBTIs se façam sempre presentes nessa construção.”, afirma Geovana.
Durante a produção desta reportagem foram solicitadas informações ao Governo do Estado sobre ações, projetos e políticas públicas voltadas para o público trans e travesti no intuito de esclarecer qual o espaço desta pauta na atual gestão estadual. As secretarias do Trabalho; de Justiça e Direitos Humanos; da Mulher; e da Educação foram acionadas, mas só as pastas do Trabalho e da Educação deram retorno. A Secretaria do Trabalho, Emprego e Qualificação de Pernambuco afirmou que há apenas um projeto voltado para o público em questão, chamado “Fortalece a Igualdade”, focado na população negra LGBTI+, que visa capacitar pessoas da Região Metropolitana do Recife (RMR) e das cidades de Caruaru, Petrolina e Garanhuns.
Já a Secretaria de Educação de Pernambuco se pronunciou por meio de nota:
Desde 2017, estudantes da Rede Estadual podem utilizar o nome social nas unidades de ensino públicas estaduais de Pernambuco. A Instrução Normativa nº 02/2016, elaborada pela Secretaria Estadual de Educação e publicada no Diário Oficial do Estado em 17/11/2016, garante que o nome social seja usado na matrícula, fichas de frequência e cadernetas eletrônicas.
A medida é mais uma ação do Governo de Pernambuco que visa incluir e respeitar todas as especificidades humanas dentro do âmbito escolar por meio de formações e diversas ações pedagógicas para estudantes, educadores e educadoras, tornando as escolas do Estado mais inclusivas, acolhedoras e plurais.
Quando solicitada, a Prefeitura do Recife (PCR) ressaltou a realização de projetos voltados para várias áreas, como é o caso do Enem para Todos, a campanha Recife sem Preconceito e Discriminação e o Centro Municipal de Referência em Cidadania LGBT – serviço de orientação sobre os Direitos Humanos e atendimento especializado a vítimas de discriminação e violência homofóbica.
A Secretaria Nacional do Trabalho, antigo Ministério do Trabalho, que hoje é incorporada ao Ministério da Economia, foi contatada e não deu retorno até a publicação desta matéria. Há cerca de duas semanas, a Marco Zero Conteúdo vem ouvindo organizações e pessoas ligadas à causa trans e travesti, buscando entender a realidade destas pessoas e se aprofundar no assunto. Dentre as reivindicações mais recorrentes, está a falta de efetividade das ações que visam incluir o segmento no mercado de trabalho. A maioria destas pessoas ainda não se sente ouvida e nem priorizada pelo Estado.
Para o professor do Departamento de Sociologia da UFPE e pesquisador nos programas de pós-graduação em Sociologia e Direitos Humanos, Gustavo Gomes, o combate ao preconceito e à discriminação contra a população trans deve sempre nortear a construção das políticas públicas. Os governos devem se sensibilizar internamente para esta questão e “incentivar a diversidade”. Em uma experiência de trabalho realizada junto ao Centro de Combate à Homofobia, Gustavo se deparou com a dificuldade de sensibilização dos órgãos governamentais, principalmente os das áreas de trabalho, emprego e qualificação. “Quando começamos a nos questionar o porquê dessas barreiras, percebemos que há um teto imaginário social de que a população trans e travesti está presa ao chamado ‘mundo da marginalidade’, a prostituição e o tráfico de drogas. A crença de que as temáticas desta população não refletem na discussão sobre emprego.”, ressalta.
Gustavo também lembra que o trabalho de sensibilização deve ser fomentado dentro do setor empresarial. “As pessoas trans e travestis que rompem com o ciclo de abandono da escola, falta de acesso aos cursos profissionalizantes e ingressam no mercado de trabalho continuam a sofrer com a discriminação e o preconceito. Onde é que elas são colocadas? Um dos setores que mais empregam a população é o telemarketing, porque é um trabalho em que você está atrás de um telefone e não é visto. Isso é preconceito, é discriminação.”.
No dia 26 de março deste ano, a reportagem acompanhou a penúltima aula do curso de culinária do projeto “Diversidade na Cozinha”, realizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT-PE) em parceria com a organização Gestos e a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) e que teve como público alvo a população LGBTI+. Durante a aula do módulo Ícones da Cozinha Pernambucana, a Marco Zero conheceu um pouco da história de quatro jovens transgênero que vêm de lugares diversos e têm trajetórias de vida distintas, mas se assemelham no preconceito vivido e na esperança de dias mais acolhedores.
“Quero quebrar este padrão de que toda transexual tem que ser cabeleireira ou prostituta”, conta Raab Ariel Maia, de 24 anos, moradora da comunidade Entra Apulso, na Zona Sul do Recife. Se assumiu mulher trans há cerca de um ano, mas sofre lgbtfobia há muito mais tempo. Atua como cabeleireira atendendo aos clientes a domicílio ou em sua própria casa, porque prefere ser autônoma a buscar emprego fixo em estabelecimentos que a discriminem por gênero e classe.
“Salões de beleza são lugares onde pessoas trans conseguem trabalho, mas depende do salão. Se o público for um pouco mais conservador, eles não vão querer uma mulher trans atendendo, sabe? É uma situação frustrante, constrangedora e desnecessária. Eu acho que nós brasileiros estamos numa fase de muito retrocesso por não enxergarmos as diferenças como algo normal. Esse é o tipo de pensamento que afasta as pessoas e impõe muros onde não deveriam existir.”
Após o curso Diversidade na Cozinha, Raab pretende empreender no ramo da culinária, produzindo doces para vender.
Ainda na infância, Luan Júnior, hoje com 28 anos, tinha dois desejos: ser um menino e aprender a cozinhar. Há seis anos, ele realizou o primeiro sonho e agora teve a oportunidade de saber se a gastronomia é o caminho que quer seguir. Assim como Raab, Luan se viu em situações nada acolhedoras na busca por emprego e decidiu trabalhar por conta própria. Reside em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR), e vende água na sua comunidade. Não pensa em deixar de ser autônomo.
“Eu acabei optando por vender coisas e trabalhar para mim mesmo. Juntei a necessidade com o meu jeito de ser, porque empreender é algo da minha família. Quando eu tinha cerca de oito anos, eu e meus primos colhíamos as goiabas no quintal da minha vó e colocávamos para a venda. Desde esse tempo eu sabia que não era uma menina, mas sim um menino. Poderia ter iniciado o tratamento hormonal muito antes.”.
Mulher trans e ilustradora, Mariana Araújo, de 20 anos, segue em busca de se realizar profissionalmente com consciência de que pode mover as engrenagens do mundo a partir de suas experiências. Diz que não viveu discriminação na busca por trabalho porque desistiu por um tempo de arranjar emprego. “Me diziam sempre que eu não conseguiria emprego por ser trans, diziam que minha única saída era a prostituição. Eu tinha muito medo, mas hoje eu quero inspirar outras pessoas e quero mostrar que nós somos capazes de realizar o que quisermos.”.
Há três anos, William de Lima, 24, deixou a ilha de Itamaracá para morar no Recife por causa de problemas com a família. Neste período, cursava Serviço Social na UFPE e passou a vender comidas veganas por conta própria, para se sustentar na capital pernambucana. As dificuldades eram muitas, inclusive dentro da universidade onde sofria discriminação por ser um homem trans. No curso de culinária, William vê a oportunidade de conseguir um emprego estável e tocar a vida.
“Eu sofria transfobia quando cursava Serviço Social e quando procurava estágio. Fui o aluno que mais demorou para estagiar, porque eu levava para as empresas o meu currículo com o nome social e o da certidão. Ao mesmo tempo, me confundiam com uma mulher lésbica porque não faço tratamento hormonal e perguntavam o porquê do nome diferente.”, lembra.
Dos 26 participantes do curso, quatro conseguiram vagas de trabalho. Entre eles estão Mariana e William. Segundo a procuradora do MPT-PE, Débora Tito, o Diversidade na Cozinha faz parte de um projeto nacional voltado para a empregabilidade das pessoas LGBTI+. “A nossa Coordenadoria de Discriminação identificou que além das ações para pessoas com deficiência, pessoas negras e para mulheres, a gente precisa de um programa específico para a população LGBT. São os que mais precisam, os que tem a longevidade menor e sofrem mais preconceito e violência no trabalho.”.
Em Pernambuco, O MPT financiou o projeto a partir de uma multa paga por uma empresa condenada pela Justiça. “O Ministério faz um apanhado dos valores correspondentes a inquéritos e ações na Justiça. Ao invés de mandar as multas para o Fundo de Amparo ao Trabalhador, em que a gente não sabe para onde será destinado o dinheiro, nós convertemos para a comunidade lesada.”, explica Débora.
Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com