Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Após dois anos sem carnaval, caboclinhos resistem com cultura indígena e de terreiro

Maria Carolina Santos / 27/01/2023

Crédito: MCS/MZ Conteúdo

Nem durante guerras e outras pandemias, como a da gripe, no início dos anos 1920, houve dois anos seguidos sem carnaval. O devastador impacto da covid-19 obrigou a cultura popular a se ausentar das ruas, mas o carnaval da retomada já está batendo na porta. Os caboclinhos e as tribos de índios, agremiações que surgiram no final do século XIX, voltaram a se apresentar no Recife na noite da terça-feira (24), em um encontro de baques (uma formação sem dançarinos) no Pátio de São Pedro promovido pela Prefeitura do Recife. Foi o primeiro encontro de caboclinhos desde o carnaval de 2020.

“A pandemia foi muito difícil pra gente que gosta e vive da cultura. Mas graças a Deus aliviou essa doença. Não acabou ainda, mas aliviou, e hoje a gente pode estar aqui e vai ter carnaval”, celebra Janailson Cipriano da Silva, que em 2015 refundou o caboclinho Urubá.

Como quase sempre acontece na cultura popular, os costumes, a música e a dança dos caboclinhos são repassados por meio da observação e dos ensaios nas comunidades.

Carijós com o caracaxá, um instrumento exclusivo dos caboclinhos. Crédito: MCS/MZ

Foi com apenas seis anos de idade que Moisés José da Silva, conhecido como Carijós, 57 anos, começou a dançar no Canindé de Camaragibe. Hoje toca o caracaxá, um instrumento pesado de metal que ressoa como um chocalho e é encontrado apenas no caboclinho. “Minha madrinha era mãe de santo e me levou para o cabocolinho”, conta, usando um sinônimo da palavra caboclinho.

Ele participa de dois grupos e ensina os mais jovens a dançar e tocar. “O mais difícil para dançar é a tesoura, da guerra (um dos quatro ritmos do caboclinho), o ‘molinho’ da perna para o cara trocar é muito difícil”, ri Moisés, que já foi três vezes campeão do carnaval com a Tribo Carijós.

Quem dança ou toca no palco também ajuda nos bastidores a confeccionar as fantasias e em todo o resto, como lanches e transporte. Rosimere Nunes de Souza, 38 anos, conta que está no caboclinho “há 38 anos”. “Desde pequena danço, costuro fantasia, faço de tudo um pouco. Eu via o cabocolinho no carnaval quando minha mãe me levava pra cidade e achava bonito. E falava ‘eu vou entrar, mainha!’, e ela dizia: ‘mas tu não sabe nem dançar’, eu respondia ‘Eu aprendo!’. E aprendi, só olhando. Agora eu virei professora e ensino meu grupo”. São 22 meninas que dançam no grupo de Rosi. “É o mais chamado pelos cabocolinhos. Eu já fechei o pacote com vários grupos esse ano para dançar no carnaval”, diz ela, que faz parte do Arapahos e do Tupiniquim.

Até instrumentos são confeccionados pelos próprios integrantes. “Um gaiteiro que é um gaiteiro faz sua própria gaita”, diz Luciano dos Santos, ou Luciano Gaiteiro, como prefere, segurando a flauta reta, chamada de gaita, que ele fez com cano de PVC e madeira de cajá. Ele trabalha como porteiro, vigia e auxiliar de serviços gerais, mas se dedica ao caboclinho desde a adolescência. “Somos bem dizer uma família. A cultura da gente é essa”, diz Luciano, que integra a Tribo Indígena Kapinawá, da Linha do Tiro.

O pátio de São Pedro quase vazio para as apresentações não esmoreceu Luciano Gaiteiro, que lembrou da comunidade onde mora. “A Linha do Tiro é toda pelo Kapinawá. A comunidade ama essa tribo. Quando a gente vai pra Federação (como os grupos chamam o desfile no carnaval), a maioria dos aplausos é de gente de lá e a gente fica muito feliz”.

Custos dos caboclinhos são altos

Presidente da tribo de índios Arapahos e integrante do caboclinho Tupiniquins, esse fundado em 1922, João Batista foi um dos criadores do Encontro de Baques, ao lado, entre outros, do Cacique Luna, já falecido. Ele conta que para levar um caboclinho para o carnaval são investidos pelo menos R$ 40 mil.

A verba que a prefeitura dá todo carnaval é de acordo com a categoria em que a agremiação está: se é do grupo especial ganha mais e assim sucessivamente. Neste ano, o Arapahos vai receber R$ 13 mil, divididos em duas parcelas. “O resto a gente da diretoria corre atrás. Faz bicos para conseguir o dinheiro”, conta João.

O que pesa muito no orçamento são as fantasias, que são feitas majoritariamente de penas e lantejoulas. Um quilo de pena do tipo plumas custa entre R$ 3 mil e R$ 4 mil. As penas de Ema, mais baratas, saem por cerca de R$ 1,8 mil o quilo. “Hoje mesmo fui no centro e gastei R$ 9 mil em três quilos de pena”, conta Taisa Coutinho Souza, 30 anos, presidenta do Caboclinho Potiguares de Goiana. “Depois de dois anos parado, tá todo mundo ansioso, mas estamos na luta e na guerra. Recebemos R$ 17 mil da Prefeitura do Recife e R$ 10 mil da Prefeitura de Goiana, mas os custos vão muito além. Dá mais de R$ 50 mil. É o prazer de estar no carnaval que compensa tudo”, conta Taísa.

O grupo dela foi montado em 2008, em uma homenagem a mãe, Júlia. “A gente dançava em outros caboclinhos. E o sonho da minha mãe era ter uma agremiação um caboclinho ou um índio. E quando ela morreu, a gente resolveu fundar o caboclinho em homenagem a ela”, lembra.

Neste ano, a Prefeitura do Recife aumentou em 40% a verba para as agremiações carnavalescas e deve aumentar em mais 10% no próximo ano. Foi um acréscimo muito bem vindo, até porque os preços aumentaram bastante desde o último carnaval, em 2020. “Tudo ficou mais caro. Na época, a pena do tipo pluma era R$ 1,2 mil o quilo e hoje chega a até R$ 4 mil. Tá mais pesado. Mas a gente tira do nosso pão de cada dia para investir”, diz Janailson, da Urupá, que recebe R$ 8,4 mil da Prefeitura do Recife.

O músico, professor e pesquisador Climério de Oliveira Santos diz que por conta dos altos custos e do fato da maioria dos grupos receber apenas a subvenção das prefeituras ou cachês de baixo valor, as agremiações ficam muito vulneráveis. “Há casos em que os grupos ficam na mão de agiotas, que até se apoderam da agremiação ou se forçam como sócios”, alerta.

Climério conta que já presenciou grupos que foram se apresentar no carnaval e não havia transporte para levá-los nem água para beber. “E não é algo de uma única gestão da prefeitura. Atravessa as gestões. O tratamento dado aos caboclinhos e tribos de índios é algo que se pode resolver, mas não se resolve porque não se estuda, não se tem interesse. É preciso sensibilizar os prefeitos para essa questão. Dar um cachê de R$ 4 mil para um grupo que leva 50, 100 pessoas para uma apresentação e milhares de reais para um DJ é inconcebível. É muito melhor ter respeito com as tradições e reduzir essa desigualdade”, afirma.

O culto da Jurema Sagrada

Mesmo quando ainda não havia vacina contra a covid-19, as agremiações não deixaram de cumprir a parte religiosa. Por origem e tradição, os caboclinhos são ligados ao culto afro-índigena da Jurema Sagrada. Mas muitos grupos hoje se dizem seculares: com o passar de gerações há católicos e evangélicos à frente dos grupos.

Para Guedes, do caboclinho Canindé do Recife, o mais antigo em atividade no Recife, fundado em 1897, não há como dissociar o caboclinho do culto da Jurema. “Todo caboclinho tem uma ligação com essa cultura indígena, afro. O caboclo é o traçado e esse traçado está presente em todos eles de alguma forma”, afirma.

Luciano Gaiteiro não sai para o carnaval sem a bebida da jurema. Crédito: MCS/MZ

Para o carnaval dos caboclinhos, as obrigações são realizadas em florestas ou matas. Há grupos que chamam um pai ou mãe de santo para fazer a obrigação, outros que fazem sozinhos. A obrigação mais falada é a entrega de frutas, carne de bode e carne com mel para as entidades espirituais da Jurema, os índios e os caboclos.

Fundado em 1982, o Kapinawá tem uma família católica na direção e não faz as obrigações da jurema. Isso como grupo, o que não impede os integrantes de seguirem as tradições. Luciano Gaiteiro também tem um terreiro, onde é pai de santo. Todo ano ele faz as oferendas para sair para o carnaval.

“Saio muito preparado. Faço para o meu caboclo. São muitas demandas de caboclo no carnaval, é caboclo querendo derrubar caboclo. A gente tem que estar abrindo o olho”, diz. “A maioria das pessoas que tem caboclinho é espiritual. Mas tem gente que dá de comer a caboclo, tem gente que não dá. A tribo da gente não usa dessa maneira, mas eu, como gaiteiro, tenho meu caboclo Oxóssi (orixá associado às matas e caças), tenho que dar de comer a ele para ir para a rua no carnaval. Muitas frutas, carnes, carne com mel para os caboclos e os índios da minha jurema. É a proteção que peço para mim e para minha tribo”.

Luciano também segue a tradição da bebida da Jurema, que é tomada em grupo sempre antes das apresentações. Os preparos variam, mas uma das mais comuns é a chamada de jurema preta e leva a casca da árvore que dá nome à bebida, mel, vinho branco, cachaça, caju roxo e de 14 a 21 ervas. “São sementes muito misteriosas, de longe, que a gente vai buscar. É uma bebida muito forte. Se você tomar um golinho dela, esquenta logo a orelha. Sobe pra cabeça. É uma bebida que todos os participantes deveriam tomar. Antigamente tomavam, mas hoje tudo é moderno e tem gente que não usa. Hoje em dia o povo vê cerveja, vê cachaça e aí não faz a jurema. Eu mesmo só tomo a jurema. Como sou gaiteiro, levo minha garrafinha. Fica muito gostosa”, conta.

Tribos de índios ou caboclinhos?

Os caboclinhos são mais numerosos e tradicionais em Pernambuco, mas há agremiações parecidas em estados como a Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte e Bahia. Por aqui, todas as agremiações competiam no carnaval na categoria caboclinho. Até que um paraibano mudou a história.

Na Paraíba, Perré tinha uma agremiação com o nome Índios Juvenil. Ao conhecer o carnaval do Recife, ele se mudou para cá, trouxe uma parte do seu grupo e aqui fundou a Tribo de Índios Tupi-Guarani. “Foi uma ascensão meteórica. Já no primeiro ano ele ganhou o concurso do carnaval”, conta o pesquisador Climério de Oliveira Santos.

Perré com a folclorista Katarina Real em 1961. Crédito: Acervo Fundaj

As vitórias e o brilhantismo da dança de Perré atraíram certo reconhecimento. No início da década de 1960, a folclorista norte-americana Katarina Real, que documentou e escreveu sobre o carnaval pernambucano, ficou encantada com a dança de Perré. Em 1961, ela foi coroada como madrinha da agremiação. É desse momento uma das poucas fotos que ainda permanecem de Perré, do acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Além do reconhecimento, Perré atraiu também inveja. Ninguém queria competir com ele no carnaval. E foi aí que começou uma separação, que até então era inexistente na Federação Carnavalesca de Pernambuco: caboclinhos em uma categoria, tribo de índios em outra. Com isso, os grupos do Recife não concorriam na mesma categoria de Perré. As diferenças entre um e outro, naquela época, eram muito sutis. “Até para justificarem essa divisão, os grupos começaram a fazer distinções. Antes, era tudo misturado. Tem grupos que se chamam de tribo, como a Tribo de Índios Canindé, e são caboclinho”, explica Climério.

Com o tempo essas distinções ficaram um pouco mais nítidas. As tribos de índio hoje usam mais penas de ema e de pato. Os caboclinhos, penas de rabo de galo e pavão. Nos instrumentos, as tribos chamam o grande chocalho de metal de maraca e os caboclinhos, de caracaxá. As tribos geralmente não usam a preaca, aquele arco e flexa de madeira que faz som de estalo, mas a lança e a machadinha, entre outras pequenas diferenças.

Outra diferença é o entrecho dramático que as tribos de índio fazem nas apresentações. Uma parte teatral, em que os dançarinos atuam em uma cena. Climério conta que alguns caboclinhos também tinham o seu entrecho dramático nas apresentações, mas foi descontinuado com o tempo.

Os antigos donos de caboclinhos ouvidos por Climério – que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o tema e o livro Batuque Book: Cabocolinho – falaram que Perré tinha uma dança incrível. “Mas assim como ele teve uma ascensão meteórica, também teve uma queda rápida. O grupo dele passou a ser preterido e ele foi embora do Recife durante essa celeuma no meio carnavalesco. Pouco depois, ele faleceu”, conta. Mas Perré nunca será esquecido: um dos toques do caboclinho é chamado de perré, em homenagem a ele.

Desvalorização do caboclinho é histórica

Entre as manifestações culturais que têm seu ápice no carnaval pernambucano, o caboclinho é uma das mais vibrantes, fortes e coloridas. As apresentações no desfile do carnaval chegam a juntar mais de cem pessoas dançando e tocando. Mas ao contrário do frevo e do maracatu, não carrega o mesmo reconhecimento, nem nunca teve seu momento de furar a bolha das comunidades. Não se vê, por exemplo, oficinas de caboclinho no Recife Antigo, como se vê de maracatu.

Para Climério, o que o maracatu teve e o caboclinho não teve foi articulação política e social. O maracatu, que também tem uma longa história de perseguição, conseguiu se colocar com importância cultural principalmente pela atuação de Maria Júlia do Nascimento, a Dona Santa, rainha do maracatu Elefante.

“Era uma Mãe de Santo muito habilidosa politicamente, uma liderança forte dentro e fora do carnaval. Com ela, e outras pessoas, se começou uma valorização dos terreiros. Era uma época, nos anos 1930, que estava muito proeminente o pensamento de democracia racial de Gilberto Freyre. A obra dele tem equívocos, mas fez um importante reconhecimento das tradições afro-brasileiras na época. Dona Santa teve o apoio de jornalistas, de radialistas, intelectuais, o que deu reconhecimento aos maracatus”, explica Climério.

A rainha do maracatu Elefante, Dona Santa, em foto de 1961. Crédito: Acervo Fundaj

Os caboclinhos nunca passaram por esse processo. “Antes, houve uma época de intelectuais indigenistas, mas no período pós abolição, o elemento afro-brasileiro estava mais em alta que o indígena. Por sinal, algumas vezes os indígenas são abordados nos escritos da época como uma cultura que não contribuía para a música popular brasileira. Houve esse grande equívoco em relação à cultura indígena por parte de vários intelectuais, inclusive Gilberto Freyre.

Mas há um movimento recente para difundir o caboclinho. Entre dezembro de 2011 e novembro de 2012, a Associação Respeita Januário realizou a pesquisa do inventário para obtenção do reconhecimento do caboclinho como patrimônio cultural do Brasil. Em 2016, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) concedeu ao caboclinho pernambucano o título de Patrimônio Cultural do Brasil.

“O reconhecimento do Iphan é importante, mas ele precisa ser acompanhado de ações de salvaguarda, de fomento e difusão. Se não tiver isso, é apenas um reconhecimento pró-forma. Agora, em 2023, indicamos o gaiteiro Nadinho, que está com câncer, para que fosse homenageado no carnaval do Recife. Ainda não recebemos resposta da prefeitura. Ele é responsável pelas principais melodias que são tocadas hoje pelos gaiteiros e passou por várias agremiações. ”, diz Climério, que também faz parte da Associação Respeita Januário.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org