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As histórias e esperança das mulheres que resistiram à ditadura militar

Exposição no Memorial da Resistência, em São Paulo, inclui encontros entre jovens e ex-militantes

Samarone Lima / 28/03/2024
Foto de um grupo de mulheres sentadas em cadeiras formando um círculo, participando de um evento ou reunião. Elas estão segurando papéis e parecem estar envolvidas em uma discussão ou apresentação. O ambiente é interno,, com o piso de madeira. Além disso, uma garrafa de água e um copo estão sobre uma mesa pequena no centro da imagem. Na parede ao fundo, há um banner grande com texto impresso, mas não está totalmente visível ou legível na imagem. Uma câmera montada em um tripé está visível à esquerda, indicando que o evento pode estar sendo gravado.

Crédito: Samarone Lima

As cadeiras estão em círculo, não há palestrantes, debatedoras, ou qualquer traço da formalidade institucional, como a formação da mesa, apresentação das convidadas com suas histórias de vida, os agradecimentos de praxe pelo convite. E, claro, as perguntas no final. A regra é simples: um microfone aberto, para quem quiser compartilhar suas memórias. Para falar, basta levantar a mão.

O cenário, no formato de “roda de conversa”, foi preparado para um público especial: mulheres que romperam com as imposições de gênero na luta contra o autoritarismo da ditadura. Ao lado da sala, no enorme salão, há uma exposição com fotos, textos, réplica de documentos, cartazes, intitulada “Mulheres em luta: arquivos de memória política”. As conversas fazem parte da exposição.

É a tarde de dois de março de 2024, no Memorial da Resistência de São Paulo.

Elas vão chegando aos poucos. Para quem esperava uma tarde de relatos dolorosos, de prisões, torturas, clandestinidade, o clima é outro. O sentimento que as mobilizou para o encontro com as “companheiras” estava voltado muito mais para o desejo de compartilhar memórias, entender melhor tudo o que viveram, e lançar novas sementes para um outro tempo – o agora. Abraços, sorrisos, reencontros de gente que não se via há muito tempo. Elas pareciam estar, na verdade, renovando a caminhada.

Chamava atenção o brilho nos olhos, a alegria de reencontrar velhas companheiras. Algumas, após a diáspora das prisões, exílios, perda de pessoas queridas, amores, especialmente na década de 1970, nunca mais tinham se encontrado.

Estar naquele prédio do Memorial, tinha também um simbolismo. Ali funcionou, de 1940 a 1983, o temido Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, o DOPS. Durante a ditadura de 1964, foi um dos principais centros de repressão aos movimentos de oposição. Muita gente foi torturada e morta no local, que ficou conhecido como um dos principais “porões da ditadura”.

No momento em que o Brasil se depara e reflete sobre os 60 anos do Golpe de 1964, no dia 31 de março, elas vão compartilhar suas “memórias de resistência”, sobre a lutas operárias, nos movimentos sociais, nos clubes e associações estudantis, na guerrilha.

Quem bolou o evento foram duas mulheres que lutaram na clandestinidade contra o regime: Cuca Amaral, de 73 anos, que foi militante da Ala Vermelha e Lia Zatz, de 72, da VAR-Palmares, organizações que entraram na luta armada contra a ditadura.

Nos encontro anteriores, os temas foram “Por quê você virou feminista?”, e “A imprensa feminista nos anos 1970”.

“Fui convidada por amigas para um encontro sobre a imprensa feminista, e no primeiro encontro, fiquei muito impressionada, ao escutar as histórias das mulheres, de como elas faziam o jornais como Nós Mulheres, o Brasil mulher, e outros, que eram produzidos e distribuídos pelas lésbicas, e que cumpriram um papel muito importante para falar do feminismo e da sexualidade”, lembrou Maria do Socorro Santos, 79 anos, que foi militante da Ação Popular (AP), e viveu na clandestinidade de 1967 a 1973.

“Essas mulheres usaram, com tenacidade, espaços que a ditadura, mesmo com o controle das informações e a censura, não conseguia alcançar: era coisa de mulher. Sem o apoio legal de jornalistas, sem amparo financeiro, de forma artesanal, chegavam a produzir 10 mil exemplares, que eram distribuídos em jornais, igrejas, associações e sindicatos”.

Ela disse que ficou impressionada com os relatos, porque nesta época, estava na militância clandestina no Nordeste.

Uma linha do tempo foi apresentada e atualizada, desde o começo do ano 1960, duas perguntas surgiram: “onde eu estava nesta época? Quantos anos eu tinha”.

Uma das participantes não perdeu a deixa e comentou:

“Gente, o golpe está completando 60 anos… imagine a nossa idade…”

As participantes caíram na risada.

Foto de um pequeno grupo de mulheres idosas em um ambiente interno, possivelmente uma galeria ou museu. O ambiente parece ser uma sala ampla e iluminada, possivelmente uma galeria ou museu. Há um painel preto com texto branco ao fundo, embora o conteúdo do texto não seja claramente visível. As pessoas estão em pé, vestidas de forma casual e estão se cumprimentando. O piso é de madeira clara e as paredes são brancas, contribuindo para a atmosfera luminosa do espaço.
Crédito: Samarone Lima

“Nessas rodas de conversa que estamos realizando no Memorial, além do reencontro com queridas amigas e companheiras de militância feminista, estamos podendo pensar na nossa ação passada, não como nostalgia, mas como possibilidade de futuro. Percebendo o quão importante foi sem deixar de fazer autocrítica. Não estamos aposentadas. “, lembrou Lia Zatz, também organizadora das rodas de conversa. Ela foi militante da Var-Palmares entre 1969 e 1970, quando partiu para o exílio.

“Somos feministas velhas ou velhas feministas, com a cabeça sempre caraminholando novas possibilidades de vida e ação. Talvez essa nossa postura inspire algumas jovens que vêm participar das nossas rodas de conversa. E que bom será se elas também puderem nos inspirar!”

Frases inspiradoras surgiam a cada instante. Muitas vezes, quem falava esquecia de dizer o próprio nome, como se fosse mesmo uma voz coletiva.

“Por uma declaração viva dos Direitos Humanos. Pelo direito à memória. O direito de celebrar suas lembranças como memória”.

“O que me morreu?”

“Nas férias, meu pai veio e fomos para o Nordeste. Quando os militares vieram, não me encontraram”.

“Nesta época, eu me senti amada, e amei as pessoas todas”.

“A ditadura é o reino dos idiotas, que vão tentar provar que são os melhores”.

Uma jovem, de uns 20 anos, assistia fascinada o encontro. Ela pegou o microfone, e fez duas perguntas. Ao final, fez um balanço de sua geração.

“Nossa, a gente não está com nada! Vocês têm que continuar falando!”

Uma das mulheres da roda respondeu:

“Perguntem aos seus pais o que aconteceu”.

Mergulhos na alma

Elas participaram do evento, falaram sobre suas vidas e refletiram sobre a importância das conversas realizadas no memorial:

  • Maria do Socorro Santos, foi militante da Ação Popular (AP), de 1964 a 1973

“Fiquei realmente comovida de escutar, depois de 50 anos ou mais, o relato dessas mulheres. Não só isso, mas de iniciar um movimento de consciência da opressão contra as mulheres. E de também ter um espaço onde a gente estava conversando, falando, expondo, onde me senti muito à vontade de falar da minha experiência, do que eu estava fazendo nessa época, e as pessoas começaram a falar, e os depoimentos foram maravilhosos.

Foto de uma mulher jovem segurando um cartaz que diz “TEM QUE TER MULHER”. A imagem é em preto e branco e parece ser uma fotografia antiga. A moça está no centro da imagem. Ela tem cabelo escuros curtos, olhos escuros e um semblante sério. Ela está sentada e veste camisa xadrez sobre blusa preta. O fundo da imagem é escuro e não oferece detalhes discerníveis além de sugerir um ambiente interno

Foto que integra a exposição "Mulheres em luta".

Crédito: Divulgação/Mulheres em Luta
  • Cuca Amaral, foi militante da Ala Vermelha, de 1969 e 1972.

“No final da reunião, depois de ouvir tantos depoimentos emocionantes de minhas companheiras, pensei em como eu me sentia quando entrei na faculdade em 1968. Eu tinha 18 anos. Era o auge da repressão. Os anos de chumbo do ditador Médici.

Depois da promulgação do AI-5, em 1968, estudantes eram arrancados das salas de aula. Centenas de professores da USP foram aposentados compulsoriamente e outros tantos presos. A tortura e os assassinatos eram a regra. Minha irmã mais nova foi presa no Doi-codi. Meus amigos foram todos presos. Eu fugi com meu companheiro para outro estado, com documentos falsos. Depois, foi o exílio por 10 anos.

Minha pergunta é: por que arrisquei minha vida, destruí minha futura carreira com tanta coragem? Afinal, eu tinha apenas 18 anos. A única resposta que me ocorre é: por que eu tinha um sonho, uma causa altruísta que motivava minha vida. Eu acreditava que poderíamos criar uma sociedade mais justa, livre, onde os jovens de todas as classes sociais poderiam realizar seus sonhos.

E hoje, com 73 anos, no que eu acredito? O que me faria arriscar novamente minha vida? Nossa geração de 68 deveria se fazer essa pergunta.

Não podemos simplesmente delegar para as gerações mais novas a responsabilidade de lutar por uma sociedade mais justa. Nós temos que nos colocar novamente numa luta por mudanças radicais da nossa sociedade. Ninguém dá a vida por pequenas reformas. É preciso ir na raiz dos problemas: o colonialismo, o patriarcado e o capitalismo”.

Nesta foto, vê-se uma manifestação ou protesto com várias pessoas segurando cartazes e faixas. A imagem é em preto e branco, indicando que pode ser uma fotografia antiga. Muitas pessoas estão reunidas na rua, parecendo participar de um protesto ou manifestação. Os participantes seguram várias faixas e cartazes com textos, embora nem todos sejam legíveis. Uma grande faixa na frente da multidão está escrita em português e menciona uma homenagem às mulheres que morreram pela liberdade, marcando 10 anos de anistia. O ambiente parece urbano com edifícios visíveis ao fundo e carros estacionados ao lado da rua. A faixa diz: “HOMENAGEM ÀS MULHERES QUE MORRERAM PELA LIBERDADE 1979-1989: 10 ANOS DE ANISTIA UNIÃO DE MULHERES DE S. PAULO”

Foto que compõe a exposição "Mulheres em Luta", em São Paulo.

Crédito: Divulgação/Mulheres em Luta

Lia Zatz, foi militante da VAR-Palmares. de 1969 a 1970, quando se exilou.

“Eu tinha 12 anos. A imagem que ficou na minha memória e que até hoje é vívida, foi esta: eu e minha irmã na janela do sobrado onde morávamos, vendo tanques de guerra passando em frente de casa, quando nossa mãe chegou correndo, assustada, para nos afastar da cena. Estudava numa escola tradicional, estava entrando na adolescência e mais interessada em meninos e festinhas.

No Ensino Médio, meu mundo tão pequenininho, de repente se expandiu enormemente, com professores maravilhosos, de história e geografia, por exemplo, deixaram de ser pura decoreba de nomes e datas para se transformar em compreensão e reflexão sobre a realidade. E na ação, sonhando com um mundo mais justo, me juntando a colegas que já participavam do movimento secundarista.

Era o ano de 1968. Ainda era possível participar de protestos e passeatas. Até que veio o AI-5. Com outros colegas, entrei numa organização clandestina. O ano de 1969 foi intenso. Eu era peixe pequeno, não participava de grandes ações. Mas muita gente que participava estava sendo presa e torturada.

No final do ano, eu e meu namorado começamos a ser procurados e tivemos que entrar na clandestinidade. No começo de 1970, fui embora para a França, onde já viviam muitos exilados brasileiros, com quem convivi, estudei e pude rever nossas práticas. No exílio, terminei o secundário e a faculdade sem nunca deixar de sonhar com um mundo mais justo.

Na volta ao Brasil, comecei a militar no movimento feminista. Nessas rodas de conversa que estamos realizando no Memorial, além do reencontro com queridas amigas e companheiras de militância feminista, estamos podendo pensar na nossa ação passada, não como nostalgia, mas como possibilidade de futuro. Percebendo o quão importante foi, sem deixar de fazer autocrítica”.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.