Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Era noite de segunda-feira à noite quando fomos à sala ao cômodo onde funciona o Sargento Perifa, no Córrego do Sargento, uma das mais atuantes organizações da sociedade civil na zona norte do Recife. Na semana que antecede ao Dia das Mães, as mulheres da comunidade foram convidadas para participar de uma roda de conversa sobra o que é ser uma mãe negra na periferia do Recife.
O encontro seria mediado por uma psicóloga experiente, Ceça Costa, ela também uma mulher negra, ex-presidente do Conselho Regional de Psicologia.
A verdade é que equipe da Marco Zero não estava ali para cobrir a reunião. Nosso objetivo original era captar algumas imagens e conversar com algumas mulheres para uma pauta bem diferente, mas isso não durou muito.
Quando a mediadora pediu uma voluntária para fazer a fala de abertura, Lidiane, que aos 36 anos é mãe solo de três moças, adolescentes, e de um bebê com meses de vida, se ofereceu para falar. A contundência de suas palavras mudou a razão de nossa visita e deu o tom da conversa que viria a seguir.
Aquelas 40 mães e avós, que largaram a novela da televisão e interromperam as urgências do lar, não estavam ali para ouvir dicas de saúde, de alimentação ou educação. Tampouco tinham disposição para temas abstratos ou discutir o reino dos céus, mesmo a maioria evangélica.
O que Lidiane Maria da Paixão Silva colocou – ou melhor, arremessou com força – na roda de conversa foi a brutalidade da Polícia Militar de Pernambuco nas escadarias e becos. Quem lê essas linhas no sofá de um apartamento no Espinheiro ou em uma varanda ventilada de Setúbal, provavelmente, vai questionar “ora, a PM não vai combater o tráfico com flores…”.
Para a classe média, progressista ou reacionária, violência policial é uma abstração ou uma realidade distante, quase uma guerra na Ucrânia. Por isso, no dia das Mães, talvez seja melhor se dedicar à leitura de textos inspiradores sobre a maternidade ou apreciar a cara de satisfação da mãe ou esposa com o presente comprado no shopping.
Para as mulheres do Córrego do Sargento, o desrespeito é diário, as humilhações e o medo são constantes.
A psicóloga nem precisou estimular o debate com técnicas de dinâmica de grupo, uma a uma as vozes das mulheres iam se alternando. Elas estavam ansiosas para falar.
Uma delas, avó com mais de 70 anos, contou que teve a porta derrubada a pontapés no meio da madrugada por policiais que procuravam alguém que eles sabiam que não vivia ali.
Outra, bem mais jovem, relatou a vez em que os PMs encapuzados atirando quando no meio da tarde, quando crianças brincavam na escadaria na frente das casas.
Uma terceira, também avó, falou que esticou as mãos e gritou “me prenda, vá, me prenda”, quando um oficial ameaçou prendê-la por desacato por ter se queixado dos tiros disparados sem direção nem necessidade.
“Aqui é um dos poucos lugares que tenho pra falar. Uma empregada doméstica como eu não tem muito a oportunidade de ser escutada”, explica Lidiane, cuja filha se prepara para ser jornalista, enquanto o caçula é um bebê de colo. Ela perdeu o emprego quando informou à patroa que estava grávida.
No meio da discussão, surge o nome de um policial. Trata-se de homem que, há anos, aterroriza as comunidades da zona norte. A descrição de seu comportamento mais parecem com a de um psicopata ou um sádico em pleno surto, jamais de um “agente da lei”. Ele esfrega canos de pistolas nas bochechas de mulheres grávidas, destrói portas e janelas a qualquer hora, invade qualquer casa ou barraco quebrando móveis; rouba celulares de adolescentes, espanca crianças. E isso não é nem o começo.
Os córregos e altos do Recife ignoram a existência do mandado judicial. A Justiça de Pernambuco ignora a existência e os direitos de quem vive nos córregos e nos altos da capital.
É por isso que Eliane Lira, avó de 59 anos, aquela que não teve medo de ser algemadas pelo oficial, quer um apito dos mais estridentes no bolso de todas aquelas mães. Um apito que possa soar para alertar e unir a comunidade quando a PM invadir a casa de uma vizinha ou ameaçar quem quer seja. Em um córrego vizinho, o do Euclides, os apitos avisam quando uma mulher está sendo vítima de violência doméstica, lembram as participantes.
“Precisamos nos ajudar e ajudar até quem é errado, pois para eles basta ser preto para estar errado. Se é pra prender, que prenda, mas não precisa estourar a cabeça do preso na parede como fazem sempre”, brada Eliane.
Perto do fim da reunião, várias mulheres admitiram que todas precisam agir como Sueli, a vizinha que está sempre disposta a ajudar as demais, aquela que todas consideram como a amiga mais leal. Ela pede a palavra e aponta que todas precisam caminhar juntas para garantir seus direitos.
Mais de uma voz disse que, tanto as evangélicas quanto as do candomblé estão sujeitas aos mesmos ataques da PM. A união independe das crenças de cada uma.
É provável que, neste domingo, a maioria das mulheres daquele grupo que se reuniu na noite de segunda-feira receba presentes ou lembrancinhas dos seus filhos e filhas. No entanto, o presente que mais desejam – o respeito do poder público – não virá neste Dia das Mães.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.