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Crédito: Victor Santos/Taller Warao
Mãos que por muitas vezes foram vistas estendidas em cruzamentos movimentados do Recife e de outras cidades da Região Metropolitana, agora, manuseiam com habilidade fios de náilon, tecidos e miçangas coloridas. Em vez de esperar a ajuda de terceiros para suprir as necessidades básicas, como comer e se vestir, os warao – pelo menos 20 deles ou um terço da população atual na cidade – começaram a empreender no ramo do artesanato.
Essa virada na vida dos indígenas venezuelanos, que vivem em Pernambuco quase sem apoio dos poderes públicos, teve início há dois meses com a implantação do Taller Warao, um ateliê que funciona no Centro Social Dom João Costa, na Vila Santa Luzia, comunidade periférica no bairro da Torre. No local, são produzidas peças de cestaria, pulseiras, colares, redes, bolsas, vestidos e os tradicionais chinchorritos – espécie de suporte para carregar o bebê junto ao corpo do pai ou da mãe.
Os preços dos artigos variam entre R$10 e R$400 e toda renda obtida com a venda dos objetos é revertida integralmente para os artesãos e artesãs. Por enquanto, apenas os residentes no Recife participam da oficina, mas a ideia é que os warao que moram em Jaboatão dos Guararapes sejam integrados, em breve, ao projeto.
“Nesse curto espaço de tempo já dá para perceber os resultados. Eles estão felizes por serem reconhecidos não mais como migrantes refugiados que viviam no semáforo pedindo, mas como pessoas capazes de produzir arte e fazer dela seu sustento. Do ponto de vista financeiro, também há uma sensação de alívio na realidade dura em que vivem”, afirma o agente pastoral do Serviço Pastoral dos Migrantes do Nordeste (SPM NE), Victor Santos.
A iniciativa de montar o Taller Warao veio da demanda dos próprios indígenas por um espaço para trabalhar com o artesanato, que faz parte da sua identidade cultural. Para tornar esse desejo realidade, o SPM NE reuniu entidades parceiras como a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Congregação das Religiosas da Instrução Cristã – Damas.
Ainda fazem parte da chamada Rede Misericórdia Sem Fronteira, o SPM Nacional, a Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Glória. O grupo tem o apoio dos alunos e professores extensionistas do “Migra” da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Organização Internacional das Migrações – entidade vinculada à ONU. Os voluntários são responsáveis pelas doações dos materiais para a confecção das peças de artesanato, pelo espaço físico da oficina, pelo transporte dos warao até o local e pela gestão das vendas.
“Uma vez por semana, as famílias de artesãos, incluindo crianças, vão ao ateliê buscar os materiais necessários para a confecção das peças e catalogá-las. Os produtos são fotografados junto com os artistas e postados no Instagram, onde os clientes podem escolher e combinar a compra por meio de Pix ou transferência bancária”, explica Santos.
Os itens carregados de ancestralidade do povo originário do delta do rio Orinoco, no norte da Venezuela, já ultrapassou as divisas do estado e conquistou clientes na Paraíba, em São Paulo, Minas Gerais e no Rio de Janeiro. A entrega na região metropolitana do Recife é feita por meio de aplicativos de transporte e, fora de Pernambuco, pelos Correios.
Por causa da pandemia de coronavírus, ainda não é possível visitar o Taller Warao, exceção feita apenas para a retirada de produtos. De acordo com Victor, com o avanço da vacinação a expectativa é de que os artesãos e as artesãs indígenas recebam os clientes no ateliê, mas também possam ir ao encontro dos consumidores participando de feiras.
Ao mesmo tempo, os voluntários de Rede Misericórdia Sem Fronteira e os venezuelanos pleiteiam a Carteira Nacional do Artesão para os migrantes, o que dará entre outros direitos a possibilidade de participar de exposições nacionais e internacionais, a exemplo da Fenearte, além de cursos e capacitações.
“Tudo isso vai colaborar com o reconhecimento desses trabalhadores e trabalhadoras permitindo que acessem outros espaços formais de comercialização, o que ajuda na agregação de valor aos produtos, visto que a composição de preços é um dos nossos desafios no Taller Warao”, diz Santos.
A implantação do Taller Warao é um exemplo concreto do etnodesenvolvimento. Embora o conceito seja alvo de disputa entre pesquisadores, há o consenso de que a experiência recifense traz no seu bojo a reivindicação de autodeterminação e autonomia dos povos. De acordo com a professora do grupo Migra da UFPE, Carolina Leite, o etnodesenvolvimento é a resposta dos povos originários “ao terror do neocolonialismo dos grandes projetos” que devastou suas terras em nome de uma integração nacional.
A pesquisadora afirma que movimento semelhante tem acontecido aqui desde que os warao chegaram. “Temos pautado a necessidade do estabelecimento de um protocolo de consulta para esse povo, uma vez que muitas das dificuldades que eles têm enfrentando relacionam-se ao fato da sua forma de organização social, cultural e familiar não ser levada em conta na definição das formas de acolhimento”, diz.
Enquanto os poderes públicos agem sem ouvir os indígenas venezuelanos, as entidades do terceiro setor, que ocupam o vácuo deixado pelos governantes, mantêm, segundo Carolina, um processo de escuta qualificada dos migrantes refugiados.
“Taller é uma oficina, como diz a própria palavra, apesar de escrita em castelhano, uma oficina de si, dos warao enquanto povo indígena, da cultura e da interculturalidade. É fundamental fortalecer propostas que permitam que os fios da cultura continuem sendo tecidos, porque são os únicos que conduzem à luta e, assim, à terra novamente, como os indígenas nos têm ensinado”, analisa. Para a docente, o etnodesenvolvimento deveria servir para pensar políticas públicas para o conjunto dos migrantes como caminho para reconhecê-los como sujeitos dotados de direitos e deveres.
Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”.
Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com