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Falta de políticas públicas expulsa os Warao do Recife

Kleber Nunes / 03/03/2021

Os Warao vivem em situação precária em seis casas no Recife. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo/Arquivo

Personagens comuns no cenário caótico das principais ruas e avenidas da área mais central do Recife, os indígenas venezuelanos da etnia Warao estão “sumindo” da cidade. Pouco mais de um ano depois de fugir da crise social e econômica de seu país de origem, essa população, que já somou mais de 300 pessoas na capital pernambucana, atualmente não ultrapassa 60 indivíduos.

A fome, a violência e a falta de perspectiva de uma vida melhor fizeram os indígenas Warao cruzarem a fronteira da Venezuela com o Brasil e percorrerem pelo menos oito cidades até se instalarem em Pernambuco. Agora, esses mesmos motivos estão os expulsando do estado para cidades como João Pessoa, Natal e Belém, segundo entidades do Comitê Interinstitucional de Promoção dos Direitos das Pessoas em Situação de Migração, Refúgio e Apátrida em Pernambuco (Comigrar).

Braço do poder executivo municipal responsável pela assistência aos Warao, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas não quis comentar o assunto.

Entender a diáspora, como o agente pastoral do Serviço Pastoral dos Migrantes do Nordeste (SPM NE) Victor Santos define esse movimento de eliminação dos Warao, passa pela compreensão do processo histórico desses indígenas até a chegada ao Recife.

De acordo com Santos, que acompanha o dia a dia dessas famílias, a violência contra esse grupo se intensificou na década de 1960 com o avanço do agronegócio e de grandes obras de infraestrutura patrocinadas pelo governo venezuelano, que provocaram a destruição de terras e a morte de rios.

“O que ainda está em curso, agora sob a responsabilidade do poder público local, é outra fase desse processo de expulsão. A falta de políticas públicas para os migrantes por parte da Prefeitura do Recife está empurrando essas famílias para outros locais. Não é da cultura dos Warao serem nômades, o que acontece é que para sobreviver eles vêm ao longo dos anos procurando lugares com condições mínimas, e aqui mais uma vez não encontraram”, afirma Santos.

Visualizar esse abandono não é tão difícil. Atualmente, os cerca de 60 indígenas Warao vivem amontoados em seis casas nos bairros dos Coelhos, Pina e Santo Amaro. Matéria publicada pela Marco Zero denunciou as condições precárias de dois antigos imóveis, assim que eles chegaram em outubro de 2019. Além disso, sobretudo antes da pandemia do novo coronavírus, era comum encontrar mulheres e crianças com cartazes improvisados em português e espanhol pedindo dinheiro nos cruzamentos.

Mesmo com essa realidade de violência exposta diariamente no Recife, o tema sequer foi citado durante a campanha eleitoral de 2020 e também não estava incluído nos programas de governo entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelos candidatos à prefeitura, incluindo o prefeito eleito João Campos (PSB).

“O que escuto de todos eles é que não gostariam de ir embora. Não que as outras cidades tenham uma política pública para os migrantes, mas pelo menos têm uma assistência que garante alimentação e moradia com mais dignidade”, explica Santos.

A presidente da Comissão de Direito dos Refugiados da OAB-PE, Emília Queiroz, também lamenta a letargia da Prefeitura do Recife em relação aos migrantes não nacionais, especialmente os Warao, que são “os mais vulneráveis” entre todos os grupos que vivem na cidade.

“O que temos é um poder público que responde às provocações da sociedade civil, ele espera um movimento para assumir a sua responsabilidade, como no início da pandemia que nós pedimos a desinfecção das casas, a entrega de máscaras e o treinamento com agentes de saúde. Ainda assim, a prefeitura disse não ter o material e nós fomos atrás de doações”, conta.

A segurança alimentar tem sido um problema para os Warao, que vão às ruas com cartazes pedir dinheiro e algum apoio. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo/Arquivo

A comissão presidida por Emília é a única existente numa seccional da OAB no Nordeste e uma das três no país. O grupo atua fiscalizando a garantia dos direitos dos migrantes não nacionais. “É preciso respeitar esse fluxo migratório, mas é necessário também reconhecer que o poder público falhou no sentido de oferecer saúde, moradia e toda assistência necessária para se garantir o mínimo de dignidade aos Warao”, avalia a advogada.

Escuta qualificada e marco legal

Entidades do Comigrar concordam que a solução para os Warao e outros migrantes não nacionais não é fácil e nem deve ser alcançada a curto prazo. Todos, no entanto, também concordam que o primeiro passo está em ouvir diretamente os indígenas venezuelanos.

“Não há como encontrar soluções duradouras sem um processo de escuta qualificada dos Warao e isso não tem acontecido, embora a gente venha provocando o poder público. Há equipes de assistência social que vão às casas semanalmente, mas para fazer ações isoladas como entregar alimentos, o que não necessariamente culminam em política pública”, diz Victor Santos.

A reportagem apurou que os Warao serão incluídos no grupo 4 do cronograma de vacinação contra a Covid-19, o mesmo que contempla professores e agentes de segurança. “A imunização deles é o mínimo que o estado deve fazer, mas temos aí outro exemplo da falta de diálogo. Eles não têm proximidade com a medicina branca ocidental. Como essa informação será repassada aos Warao?”, questiona Santos.

Na Câmara Municipal do Recife, um projeto de lei do vereador Ivan Moraes (Psol) prevê instituir as bases para a elaboração da “Política Municipal de Promoção dos Direitos dos Migrantes e Refugiados”. O texto, que aguarda parecer da Comissão de Legislação e Justiça, propõe ações permanentes seguindo diretrizes como garantia de acessibilidade aos serviços públicos e respeito às especificidades de gênero, raça, etnia, orientação sexual, idade, religião e deficiência.

“A situação dos Warao expõe a falta de uma política pública direcionada para o público migrante. O tempo todo a gente sentiu que nosso poder público não está preparado para lidar com essas questões por mais bem intencionadas e comprometidas que as pessoas que estão na gestão estejam, faz falta uma política formatada, um encaminhamento próprio para esse público”, avalia Moraes.

Ainda de acordo com o vereador, que acompanha os indígenas venezuelanos desde a chegada ao Recife, não há apenas uma demanda grande por assistência. “Como integrar, por exemplo, saúde, educação, comunicação? Como lidar com as crianças, respeitando a sua individualidade e compreendendo os direitos que têm? Quando este público é indígena, a complexidade aumenta ainda mais”, diz o parlamentar.

No âmbito estadual, a expectativa é de que em breve também a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) esteja discutindo um projeto de lei voltado para os migrantes. O texto está sendo concluído pelas comissões de Direito dos Refugiados e de Estudos Constitucionais da OAB-PE.

“Nas próximas semanas pretendemos marcar uma audiência pública virtual para começar a discutir com todos os entes envolvidos no tema a implementação de um marco legal dos migrantes não nacionais no estado. A situação preocupante dos Warao requer essa urgência”, afirma Emília Queiroz.

A reportagem procurou a Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas do Recife e perguntou a secretária Ana Rita Suassuna qual era a política pública da prefeitura para os Warao e outros migrantes?

A Marco Zero também questionou sobre a saída dos indígenas venezuelanos da cidade e se em algum momento haverá a escuta dos Warao, e ainda se há algum projeto para melhorar as condições de moradia.

Mesmo com a extensão do prazo solicitado pela assessoria de imprensa da pasta, nenhuma resposta foi enviada.

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Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative”.

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AUTOR
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Kleber Nunes

Jornalista formado pela Unicap e mestrando em jornalismo pela UFPB. Atuou como repórter no Diario de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Foi trainee e correspondente da Folha de S.Paulo, correspondente do Estadão, colaborador do UOL e da Veja, além de assessor de imprensa. Vamos contar novas histórias? Manda a tua para klebernunes.marcozero@gmail.com