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Morte de menina torna mais dramática situação dos indígenas Warao no Recife

Inácio França / 02/11/2020

Crédito: Inês Campelo/MZC

Em meio à miséria, a morte de uma adolescente durante o final de semana do feriadão levou os indígenas venezuelanos da etnia Warao que vivem no Recife a enfrentarem a burocracia e os impasses legais. A menina de 16 anos, morreu na noite de sábado, 31 de outubro, numa casa em Santo Amaro onde vivem mais de 30 pessoas de seis famílias, deixando os indígenas atônitos, sem saber o que fazer.

Os pais e irmãos de garota estavam na Paraíba, de onde a menina veio na terça-feira, dia 27. Doente há três meses, ela foi enviada pela família para fazer um tratamento espiritual com o xamã do grupo (jowarotu ou bajanarotu, no idioma Warao). Segundo um dos caciques, José Lisardo Moraleda, ela não tinha sintomas de Covid-19, mas sim fortes dores abdominais e torácicas. “Ela melhorou. Na quinta e na sexta-feira, chegou a caminhar e voltou a comer, mas no sábado amanheceu pior”, explicou o cacique, único a falar e compreender bem o português.

Com a menina morta na casa e sem parentes dela por perto, Lisardo e o outro cacique, Juan, pediram ajuda à professora de Geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Carol Leite, voluntária da rede que oferece apoio aos Warao no Recife, e a Victor Santos, do Serviço Pastoral dos Migrantes da igreja Católica. Era o início de uma via crucis pela burocracia que, na manhã de segunda-feira, 2 de novembro, ainda não havia terminado.

Acionado pelos voluntários, o professor de Direito Manoel Moraes, titular da cátedra Dom Helder Câmara de Direitos Humanos da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), resumiu os esforços para viabilizar a assistência aos indígenas: “Quando o assunto são os indígenas Waraos, o quadro complica por falta de respeito e atenção a um fenômeno internacional de migração. Fizemos dezenas de ligações, acionamos várias autoridades municipais e estaduais, mas só no domingo conseguimos encaminhar a solução. O sentimento é de total ausência do poder público”.

Na madrugada de domingo, a prefeitura autorizou a funerária contratada para realizar os sepultamentos das vítimas da Covid a atender os Warao. No entanto, na ausência dos parentes em primeiro grau da menina, a empresa avisou que só poderia retirar o corpo após o registro de boletim de ocorrência.

Voluntários e caciques foram então à central de flagrantes da Polícia Civil, mas como se tratava de uma menina de 16 anos, os policiais não puderam considerar morte natural e trataram o caso como “morte a esclarecer”, o que gerou a necessidade se fazer necropsia, o que impediu a retirada do cadáver pela funerária, pois, a partir daí, o Instituto Médico Legal teria de ser acionado.

Enquanto a polícia seguia para a casa onde o estava o corpo, já na manhã de domingo, os pais e outros parentes de menina, viajavam de táxi e de ônibus, com as despesas pagas pela Ação Social da Arquidiocese da Paraíba, mobilizada pelo padre Egídio Carvalho, que coordena o atendimento à população de rua em João Pessoa.

Impasse e choque cultural

Na casa, mais um impasse, desta vez resultado do embate entre a lei brasileira e a cultura indígena: os policiais queriam chamar o IML imediatamente, mas os Warao não queriam permitir sem que houvesse um ritual de despedida. Foi preciso acionar a Defensoria Pública da União (DPU). O defensor federal André Carneiro Leão entrou em cena e negociou um acordo para que a retirada do corpo acontecesse após a chegada dos parentes e a cerimônia, que acabou sendo realizada conjuntamente pelo xamã e um padre católico.

No meio da tarde, o IML retirou o corpo, mas o modo como isso foi feito revoltou os Warao. “Para nosso povo, o corpo da pessoa morta é sagrado, é o que há de mais sagrado, mas os homens do IML simplesmente jogaram o corpo da menina na bandeja, sem respeito nenhum. E tudo na frente de nós todos, inclusive os pais dela. Isso causou mais dor”, queixou-se José Lisardo Moraleda.

Às 12h de segunda-feira, 2 de novembro, os caciques, os pais da menina e voluntários da rede de apoio ainda aguardavam a liberação do corpo para reconhecimento e a informação da causa mortis. “Se dá pra pensar numa causa morte, me parece ter relação com os limites do modelo de acolhimento aos migrantes e, em especial, aos indígenas migrantes, que o Brasil assume hoje, unido ao racismo estrutural da nossa sociedade”, desabafou a professora Carol Leite.

Para acompanhar o sepultamento, dezenas de Warao que estavam espalhados pela região metropolitana se dirigiram à casa de Santo Amaro. Mais de 85 pessoas se aglomeravam na casa sem ter o que comer. A secretaria municipal de Desenvolvimento Social havia se comprometido a fornecer 30 almoços e os voluntários tentavam contato com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na esperança de obter alimentos do Armazém do Campo.

O nome da adolescente que morreu e o endereço da casa onde vivem os Warao não foram mencionados no texto para evitar expô-los ao preconceito e reações xenófobas.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.