Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Ausência de saneamento nos territórios periféricos e transição climática: uma trágica combinação na RMR

Marco Zero Conteúdo / 04/07/2024
A foto retrata uma cena urbana ao ar livre durante o dia. No centro, há um pequeno canal estreito de água que parece estar bastante poluído, com vegetação verde crescendo sobre ele e lixo espalhado. De ambos os lados do canal, há caminhos de concreto e terra. A área é cercada por várias estruturas que parecem ser habitações informais, construídas com diferentes materiais e cores. Ao fundo, há mais casas construídas em uma encosta, indicando uma área densamente povoada.

Crédito: Arnaldo Souza/OM

por Arnaldo Souza* e Patrícia Geittenes Tondelo**

Anualmente, a Região Metropolitana do Recife (RMR) presencia situações de caos, em decorrência das chuvas, que se manifesta por inundações e deslizamentos cada vez mais recorrentes e intensos. Essa situação se reflete especialmente nas comunidades periféricas que, além dos prejuízos materiais e risco à vida, convivem com questões relacionadas à proliferação e contaminação por doenças de veiculação hídrica. Assim, doenças de pele, leptospirose e doenças gastrointestinais, por exemplo, surgem como desdobramentos “naturais” do contato direto e involuntário com água misturada a rejeitos nocivos (esgoto doméstico, lixo comum e hospitalar, óleos automotivos etc.).

É muito importante lembrar que a ausência ou precariedade de redes de esgotamento sanitário nos territórios periféricos da RMR acarreta práticas rudimentares, muitas vezes inadequadas, para o destino dos esgotos produzidos. Tais práticas, associadas à inexistência de infraestruturas eficientes de drenagem urbana e descarte inadequado de lixo, produzem quadros em que é comum encontrar rejeitos domésticos, juntamente com a água das chuvas, alagando ruas, sendo lançados em valas e poluindo córregos, canais e rios. Além disso, é comum encontrar fossas sumidouras, que funcionam como pontos de concentração de água frequentemente muito próximos uns das outros, e fossas negras, o que contribui para contaminação de corpos d’água, inclusive do lençol freático, e agrava as condições de estabilidade de encostas, por erosão ou escorregamento de barreiras, e potencializam a ocorrência de desastres.

Essa situação, por si só, aponta para as graves desigualdades que historicamente caracterizam o espaço urbano da RMR e, diante da iminência das mudanças climáticas e, com ela, a intensificação de períodos chuvosos, concorre para a construção de um cenário de grandes desafios. Segundo o estudo feito pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento (Agência Brasil, 2024), entre os estados com o maior número de pessoas em áreas de risco de deslizamento, enxurradas e inundações, Pernambuco ocupa a 5a colocação com mais de 800 mil pessoas (863.482), sendo que deste total, 206 mil estão no Recife e 188 mil em Jaboatão dos Guararapes. Apenas a RMR concentra 73,3 % desta população, e Recife e Jaboatão juntos, municípios mais críticos, concentram 45,7 %.

Dados recentes divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir do Censo de 2022, revelam, por exemplo, que entre os aproximadamente 1,35 milhão de domicílios particulares permanentes ocupados na RMR, cerca de 30% fazem descarte inadequado esgoto doméstico, como fossa rudimentar, vala, corpos d’água e outras formas não ligadas à rede geral. Desse percentual, 31% dos domicílios com descarte inadequado se concentram na cidade do Recife, enquanto Jaboatão responde por 22%. É válido ressaltar que esses percentuais não se confundem com cobertura de redes de esgotamento sanitário, uma vez que dados, de 2021, do Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil, destacam que quase metade da população da RMR (45,2%) não conta com coleta de esgoto.

Há de ser considerado que esses dados não se distribuem de forma homogênea no espaço urbano das cidades da RMR, revés, concentram-se sob porções territoriais que se caracterizam especialmente pela precariedade de infraestruturas e serviços públicos essenciais, intimamente relacionados às condições de pobreza, implicando a ausência ou deficiência de serviços como esgotamento sanitário, drenagem e coleta de lixo.

A foto retrata uma cena ao ar livre com foco em um morro parcialmente coberto por grandes lençóis pretos de proteção. Esses lençóis provavelmente foram colocados para evitar erosão ou deslizamentos de terra. A parte superior do morro não está visível, mas há árvores verdes exuberantes ao redor da área. Abaixo do morro, há casas densamente agrupadas com telhados de várias cores, principalmente vermelho e cinza, indicando uma área residencial. Ao fundo, vemos o skyline de uma cidade com vários prédios sob um céu azul claro com algumas nuvens.

Barreiras no bairro da Várzea, zona oeste do Recife.

Crédito: Arnaldo Souza/OM

Nesse cenário, a ocorrência de soluções informais individualizadas para descarte de rejeitos assemelha-se mais a uma escolha aparentemente única, embora represente uma alternativa prejudicial para o desenvolvimento urbano e autodestrutiva para as comunidades mais vulneráveis social e economicamente. Esta dinâmica perpetua a ausência de intervenções formais e efetivas por parte das instituições públicas, contribuindo para a marginalização contínua dessas comunidades. Assim, essas estratégias comunitárias e rudimentares, longe de representar uma solução sustentável, destacam-se como manifestação de uma trágica combinação entre a ausência do Estado, carência de serviços essenciais e o desafio de enfrentar as mudanças climáticas em curso.

Dessa forma, o problema que se impõe é conciliar medidas para sanear esses espaços de pobreza à estratégias para preparar a metrópole à adequação climática. Sendo esta uma situação de notório conhecimento das autoridades públicas, por que essa questão ainda não é central na agenda pública dos governos locais? Por que temos a impressão de que nada, ou quase nada, tem sido feito? E o que impede medidas eficientes e efetivas se tornarem prioridades? Evidentemente, há de se considerar as dificuldades inerentes à implantação de infraestruturas responsivas às necessidades da população, especialmente, diante de condicionantes tão característicos como os das ocupações urbanas periféricas na metrópole recifense. A morfologia urbana e as tipologias habitacionais derivadas da autoconstrução encerram em sua complexidade imensos desafios que levam a presença significativa de becos e vielas, associadas a quadras irregulares, a se traduzirem em obstáculos à urbanização desses espaços.

No entanto, limitar-se às “dificuldades” que estes espaços impõe a sua urbanização não pode ensejar argumento ou desculpa para a negação pública, por parte das autoridades municipais, do problema posto à realidade especialmente dos mais pobres e vulneráveis. Sanear e urbanizar são possíveis, e a ausência de um não pode ser considerada impeditiva do outro. Esta mesma lógica se aplica para o tratamento dos locais de risco que, certamente, coincidem com a ausência de urbanização e saneamento na RMR. Assim, é necessário ponderar abordagens integrativas, como as apresentadas nos exemplos dos Manual de Ocupação dos Morros desenvolvido pelo Programa Viva o Morro (convênio nº 082/1999) nos anos 2000. Elaborado com o intuito de romper com o estigma de preconceito criado pelas dificuldades para ocupação urbana do terreno de declividade, o manual apresenta uma série de técnicas e padrões construtivos, urbanísticos e de infraestrutura para planejar e administrar os morros (Fidem, 2004) que vão ao encontro do atual quadro de transição climática.

As intervenções urbanísticas em áreas de morros ou alagáveis geralmente ficam restritas em função de demandas isoladas. Assim, é imperativo romper essa lógica e apontar para a urgência de um processo de urbanização que integre políticas de habitação, redes de saneamento e drenagem, educação ambiental e saúde pública. Além disso, aplicar soluções tecnológicas de baixo custo às abordagens tradicionais de descarte de esgoto e drenagem urbana podem contribuir consideravelmente para a mitigação dos impactos negativos do “consórcio” entre condições precárias dos territórios periféricos e intensificação das chuvas.

No que diz respeito ao descarte de esgoto, a implantação de fossas sépticas comunitárias, devidamente equacionadas para atender a conjuntos de domicílios, utilizando processos naturais de degradação e filtragem de rejeitos, como as fossas biodigestoras, surgem como alternativas viáveis. Consideradas economicamente mais sustentáveis, estas práticas, além de contribuir para a melhoria das condições habitacionais e saúde da população, podem ajudar a reduzir a saturação do solo e minorar a ocorrência de deslizamentos.

Na dimensão de drenagem urbana, uma possibilidade viável seria a utilização de materiais porosos na pavimentação, permitindo uma distribuição mais homogênea da infiltração da água das chuvas no solo e evitando a sobrecarga das redes de drenagem. Essa prática, combinada com a instalação de reservatórios para captação e armazenamento de água da chuva, pode reduzir significativamente o risco de alagamentos e deslizamentos em decorrência da erosão do solo. Além disso, a água captada pode ser usada para irrigação, limpeza doméstica e outras atividades, aliviando, inclusive, o sistema de abastecimento da RMR.

Em áreas de maior propensão a inundações e alagamentos, a integração de abordagens como biorretenção a partir de jardins filtrantes, onde a água da chuva é coletada e filtrada a através do solo e da vegetação, e a criação de bacias de armazenamento temporário da água da chuva ou parques alagáveis, se apresentam como alternativas à adaptação climática. As águas retidas nesses processos podem ser destinadas à utilização na limpeza e irrigação de jardins e parques urbanos ou mesmo para liberação lenta aos cursos naturais das águas urbanas da RMR, contribuindo assim para controlar o fluxo das águas e evitar desastres sociais acarretados pelas condições climáticas.

Por fim, é de máxima importância que o problema seja reconhecido pelas autoridades públicas como urgente e que a população, especialmente os mais pobres, compreendam a gravidade do que, acima, chamamos de “trágica combinação”, pois é precisamente sobre essa população que recaem com mais intensidade os efeitos nocivos do descaso com o meio ambiente e o saneamento básico nos territórios periféricos. Notadamente, o planejamento e o ordenamento urbano, em contextos tão complexos como o da RMR, não é uma tarefa fácil. Porém, é possível. Contudo, para esse fim, é imperativo um maior protagonismo das comunidades, demandando publicamente a correta e legítima contemplação dos seus direitos e necessidades.

Se pela via da negação das autoridades públicas constituiu-se um quadro de negligência histórica com as comunidades nos territórios periféricos na RMR, “naturalizando” a dramática realidade que vitimiza os mais pobres e lhes imputa o dever de buscar soluções particulares e individuais para problemas sociais coletivos, apenas pela via da coletividade, da luta e do engajamento e participação popular as soluções podem encontrar cominho à realização.

*Bacharel em Gestão de Políticas Públicas, doutor em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife).

**Arquiteta e Urbanista, doutoranda no Programa de Pós-Graduação de em Desenvolvimento Urbano (MDU) e Pesquisadora do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife).

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.