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Autoteste para HIV chega às farmácias do Recife

Inês Campelo / 16/08/2017

A cena das duas fitinhas do resultado do teste foi muito marcante porque fui eu que mesmo que fiz todo o procedimento. Parece que minha vida passada não existe, é como se ela tivesse começado naquele dia. É uma cena que não sai da minha cabeça”.

SELO Além do vírus QO relato é de um jovem que, aos 23 anos, descobriu sozinho que vive com HIV. Como profissional de saúde, ele teve acesso ao teste rápido aplicado nos postos médicos e fez por conta própria a investigação. A partir deste mês, teste similar estará disponível nas farmácias de todo o Brasil e poderá ser comprado sem prescrição por um preço médio entre R$ 60 e R$ 70. Chamado ACTION e fabricado pela empresa Orange Life, o teste dirá com 99,9% de precisão se o usuário possui anticorpos para o vírus, o que significa que foi infectado.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) desde o início dos anos 2000 vem incentivando os países a adotarem esse método de testagem por acreditar que é mais uma porta de acesso ao diagnóstico. Os Estados Unidos e alguns países da Europa já vendem autotestes há alguns anos. O autoteste é mais uma forma das pessoas não diagnosticadas conhecerem sua sorologia e é mais um passo para o diagnóstico precoce, importantíssimo para o combate a epidemia e bem estar das pessoas.

action

Mesmo assim, a oferta do teste em farmácias não é unanimidade. Rodrigo*, por exemplo, o jovem que obteve sozinho o seu resultado, tem alguns questionamentos sobre o assunto. Embora concorde que o procedimento é mais uma opção principalmente para as pessoas que têm medo ou vergonha de encarar o posto de saúde, ele teme que as pessoas possam não ter condições psicológicas de receber um resultado positivo sozinhas, sem um profissional habilitado para essa conversa. “Neste caso, será também que ela vai chegar a uma unidade de saúde para refazer o teste e buscar o tratamento e aderir a medicação?”, questiona. “Quando você faz o teste já numa unidade de referência e tem o resultado positivo você automaticamente é encaminhado para o especialista. Em casa, a resistência em aderir ao tratamento pode ser maior”, completa.

Beth Amorim, da coordenação colegiada da Articulação Aids em Pernambuco, enxerga o teste como mais um avanço no combate ao vírus, mas tem a mesma preocupação de Rodrigo*. “Se a pessoa não tiver um profissional de saúde para orientar e apoiar após o resultado, em caso positivo, ela pode ficar desestruturada emocionalmente. Eu comparo ao teste de gravidez que quando nós mulheres fazemos em casa, a depender do contexto, ficamos abaladas, imagine para um vírus que ainda carrega tanto estigma. O que nós questionamos dentro do movimento é o depois do teste. O acesso a médicos do serviço público e ao tratamento já é difícil pra quem é diagnosticado no centro especializado, imagine para quem faz em casa”.

Já para Gabriel Estrela, artista plástico, youtuber e idealizador do Projeto Boa Sorte – que apoia pessoas que vivem com HIV – ter mais uma forma de testagem é sempre bem-vinda. “Algumas evidências mostram que oferecer a testagem além dos espaços de saúde, como em festas, por exemplo, amplia o número de pessoas que fazem o exame. Não acredito que (o teste de farmácia) terá uma grande adesão, inclusive porque o preço é alto, mas algumas pessoas farão, e isso já é importante”, comenta. “Mas é importante que depois do resultado a pessoa também procure acompanhamento psicológico e um vínculo ao serviço de saúde”.

Para outros participantes do De Grãozinho em Grãozinho, grupo fechado no Facebook do Boa Sorte, o preconceito e o medo devem inibir as pessoas de comprarem o teste. No Recife, a promessa é que até o final do mês ele esteja nas prateleiras de farmácia. Em outras cidades, como Rio de Janeiro, ele já está disponível. O autoteste funciona como os testes de medição de glicose para pessoas que têm diabetes. Após furar o dedo, o sangue é coletado em um recipiente com um líquido reagente e depois de 15 a 20 minutos fornece o resultado através de fitinhas parecidas com as do teste de gravidez.

BOX a presença do HIV PQ

É importante lembrar que a presença do HIV só pode ser confirmada depois de 30 dias da exposição vírus por relação sexual desprotegida, compartilhamento de agulhas e seringas ou transfusão de sangue. Antes disso, o resultado oferecido no teste não será real. Mas, caso o resultado do autoteste seja positivo, o procedimento é semelhante ao realizado gratuitamente nos Centros de Testagem Anônima (CTAS) e centros de saúde públicos, onde o paciente também tem o tratamento custeado pelo Governo Federal.

BOX procurar unidade de saúde PQ

BOX locais de teste PQ

A chegada do ACTION às farmácias marca uma nova etapa de conscientização da necessidade de manter o debate sobre o HIV, principalmente entre os mais jovens, na faixa etária entre 15 e 24 anos, que responde por 35% das 5,7 mil infecções diagnosticas em 2015, segundo dados da UNAIDS.

Segundo o Ministério da Saúde, 112 mil brasileiros não sabem que têm o HIV, outros 260 mil sabem, mas não tratam. A partir de hoje, a Marco Zero inicia uma série de reportagens sobre a doença que já foi encarada como uma “sentença de morte” quando surgiu, na década de 80, e que hoje pode ser encarada como uma condição de saúde que permite uma boa qualidade e expectativa de vida, se o paciente se submeter de maneira correta ao tratamento. Mas a ameaça do HIV e de outras infecções sexualmente transmissíveis também não pode ser considerada um problema menor, especialmente agora, diante da ameaça de desmonte das políticas públicas de saúde. Nesta série, vamos mostrar o dia a dia das pessoas que vivem com o vírus e os desafios para evitar a perda de conquistas no tratamento da Aids, setor no qual o Brasil é considerado referência mundial.

BOX 112 mil brasileiros PQ

Quem deve fazer o teste?

O teste deve ser feito por todas as pessoas que em algum momento da vida praticaram sexo desprotegido. É simples como um exame de sangue, ou pode ser realizado também pela mucosa bucal, em postos de saúde e hospitais de referência, gratuito nesses serviços e também disponível na rede privada. É importante repetir a cada seis meses, independentemente do tipo de relação que você tenha. “Não existe grupo de risco. Esse foi o maior erro em relação ao HIV. O que existe é comportamento de risco, que é ter relação sem preservativo”, explica o médico infectologista Demetrius Montenegro.

Outra forma de prevenção é indicada para quem se arriscou numa transa sem camisinha, acidentou-se com material infectado e em casos de violência sexual. Trata-se da Profilaxia Pós-exposição (PEP), uma espécie de “pílula do dia seguinte”, só que administrada por 28 dias. O tratamento, no entanto, deve ser iniciado em no máximo 72 horas após o contato, mas é mais eficaz se iniciado em até duas horas após a exposição. A medicação usada é um antirretroviral, que impede o vírus de se estabelecer no organismo.

Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids

Em 1989, profissionais da saúde e membros da sociedade civil criaram, com o apoio do Departamento de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais, a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids. O documento foi aprovado no Encontro Nacional de ONGs que Trabalham com Aids (ENONG), em Porto Alegre (RS):

I – Todas as pessoas têm direito à informação clara, exata, sobre a aids.

II – Os portadores do vírus têm direito a informações específicas sobre sua condição.

III – Todo portador do vírus da aids tem direito à assistência e ao tratamento, dados sem qualquer restrição, garantindo sua melhor qualidade de vida.

IV – Nenhum portador do vírus será submetido a isolamento, quarentena ou qualquer tipo de discriminação.

V – Ninguém tem o direito de restringir a liberdade ou os direitos das pessoas pelo único motivo de serem portadoras do HIV/aids, qualquer que seja sua raça, nacionalidade, religião, sexo ou orientação sexual.

VI – Todo portador do vírus da aids tem direito à participação em todos os aspectos da vida social. Toda ação que visar a recusar aos portadores do HIV/aids um emprego, um alojamento, uma assistência ou a privá-los disso, ou que tenda a restringi-los à participação em atividades coletivas, escolares e militares, deve ser considerada discriminatória e ser punida por lei.

VII – Todas as pessoas têm direito de receber sangue e hemoderivados, órgãos ou tecidos que tenham sido rigorosamente testados para o HIV.

VIII – Ninguém poderá fazer referência à doença de alguém, passada ou futura, ou ao resultado de seus testes para o HIV/aids, sem o consentimento da pessoa envolvida. A privacidade do portador do vírus deverá ser assegurada por todos os serviços médicos e assistenciais.

IX – Ninguém será submetido aos testes de HIV/aids compulsoriamente, em caso algum. Os testes de aids deverão ser usados exclusivamente para fins diagnósticos, controle de transfusões e transplantes, estudos epidemiológicos e nunca qualquer tipo de controle de pessoas ou populações. Em todos os casos de testes, os interessados deverão ser informados. Os resultados deverão ser transmitidos por um profissional competente.

X – Todo portador do vírus tem direito a comunicar apenas às pessoas que deseja seu estado de saúde e o resultado dos seus testes.

XI – Toda pessoa com HIV/aids tem direito à continuação de sua vida civil, profissional, sexual e afetiva. Nenhuma ação poderá restringir seus direitos completos à cidadania.

AUTOR
Foto Inês Campelo
Inês Campelo

Formada em Jornalismo pela Unicap. Apaixonada pela fotografia, campo que atua profissionalmente desde 1999. Atualmente é freelancer e editora de imagens do Marco Zero.