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O ano era 1996. O lugar, o Centro de Desenvolvimento das Artes Visuais, em Havana. O designer Ernesto Oroza havia decidido expor, pela primeira vez, o resultado do casamento entre a escassez econômica e a inventividade do povo cubano. Em outras palavras, entre a pobreza crônica e as táticas de sobrevivência de quem tinha que se virar com pouco, muito pouco, para garantir o mínimo de conforto doméstico.
Estavam ali, à mostra, todo tipo de peças insólitas: antenas de TV feitas de bandejas de alumínio encontradas nos refeitórios das escolas e das oficinas de trabalhadores; buzinas de bicicletas fabricadas com bonecas; lamparinas feitas com latas de refrigerante e fragmentos de tubos de pasta de dentes; partes de motores de uma máquina de lavar transformada em ventilador; cadeiras fabricadas a partir das sobras de outras cadeiras.
Oroza não tinha certeza de qual seria a reação da classe média cubana– formada em sua maioria por funcionários públicos. Sabia que Fidel via com maus olhos aquele mundo de invencionices populares porque o associava ao fracasso industrial da Revolução. Para sua surpresa, várias pessoas se emocionaram ao perceberem que elas compartilhavam em seus lares do mesmo mundo precário de seus concidadãos: ventiladores, fogões, refrigeradores, sofás e TVs reinventados dos escombros de outros equipamentos.
A escassez era generalizada. Estavam todos, afinal, no mesmo barco sobre a mesma maré vazante desde o embargo norte-americano à ilha, no início dos anos 60, agravado nos anos 90 pela queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, principal aliado comercial e político de Cuba.
O trabalho de inventividade que começou nas fábricas, como política de Estado, foi incorporado na vida cotidiana das pessoas como tática de sobrevivência, à margem das políticas públicas.
Se as pessoas se emocionaram, em 1996, ao ver a precariedade de suas vidas exposta daquela forma numa galeria pública, o mundo intelectual cubano classificou aqueles objetos – a palavra mais apropriada é desqualificou – como arte kitsch, de mau gosto.
Para desconstruir a crítica, Oroza estudou a fundo a relação da escassez com a produção de objetos pelos cubanos e construiu o conceito-chave do seu trabalho: desobediência tecnológica. “De tanto abrir corpos o cirurgião insensibiliza-se com a estética da ferida, com o sangue e com a morte. E esta é a primeira expressão de desobediência dos cubanos em sua relação com os objetos: um desrespeito crescente pela identidade do produto, bem como pela verdade e pela autoridade que essa identidade impõe. De tanto abri-los, repará-los, fragmentá-los e usá-los à sua conveniência, terminaram desfazendo-se dos signos que tornam os objetos ocidentais uma unidade fechada”.
Na base deste fenômeno criativo está a acumulação. Literalmente, nada se perde para a população cubana. Tudo que quebra ou fica velho vai sendo amontoado num canto da casa ou embaixo da cama para se reinventar em outro produto quando for necessário.
Andando pelas ruas do bairro de Brasília Teimosa, no Recife, há 15 dias, 19 anos depois da exposição no Centro de Desenvolvimento das Artes Visuais, Oroza se sentiu em Havana. “As ruas, a fisionomia das pessoas, o som da música vindo de algum lugar a indicar como ela é tão presente na vida das pessoas… Tudo lembra Havana”. O povo e os objetos também. “Encontrei em Brasília Teimosa a mesma relação das pessoas com os objetos e a moradia, recriando-os, reinventando-os a seu modo, como acontece em Cuba. A desobediência tecnológica pertence à cultura de toda a América Latina. Por isso está tão presente em Recife. São práticas sociais contemporâneas vinculadas à desigualdade.”.
Se os anos 60 e 70 foram marcados pela escassez crônica em Cuba, nos anos 1980, com uma base mais profunda na relação com a então União Soviética, novos produtos chegaram à ilha vindos do Leste Europeu por meio do intercâmbio internacional realizado pelo Conselho para Assistência Econômica Mútua (Comecon).
Havia produtos novos, mas não havia diversidade. Todos os cubanos conheceram apenas um tipo de geladeira (Minsk), dois tipos de TV (Caribe e Krim), um único ventilador (Orbita) e duas gerações de apenas uma máquina de lavar (Aurika). Sete tipos de embalagens sustentavam o intercâmbio econômico com a Europa comunista.
Convivendo com os mesmos produtos domésticos, os cubanos encontraram caminhos comuns para reinventá-los, misturando peças de produtos distintos, como ao adaptar o motor de uma lavadora a uma bicicleta para transformá-la numa moto. Reparo, reconstrução ou invenção podiam ser partilhados por todos porque todos tinham acesso aos mesmos tipos de equipamentos, das mesmas e escassas marcas.
O que acontecia no mundo da utilidade dos objetos se reproduzia também na arquitetura das moradias. Famílias se amontoando em casarões antigos, dividindo cômodos e incômodos. Uma casa nascendo por sobre outra casa, vãos, varandas, janelas, portas e uma infinidade de escadas externas vão sendo montadas como uma espécie de lego, em resposta às demandas da vida: a família que cresce, a divisão dos mesmos cômodos com novos vizinhos, a abertura de espaços para os pequenos comércios clandestinos. Mais e mais puxadinhos.
A essa incessante adaptação da moradia às circunstâncias da vida, por meio do reaproveitamento de vários materiais, Ernesto Oroza deu o nome de arquitetura da necessidade. Ele viu muitas semelhanças entre alguns bairros de Havana e Brasília Teimosa. “Há coisas muito similares ao que acontece na ilha. Há pessoas que têm poucos recursos e que estão usando azulejo para fazer as paredes da casa e o fazem para economizar na pintura. Mas também sabem que aquilo remete a um tipo de construção que é mais valorizada”.
Bairros que crescem projetados não pelo poder público ou pela fome insaciável do grande capital. Cidades que se espalham desenhadas pela necessidade de seus moradores de baixa renda. Quem desenha as cidades nas periferias é a necessidade. Nestas periferias, no olhar atento de Oroza, seja em Cuba ou no Brasil, há uma cidade que se atualiza permanentemente e que não pode esperar pelo ritmo do planejamento urbano.
Aos que buscam o caminho fácil de contrapor a inventividade popular cubana como um ideal alternativo ao mercado de produtos supérfluos do alto capitalismo, Oroza faz um alerta: é preciso não romantizar essa produção das classes populares ou ver ali um modelo para a sociedade. “Eu não trato essa produção de forma romântica. Há muita dureza por trás dela. A miséria não é uma solução e não deve ser vista como uma possibilidade”.
Descrever a maneira autônoma como os cubanos reconstroem os objetos – ressignificando-os e ampliando sua vida útil – nos remete de imediato, em contrapartida, ao mundo do consumo exacerbado e descartável que se vive fora do país caribenho, onde o produto e o seu significado original são cultuados e inviolados. “O iphone parece um deus. Você não pode atravessá-lo num olhar. Não há onde abri-lo. A verdade é que todos os iphones são iguais, mas eles manejam de uma forma para que em dois anos algumas coisas já não funcionem mais e você tenha que comprar outro. É tudo um grande mentira. Mas há poucas possibilidades reais de você não participar dela”, fala o designer cubano que vive desde 2007 em uma das mecas do capitalismo, a cidade de Miami, nos Estados Unidos.
Ao viajar pelo mundo expondo os produtos frutos da escassez e da inventividade cubana, Oroza alerta os incautos de que não se trata de um trabalho artístico: “Para mim o que estou fazendo não é arte. A mim interessa o debate, a discussão sobre a arte. Analisar outras práticas, contaminar esse contexto. Mas não digo que sou um escultor, que estou fazendo escultura ao reproduzir o que vi em Cuba. É uma investigação pra comunicar as ideias essenciais dessa produção. E fazer uma crítica à produção industrial é também fazer uma crítica ao Estado e à própria arte”.
Ernesto Oroza passou dez dias em Recife no começo de junho, foi a primeira vez que esteve no Brasil. Daqui retornou a Miami. Seu trabalho está exposto na Caixa Cultural até o dia 28. A mídia local divulgou a exposição em jornais e portais, mas sem destaque.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República