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Campanha por fila única de UTI ganha adesão e pressiona Poder Público e hospitais privados

Crédito: Hospital Santa Joana

A Rede Solidária em Defesa da Vida, grupo interdisciplinar da sociedade civil formado para apoiar ações de enfrentamento ao Covid-19 em Pernambuco, lançou há um mês a campanha Vidas Iguais para pressionar o Poder Público pela implantação da fila única.

O objetivo é garantir o acesso universal e igualitário a todos os pacientes graves da Covid-19 que necessitem de leitos de internação e terapia intensiva por meio de uma fila única para leitos do SUS e dos hospitais privados, sem distinção de classe social.

Inspirada em iniciativas semelhantes adotadas em países como a Espanha, a articulação ganhou caráter nacional a partir da parceria com os movimentos Leitos para Todos, do Rio de Janeiro, e o homônimo Vidas Iguais, de São Paulo.

Se nos
primeiros dias, a causa parecia destinada a repercutir apenas entre defensores
dos Direitos Humanos e sanitaristas dos institutos de pesquisa, agora está
sendo discutida entre atores políticos, gestores de saúde e está atraindo
artistas em sua defesa.

Entre as principais reivindicações, pontuadas em manifesto, estão a requisição administrativa pelo Poder Público dos leitos privados em todos os estados; instalação da fila única com ordenação por critérios de gravidade; e coordenação, controle, avaliação e gerência de toda a capacidade instalada – pública e privada – a partir da autoridade sanitária do SUS estadual.

O movimento Vidas Iguais e Leitos para Todos entende que o conceito de fila única é amplo. “Não estamos falando só de respirador de leito de UTI. É claro que o suporte fundamental é o respirador, só que estamos falando de leitos de enfermaria, de equipes de saúde colocadas pelo sistema privado, dos testes… Como está a fila do Lacen para testagem? Será que existe uma ordenação de gravidade no sentido universal, equânime, seguindo os preceitos do SUS também pra testagem?”, questiona a médica sanitarista Bernadete Perez, integrante da Rede Solidária e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

O colapso do sistema público de saúde e a redução do nível de isolamento social com a escalada do contágio criaram a necessidade urgente da implantação da medida defendida por mais de 80 organizações de diversos estados.

Os números falam por si. Na quinta (7), foram contabilizados mais 610 mortes por Covid-19 no Brasil, somando 9.146. Foi o terceiro dia seguido com mais de 600 óbitos. Ao todo, estão em 135.106 os casos confirmados do coronavírus. O Brasil agora é o sexto país no mundo em número de mortos pelo vírus. E ainda estão em investigação outras 1.732 mortes. Sem falar na subnotificação pela falta de testagem. Vai se consolidando entre os especialistas pelo mundo que o Brasil caminha para tornar-se o novo epicentro da pandemia global.

Em Pernambuco, os números indicavam 11.587 casos confirmados e 927 mortes na sexta (8). O quarto maior número de óbitos de Covid-19 no país, perdendo apenas para São Paulo, Rio e Ceará. A dimensão da gravidade da situação no estado fica evidente na constatação de que na quinta (7) os 454 leitos de UTI do SUS estavam todos ocupados e 244 pacientes em estado grave aguardavam por um leito de terapia intensiva.

Modelo é a fila do transplante

Para Bernadete Perez, os termos das negociações realizadas pelos governos estaduais, incluindo o de Pernambuco, com os hospitais privados são insuficientes para dar conta do colapso da saúde pública. “Têm sido feitas chamadas públicas para os hospitais que quiserem disponibilizar leitos. São contratos específicos na modalidade que já existe. Têm baixa adesão e os hospitais privados ainda posam de filantrópicos com a iniciativa de ceder alguns poucos leitos. Isso é completamente diferente da fila única, que tem que funcionar como a fila de transplante, com regulação do Estado”, explica.

O exemplo da fila de transplante foi citado em recomendação do Conselho Nacional de Saúde, no dia 22 de abril, em favor da implantação da fila única: “O CNS recomenda ao Ministério da Saúde e às Secretarias Estaduais de Saúde que procedam à requisição de leitos privados, quando necessário, e sua regulação única a fim de garantir atendimento igualitário durante a pandemia. A expertise brasileira acumulada na regulação dos transplantes pode ser expandida e adaptada para a realidade da Covid-19”.

O conselho é
integrado por 48 conselheiros, entre representantes de profissionais da saúde,
pesquisadores, usuários do SUS e governo federal.

A implantação da fila única para o enfrentamento da Covid-19 tem respaldo constitucional (art. 5º, inciso 25 da Constituição) e pela Lei do SUS (8.080/90), que prevê indenização negociada ao proprietário privado pelo uso de leitos, insumos e equipes profissionais de saúde. A medida também está prevista na Lei 13.979, de fevereiro deste ano, “que cria nova hipótese de requisição pública, específica pra fazer o enfrentamento à pandemia e autoriza qualquer entre federado a lançar mão da requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

Tramita no Senado Federal o projeto de lei 2.324 do senador Rogério Carvalho (PT-SE), subscrito por mais seis senadores, entre eles Humberto Costa (PT-PE), que torna ainda mais claro e rápido o processo de requisição administrativa de leitos, prevendo o uso público compulsório de leitos privados de qualquer tipo, embora não exclua a possibilidade de negociação da contratação emergencial entre a autoridade sanitária pública e as entidades privadas.

Central de regulação

“A definição da central de regulação para os leitos públicos e privados tem amparo legal, constitucional, e é uma questão humanitária, se trata de você criar um parâmetro mínimo de assistência à saúde considerando a vida como um direito acima de todos os demais direitos. O Estado de Direito protege a vida e cabe à sociedade exigir do estado essa proteção. O valor da vida é mais alto do que o valor do mercado”, defende o professor Manoel Moraes, coordenador da Cátedra Dom Helder Câmara da Universidade Católica (Unicap) e integrante da Rede Solidária.

Fila única aliviaria sobrecarga dos hospitais públicos como o da Restauração(Crédito: SES/PE)

Moraes
argumenta que a aceleração do contágio exige a abertura de novos leitos no SUS,
mas que o processo de operacionalização dos hospitais de campanha é demorado e
não dá para abrir mão dos leitos ociosos nos hospitais privados. “Esse tempo
pode ser a chave para a vida ou a morte de muitas pessoas. Os privados vão ser
indenizados. O custeio vai ser efetivado. A resistência é em torno do valor
desse custeio. Mas a medida precisa ser tomada. Foi assim que aconteceu na
Itália e na Espanha. Na Inglaterra nem existe essa discussão porque é tudo
público. O primeiro-ministro Boris Johnson foi tratado em hospital público. Os
Estados Unidos são uma exceção porque lá não tem um sistema como o SUS”.

No caso do Brasil,
inicialmente o governo federal determinou o pagamento de R$ 800,00 por dia por
leito de UTI para tratamento de Covid-19. No início de abril, o Ministério da
Saúde publicou portaria dobrando o valor para R$ 1,6 mil. Nas chamadas públicas
para disponibilização de leitos privados em Pernambuco, o governo do estado
está pagando até R$ 2 mil a diária por leito, mais a complementação do governo
federal.

A tabela do
estado, publicada no Diário Oficial no dia 4 de abril prevê dois valores para
diárias de leitos de UTI. Os leitos de R$ 2 mil são aqueles “cuja
responsabilidade pela estrutura física, equipamentos, recursos humanos e demais
itens de custeio e investimento ficam a cargo do prestador de serviço”. Para os
leitos cujos equipamentos serão fornecidos e mantidos pelo governo estadual, o
valor é de R$ 1,2 mil.

No dia 1º de maio, o governo do estado publicou portaria obrigando todos os hospitais da rede pública e da rede privada a fornecerem diariamente à Central Estadual de Regulação, às 7h e às 19h, a taxa de ocupação dos leitos de UTI, enfermaria e apartamentos, bem como a quantidade de ventiladores pulmonares em uso e livres. Esses números, no entanto, não são divulgados para o público em geral.

Ceticismo privado

O presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde e Laboratórios do Estado de Pernambuco (Sindhospe), entidade que representa os hospitais privados de Pernambuco, George Trigueiro, disse não ver problemas na utilização em larga escala dos leitos dos hospitais particulares pelo SUS, mas se mostra cético com a operacionalização da fila única. “Como é que vai funcionar a regulação disso? Como vão mandar pacientes sem saber se temos material, medicamentos, respiradores ou equipe trabalhando?”

George Trigueiro avisa que fornecedores estão superfaturando materiais e equipamentos (Crédito: Sindhospe)

Trigueiro
revela que os hospitais particulares, principalmente os do interior, já
encontram dificuldades para continuar funcionando por conta da dificuldade em
repor materiais descartáveis, EPIs e medicamentos. “Poderíamos ajudar mais, o problema
agora é o superfaturamento praticado pelos fornecedores, que estão praticando
preços absurdos. Pior: exigem pagamento à vista, pois se a mercadoria for requisitada
ao passar pelas divisas dos estados, o comprador arca sozinho com o prejuízo. E
numa situação dessas, ninguém tem fluxo de caixa para pagar à vista”, revela.

De acordo com o presidente do Sindhospe, mesmo que a fila única fosse instalada em Pernambuco, demoraria alguns dias para o impacto ser percebido: “Logo depois que chegamos a um acordo de preços com o governo estadual, em março, os pacientes de classe média, clientes dos planos de saúde, que foram os primeiros a contrair a covid, lotaram os hospitais. Muitos dos leitos ainda estão ocupados com esses doentes da primeira leva, pois essa doença exige longas internações”.

Frustração do estado

Na entrevista coletiva de 6 de maio, o secretário estadual de Saúde André Longo confirmou a lotação dos hospitais privados: “Ainda há muita ocupação nas UTIs na rede privada. Isso provoca uma certa frustração, pois a curva de contágio não desacelerou tão rápido entre os usuários de planos de saúde quanto nós esperávamos”.

André Longo (centro) esperava queda maior do contágio dos usuários de planos de saúde (Reprodução YouTube)

Longo explicou que, mesmo sem uma central de regulação única, “o grau de ociosidade dos leitos dos hospitais particulares passará a ser medido duas vezes por dia”. Segundo o secretário, os profissionais da área de regulação passarão a visitar os hospitais para comprovar a ociosidade.

Apesar de confirmar o clima amistoso entre governo e empresários da saúde pernambucanos, o secretário não descartou a possibilidade de usar todas as prerrogativas que a lei concede ao poder público: “A requisição está prevista em lei, faremos o que for necessário, mas o setor privado está bastante cooperativo”.

Elitização e desigualdade

Se em
Pernambuco gestores e donos de hospital tentam amenizar a pressão pela fila
única com negociações, nacionalmente entidades como a Federação Brasileira de
Hospitais (FBH) e a Associação Brasileira de Planos de Saúde lançaram e
encaminharam ao Ministério da Saúde uma contraproposta com quatro pontos.

Duas dessas
propostas já são amplamente implementadas pelas autoridades públicas nos
estados e principais municípios brasileiros: a utilização de leitos ociosos do
SUS e a construção de hospitais de campanha. O terceiro não passa de senso
comum: a defesa da ampliação das testagens.

E, para
esvaziar a pressão pela fila única, propõem mais do mesmo: a abertura de
editais públicos para a cessão de leitos privados, informando que essa é uma
modalidade já conhecida pelo sistema e auditada pelos organismos de
fiscalização. Segundo as entidades que assinam o documento, hoje 57% dos
hospitais privados já atendem ao SUS. Como ponto positivo da proposta, alegam
que “tais contratos podem ser feitos de acordo com a realidade local de
demanda, com muito maior chance de sucesso” e citam o estado de Pernambuco como
um caso bem sucedido desse tipo de iniciativa.

A médica sanitarista Bernadete Perez acredita que o debate de fundo é sobre elitização e desigualdade. “O que resta é a gente entrar numa discussão muito delicada, a das instituições totalmente elitizadas. As corporações médicas, a indústria médico-hospitalar, as cooperativas de planos de saúde. Inclusive as instituições jurídicas, que têm muitas reservas sobre a fila única. Questionam: como é que eu vou ceder um leito pelo qual eu paguei? Nesse debate, você tem olhares e também um silêncio ensurdecedor. De resistência clara, claríssima. É uma discussão sobre o poder instituído, sobre a elite atrasada que a gente tem”.

Segundo dados apresentados no manifesto da Rede Solidária em defesa da fila única, o Brasil contava em 2019 com 15,6 leitos de UTI para cada 100.000 habitantes, sendo que para cada leito per capita disponível para o SUS, existem cerca de quatro leitos disponíveis para os planos de saúde na rede privada. O sistema público utiliza cerca de 45% dos leitos de UTI no país, enquanto que os outros 55% estão reservados para 25% da população que é cliente de planos de saúde.

AUTORES
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.

Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República