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Apagados da história oficial, campos de concentração da seca de 1932 estão marcados na memória popular

Géssica Amorim / 20/05/2022

Crédito: Géssica Amorim/MZ Conteúdo

Fortaleza, Crato, Ipu, Quixeramobim, Cariús e Senador Pompeu. Nesses seis municípios do Ceará, há noventa anos, durante a grande seca de 1932, foram construídos sete campos de concentração com o propósito de conter os  retirantes do interior do estado que tentavam chegar à capital.

Na época chamados de “Currais do Governo”, os campos foram construídos em pontos estratégicos, às margens das linhas férreas, para impedir com mais facilidade o embarque dos retirantes que, em desespero, invadiam os trens para buscar socorro em Fortaleza. 

Atraídos por propostas de emprego e por promessas de amparo, assistência médica e alimentação, os flagelados eram, na verdade, mantidos em locais insalubres, tendo que se alimentar com rações enviadas pelo governo, plantas silvestres e até com a carne de animais que morriam de fome e sede nos campos.  

 Na realidade, as pessoas confinadas eram reféns de uma  política higienista que teve início em períodos anteriores de estiagem severa. Na segunda metade do século XIX, Fortaleza engrenou um processo de desenvolvimento econômico e urbano que perdeu força e se desestruturou com a chegada da seca de 1877, que durou até 1879 e levou mais de 100 mil retirantes de todo o estado a migrarem para a capital, que na época tinha uma população bem menor, de 30 mil habitantes. As autoridades, então, passaram a buscar meios para conter a chegada dessas pessoas ao centro da cidade de Fortaleza. 

Trinta e seis anos depois, durante a estiagem de 1915, o governo não havia criado políticas de convivência com a seca, mas, com o apoio da elite fortalezense, aprimorado as suas estratégias para conter o fluxo de retirantes que rumavam para a capital. Lá, foram criados os primeiros campos de concentração para evitar que pessoas “potenciais portadoras de doenças” ou saqueadoras de mercados, consideradas uma séria ameaça à tranquilidade pública, ocupassem a cidade. 

Crédito: Reprodução/Géssica Amorim

Em 20 de junho de 1932, o jornal cearense O Povo destacava com informações oficiais o “Efetivo dos Campos de Concentração dos Flagelados”: em Ipu, o número de pessoas concentradas na data da publicação era de 6.507. Em Fortaleza, nos campos do Alagadiço e do Urubu, havia 1.800 pessoas. No município de Quixeramobim, 4.542. Em Senador Pompeu, no campo do Patu, 16.221 (na época, o número de concentrados chegou a ultrapassar o número de habitantes da cidade). No campo de Buriti, no Crato, havia 16.200 pessoas. Cariús, com o maior número,  concentrava 28.648. Em todo o estado, o total de pessoas mantidas nos campos de concentração naquele ano era de 73.918. 

O município de Senador Pompeu, localizado a cerca de 266 quilômetros de Fortaleza, é o único que ainda conserva parte da estrutura usada para  isolar os emigrantes durante o período de estiagem de 1932. Diferente dos campos de concentração dos outros municípios, que construíam apenas barracões cobertos com folhas de carnaúba, lá, além dos barracões, foram utilizados os antigos casarões construídos na década de 1920 pela companhia inglesa de engenharia Norton Griffiths & Company – encarregada da construção do açude do Patu, na zona rural do município. No sítio do Patu, para conter os confinados, foram utilizados o casarão dos inspetores da obra, duas casas de pólvora, um armazém, a estrutura de um hospital desativado, uma usina, um cemitério e uma estação de trem.

Hoje, o açude do Patu tem como principal finalidade o abastecimento de água da cidade. Segundo o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), o projeto de construção do açude é do ano de 1919 e as primeiras escavações foram feitas em 1921. Porém, as obras foram paralisadas em 1923, sendo retomadas depois de 61 anos e, finalmente, concluídas em 1987.

Ruínas dos casarões onde milhares morreram de fome. Crédito: Géssica Amorim/MZ Conteúdo

Foi no campo de concentração do sítio Patu que, aos 16 anos, o pai da agricultora aposentada Alzira Lucinda Moraes de Lima, 70, esteve confinado. Mário Antônio de Moraes sobreviveu a 1932 e aos horrores da seca daquele ano. Ele faleceu com oitenta e cinco anos, em 2001. Durante o tempo que conviveu com a filha, lhe contou o que viu e viveu no período em que esteve isolado. “O meu pai dizia que ali era uma prisão. Era ele quem cavava as covas para enterrar os  defuntos que morriam no campo. Ele dizia que eram dois, três, por noite. Falava dos cachorros brigando, querendo comer os cadáveres. As crianças que morriam, eram carregadas numas telhas. Papai contava que era um horror”. 

Mário Antônio foi um dos poucos que conseguiram escapar do campo de concentração do Patu. Ele fugiu para Mombaça, município localizado a cerca de 307 quilômetros de Fortaleza. Nascido no povoado Riacho do Sangue, em Solonópole, que fica a 275 quilômetros da capital cearense.  Foi de lá que, durante a seca, quando tentava viajar para Fortaleza, foi impedido pelos vigilantes das estradas e estações de trem e encaminhado para o campo do Patu.

Apagamento proposital

Os campos de concentração no Ceará, vendidos como uma política de amparo, faziam parte de um projeto desenvolvido pelo governo estadual em parceria com o ministério de Viação e Obras Públicas do governo de Getúlio Vargas, que incentivava a criação de espaços para o confinamento de flagelados das secas.  

Não há registros oficiais que mostrem com precisão o número de mortos nos campos de concentração cearenses de 1932. Grande parte dos documentos e arquivos oficiais desapareceram. O advogado Valdecy Alves, que nasceu em Senador Pompeu e hoje vive em Fortaleza, estuda o assunto há mais de 20 anos. Ele escreveu três livros e também produziu outros três documentários a respeito. Valdecy considera a falta de informações uma tentativa de apagamento de um dos períodos mais sombrios da nossa história.

O pai de Alzira fugiu do campo de Patu e foi um dos sobreviventes da política higienista. Crédito: Géssica Amorim/MZ Conteúdo

“Houve um gigantesco e proposital apagamento histórico dos campos de concentração no Ceará. O apagamento da memória é uma prática de quem detém o poder político e econômico. Os campos de concentração das secas são coisas tão vergonhosas praticadas pelo Estado brasileiro, que ele quer apagar. Hoje, eu entendo que os próprios governantes atuais têm receio do resgate da memória da seca de 32 até por medo de terem de indenizar os descendentes das pessoas que foram injustiçadas naquela época. As pessoas  foram aprisionadas, usadas como mão de obra escrava para a construção de estradas, construção de ferrovias”, conta Valdecy.

Com uma área de aproximadamente 90 hectares, o sítio do Patu foi tombado como patrimônio histórico-cultural de Senador Pompeu em 2019 e atualmente está em processo de tombamento a nível estadual. Segundo a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, o projeto está em fase de instrução processual para reunir informações históricas, arquitetônicas e antropológicas. A previsão do encerramento dessa etapa é novembro de 2022.

Um “santo” coletivo

Desde 1982, no segundo domingo de novembro, os moradores de Senador Pompeu e de outros municípios organizam a Caminhada da Seca. O evento acontece em homenagem aos retirantes mortos durante a severa estiagem de 1932, no campo de concentração da barragem Patu. 

Prestes a completar 40 anos, a cada edição a caminhada reúne mais de 5 mil devotos que atribuem graças alcançadas às almas da barragem. A concentração dos fiéis começa ainda de madrugada, às 4h30 da manhã, na igreja matriz de Senador Pompeu e a procissão vai até o cemitério da barragem, construído pela própria população do município como um monumento simbólico. O trajeto percorrido é de três quilômetros nos quais os fiéis levam ao cemitério pão e água como oferta àqueles que morreram de fome e sede.

Quem idealizou o evento da caminhada da seca o evento foi Albino Donat, padre italiano que faleceu em 2013 e que teve a sua história marcada pela luta em defesa das causas populares em Senador Pompeu e nas outras cidades onde atuou como sacerdote. “ Eu acredito que Padre Albino revolucionou Senador Pompeu. E quase tudo o que a cidade produz hoje de artístico, de patrimonial, de produção literária e intelectual, se deve a ele”, conta o professor e produtor cultural Kleber Pinheiro, de 29 anos.

Os católicos da região se referem às vítimas da seca de 1932 como um “santo coletivo”. As celebrações para essa santidade formada por milhares de almas, mantêm viva a memória dos que morreram nos campos de concentração do Ceará e atraindo milhares de devotos todos os anos. Em 2021 a Caminhada da Seca entrou oficialmente para o roteiro turístico do estado.

A caminhada da seca mantêm viva a memória dos que morreram nos campos de concentração. Crédito: Isadora Brant

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