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Por Juliana Romão*
O registro de uma candidatura de fachada, chamada de laranja, é um crime contra a democracia. A falsa candidatura corresponde à fraude do sistema eleitoral para obtenção de vantagem ilícita na disputa pelo poder e envolve estratégia partidária, trapaça e muitas vezes corrupção. É uma encenação social na maioria das vezes com a finalidade de burlar as cotas eleitorais de gênero previstas em lei e/ou desviar dinheiro público destinado a apoiar candidaturas de mulheres (não exclusivamente, mas majoritariamente) para favorecer candidatOs específicos, aumentando suas condições de elegibilidade.
As candidaturas laranjas são mecanismos de auto-preservação explorados pelas elites partidárias para impedir o deslocamento (perda) de poder. Como se fossem donos dos partidos e como se os partidos tivessem a posse da política, autoritariamente organizam uma estrutura para enganar o sistema e a sociedade: cumprem formalmente os dispositivos legais e figurativamente ofertam espaço às mulheres, para, na prática, violar o espírito da lei e torná-las inexpressivas. Farinha pouca, meu pirão para sempre primeiro.
Por trás da gestão de silenciamento de candidatas estão as garras de grupos dominantes contrariados com as inovações político-sociais que as mulheres, especialmente as negras, trazem na ocupação do poder.
A manobra da candidatura fictícia representa uma violência política contra as mulheres, um tipo específico que se soma às violências psicológica, institucional, midiática, obstétrica, econômica e legal. A violência política opera de múltiplas formas, com o objetivo de impedir que se candidatem ou interferir no exercício de seus mandatos e, de maneira geral, desestimular, desanimar e abreviar a carreira política feminina. E com o peso estruturante do racismo e do sexismo, reservam a elas um lugar de subalternidade.
As tentativas de apagamento não são isoladas, compõem um padrão suprapartidário e global de violência que jamais pode ser naturalizado ou minimizado. Muito menos distorcido, como sinalizam os raros e rasos debates sobre as candidaturas laranjas, com justificativas prontas que jogam sobre os ombros das mulheres – as vítimas – a responsabilidade pela candidatura falsa, com falas estereotipadas e machistas. Uma narrativa desonesta, ignorante e desesperada ante a avassaladora realidade: as mulheres são políticas e fazem política todos os dias.
A presença feminina na política institucional vem com a luta histórica dos movimentos feministas desde antes da pressão pelo voto, na década de 1930, e em todas as ações afirmativas que nos trazem aos dias de hoje.
Destaques para a inclusão da cota de gênero na legislação de 1995 (Lei 9.100), com a reserva de 20% de vagas para mulheres; a aprovação da Lei Eleitoral (9.504) pelo Congresso em 1997, ampliando a reserva para 30%; e a nova redação (Lei 12.034) que em 2009 passou a obrigar os partidos a preencherem o percentual mínimo (30%) e máximo (70%) de candidaturas para cada gênero. Em 2018, a determinação da Justiça Eleitoral direcionou também 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas e 30% do tempo de Rádio e TV às mulheres e foi um importante avanço, que pode ser ainda maior agora em 2020, com o debate em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a distribuição dos recursos com proporcionalidade racial.
A trapaça eleitoral da laranja é uma evidente resistência ao aperfeiçoamento legal em defesa da presença feminina na política. Uma presença ainda frágil e subrepresentada: em 2018 foi eleita a maior bancada feminina da história, ocupando apenas 15% das vagas no Congresso Nacional. Mas em crescimento e apavorando o status quo.
Os dados são confirmados por pesquisas acadêmicas, como o estudo realizado ao final das eleições de 2018 pelas pesquisadoras Malu Gatto, da University College London e Kristin Wyllie, da James Madson University. Além de conectar a proliferação das laranjas à pressão das cotas, o estudo mostra que a prática é generalizada entre os partidos brasileiros. Não de maneira uniforme – os partidos mais à direita apresentam os maiores índices – mas encontrada em todas as legendas. Em 2018, segundo a pesquisa, 35% de todas as candidaturas de mulheres para a Câmara Federal podem ter sido usadas para cumprir formalmente a lei de cotas.
Na base de dados, registros de candidaturas com baixo retorno de votos nos últimos 24 anos. Para saber se eram pouco competitivas ou podem ter sido usadas como laranjas, as pesquisadoras analisaram a taxa de competitividade entre homens e mulheres no período (1994 a 2018). Enquanto a proporção de candidatos não competitivos se manteve estável, a de mulheres aumentou significativamente, em compasso com as punições mais severas do TSE para partidos que não cumprem a cota dos 30%.
É importante destacar que nem toda candidatura com poucos votos representa uma intenção deliberada de burlar a legislação ou desviar recursos. A discrepância entre as taxas de competitividade deve acender o sinal de alerta e funciona como um indício importante, sobre o qual o TSE deve se debruçar para reformular as estratégias de prevenção e fiscalização. Para cada candidatura ‘suspeita’ cabe uma investigação ampla, para além dos números. Não é uma análise complexa, normalmente nos casos de fraude há pistas como a não realização de campanha, pouco ou nenhum gasto eleitoral, inexistência de transferência ou arrecadação de recursos, etc.
Para não cair na acusação leviana, outro estudo tipificou as laranjas, identificando o potencial de ilegalidade e reiterando a manutenção do espaço de poder como motivação. O tipo de laranja que não recebe nenhum voto é mais raro atualmente (vale a leitura da excelente reportagem dAzMina), as mais frequentes são as mulheres pressionadas a concordar em apoiar o partido e ter seus dados utilizados. Embora saibam que não estão competindo e assim nem invistam na campanha, elas não são avisadas de que poderão sofrer processo por fraude e ficar inelegíveis no futuro.
Outras são levadas a aceitar estar à margem em troca da promessa de que serão verdadeiramente apoiadas nas eleições seguintes, e há as que lançam candidaturas pouco competitivas como estratégia política real, seja para se fazerem conhecidas, ‘fazer cauda’ ou fortalecer uma chapa, etc. Em outra esfera de intencionalidade, está o tipo que envolve mais homens do que mulheres, que são os casos de servidores públicos candidatos para conseguir licença do trabalho, usufruindo ilegalmente da legislação para ‘tirar férias’.
É um estrago democrático considerável que não podemos – e não vamos – aceitar como efeito colateral do sistema. As mulheres querem estar no poder, com poder, não como marionetes. Enfrentar as fraudes e as desigualdades de disputa e de acesso aos recursos materiais e simbólicos está na ordem do dia de muitos setoriais de mulheres nos partidos, das feministas eleitas, dos movimentos de mulheres e de instituições que lutam pela democracia. E temos exemplos inspiradores:
A Plataforma da Reforma Política é uma força popular essencial. A articulação de movimentos sociais desde 2004 atua para mudar a forma como o sistema político brasileiro está estruturado. A partir de cinco eixos, o grupo formula políticas, levanta debates e faz pressão para fortalecer a democracia direta e a participativa, aperfeiçoar a democracia representatativa, democratizar a comunicação e o sistema de justiça. Cotidianamente lutam nas redes e nas ruas contra a perda direitos e por um sistema político justo e plural.
A PANE – Plataforma Antirracista Nas Eleições, arregimentada pelo Instituto Marielle Franco, organiza ações e ferramentas para mover as estruturas do sistema político, como o fomento à entrada de mulheres negras nos espaços de decisão, a partir da pressão aos partidos para que viabilizem de fato essas candidaturas, que elas sejam amplas e comprometidas com a defesa de políticas públicas antirracistas, a médio e longo prazos.
Eleições Antirracistas, organizado pela EducAfro, Instituto Marielle Franco, coletivo Mulheres Negras Decidem e a Coalizão Negra por Direitos, é um dos projetos da PANE e chega com o apoio de mais de 140 coletivos e instituições da sociedade civil. O foco é pressionar o TSE a agilizar a votação sobre o sistema de distribuição dos recursos eleitorais entre candidaturas de pessoas negras, de maneira proporcional. O debate precisa acontecer com urgência para que seja aplicado já nestas eleições.
O projeto Mulheres Negras e Democracia, criado para fortalecer mulheres negras rurais e populares para enfrentar os contextos de crise democrática no Brasil e na América Latina, se soma à pressão pela divisão dos Fundo Eleitoral para mulheres negras, fortalecidas com a campanha Eu Voto em Negra.
Ao lado ou em parceria com essas experiências estamos nós do Meu Voto Será Feminista e instituições ou projetos como o histórico Cfemea, PartidA, Adalgisas (Marco Zero Conteúdo), TretAqui, Me Representa, Elas no Congresso (Azmina), Instituto Alziras, Im.Pulsa e #Eleitas (Update), Vote Nelas, Enegrecer a Política e inúmeros outros que por todo o país igualmente focam na atuação política feminina. Em rede, fortalecem a presença das mulheres na política: negras, brancas, indígenas, periféricas, LBts, com deficiência. Mulheres diversas.
Mais institucionalmente, foi lançado em maio deste ano o Termo de Compromisso pela legitimidade, integridade e transparência das Eleições 2020, proposto pelo Ministério Público Eleitoral/SP aos 33 partidos. Com seis itens, o documento aborda temas como combate às fake news e financiamento de campanhas, e ressalta a importância dos partidos lançarem candidaturas femininas reais e competitivas, assegurando a divisão democrática dos recursos do Fundo. Estaremos de olhos nos partidos que assinarão o documento.
Outro importante instrumento recém-assinado é o Acordo de Cooperação para Candidaturas Femininas, parceria do Tribunal Regional Eleitoral – TRE, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e Procuradoria Regional Eleitoral – PRE em São Paulo. O objetivo é unir esforços para acompanhar candidaturas femininas nas eleições municipais, a partir do recebimento de denúncias sobre potenciais irregularidades, com encaminhamento à PRE para análise e propositura de ações judiciais.
O ACC fortalece os Observatórios de Candidaturas Femininas, criados ou em implantação nas OABs do Piauí, São Paulo, Paraíba e Goiás, com forte potencial de se espalhar pelos estados e acompanhar mais campanhas de mulheres, coibindo abusos e violações, especialmente nos interiores, onde as candidatas estão ainda mais desprotegidas.
Institucionalmente ou via sociedade, vê-se uma onda de pressão por mudança. É poderosa, mas não substitui a ação do poder público, que precisa estar implicado na missão de qualificar os instrumentos de fiscalização e responsabilização por fraudes e outras formas de violência. Reter o Fundo Eleitoral das legendas infratoras é, por exemplo, um bom caminho.
Há uma positiva tendência de avanços também no TSE ao realizar campanhas informativas e de estímulo à presença política das mulheres; cassar candidaturas que venceram por fraude, tanto os registros de fachada quanto os candidatos beneficiados, como no caso do Piauí e depois em São Paulo; abrir diálogo com os poderes; por em votação a cota racial e atuar com precisão e firmeza no adiamento curto das eleições 2020, sem prorrogação de mandatos. Ante esses esforços cabe afirmar que não é mais possível adiar a regulamentação sobre a distribuição do Fundo Eleitoral, com regras transparentes, robustas e fiscalizáveis.
O TSE deve incidir também na ampliação e correta aplicação dos hoje mínimos 5% do Fundo Partidário destinados à promoção da participação feminina nas entressafras eleitorais. Sabemos que é insuficiente garantir vagas sem mudar a cultura. As condições precisam ser equivalentes, tal qual o espaço político e as oportunidades de disputa e acesso a recursos.
E para fechar a combinação desse caldo transformador, vamos ao debate público amplo e paciente, que provoque as consciências sobre o imperativo da diversidade como condição primeira da democracia, e torne visíveis os danos sociais provocados por manobras partidárias e pelas violências políticas. O constrangimento deve retornar aos seus donos, fomentando a rejeição social e eleitoral em resposta às violações democráticas.
Um passo por vez e caminhamos para reduzir as assimetrias históricas que tocam as mulheres, pessoas negras e periféricas, e a representação política de modo geral. Nessa estrada está a democracia de alta intensidade.
* Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora da inclusão de gênero na linguagem, membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.